178.20

Groundhopping, colecionando ambiências de estádios de futebol

Natália Rodrigues de Melo 19 de abril de 2024

O termo groundhopping teve origem na Inglaterra como uma palavra composta, designando pular (do verbo to hop) de um campo para outro (ground) para assistir a jogos de futebol no maior número possível de estádios.

Muito mais que visitar estádios, os praticantes dessa modalidade, os chamados groundhoppers, buscam por partidas de futebol afim de sentir a atmosfera gerada durante o espetáculo competitivo. Ou seja, os hoppers são colecionadores de ambiência de estádios de futebol.

A palavra ambiência deriva do latim ambire, que significa “cercar” ou “circular” (Thibaud, 2016). Tudo o que compõe um determinado ambiente é cercado por essa “atmosfera moral e material” (Augoyard, 2004, p. 18) chamada de ambiência. Combinando luz, som, materiais, escala, presença e volume, “o ambiente escapa a qualquer definição formal” (Chadoin, 2010, p. 153). Ela depende tanto da subjetividade e do imediatismo da experiência quanto dos elementos físicos de longo prazo. Portanto, influencia o comportamento e o ambiente de vida. Assim, “a ambiência resulta de uma situação de interação sensível (sensorial e significante) entre a realidade material (…) e sua representação social, técnica e/ou estética” (Amphoux, 2003, p. 60). A ambiência só pode ser experimentada por meio da imersão corporal em um espaço material e sensível (Thibaud, 2004), e afeta o indivíduo inconscientemente, por meio de uma impregnação lenta e duradoura (Thibaud, 2016). No estádio de futebol, a ambiência é composta e recomposta de acordo pelos elementos físicos e sensíveis da encenação do jogo (arquibancadas, alambrados, cantos, luzes, etc.) e a presença de torcedores, atores do espetáculo por meio de seu apoio expresso.

Atlético Mineiro
Ambiência de estádio. Fonte: Atlético Mineiro (imagem pública – CC BY-NC 2.0 DEED)

De acordo com Bauckham (2013), a primeira referência ao termo groundhopping foi feita na Inglaterra por Lenton em 1979. Ele escrevia sob o pseudônimo de the rover na Netstretcher, uma antiga revista dedicada ao futebol semiprofissional e amador. Nele, ele descreveu um certo Gerry Shepherd como um groundhopper por ter conseguido assistir a vários jogos de futebol no mesmo dia, usando vários meios de transporte para ir de um estádio a outro. O termo não é consensual na comunidade, e alguns preferem ser chamados de “viajantes do futebol”. Mike Floate, fotógrafo amador inglês e autor de cerca de vinte livros sobre campos de futebol desde 1995, descreve-se como um “historiador visual” (Floate et al., 1995). De acordo com Bauckham, há diferentes categorias de torcedores que compartilham o mesmo desejo de coletar experiências e ambiências de estádios.

Os hoppers, estão acima de tudo em busca de ambiências notáveis sem qualquer clubismo prévio. Eles entendem que, para isso, precisam se misturar à multidão. Na década de 1980, o sociólogo Sansot (1986, p.3) descreveu a busca pelas emoções esportivas que certos estádios e eventos esportivos podem proporcionar, observando os efeitos produzidos pelas “bandeiras, os coros, os rostos tensos com o esforço, os solavancos de um estádio, os gestos inspirados de um indivíduo ou de uma equipe, a intensidade dos laços sociais e a experiência pré e pós-jogo. A experiência relativa assume, então, uma importância extrema e encontra sua glória ao mover estádios e mudar a face de uma cidade…”. Em contraste com as concepções degradantes das multidões, Sansot (1986) mostra que o indivíduo pode gostar de desaparecer, por vontade própria, na multidão do estádio e ter seu ser esvaziado de si mesmo para que o espetáculo possa ocorrer.

De acordo com Simões (2017), o surgimento do groundhopping na Inglaterra pode ser explicado por sua longa e fértil “cultura de torcedores”, que serviu de modelo para muitos países. Provavelmente devido à concentração geográfica dos grandes clubes e à qualidade das redes de transporte, as multidões começaram a acompanhar seus times. De acordo com Hobsbawm (2006), no início do século XX, os times de futebol, juntamente com a religião e o sindicalismo político, dividiam os corações e as mentes dos trabalhadores das principais cidades inglesas. Assim, muito gradualmente, alguns fãs de futebol e torcedores de seus times passaram a se apaixonar pelos estádios e a colecionar as diferentes ambiências. Não se tratava mais de acompanhar os jogos do seu time, mas de ir de um estádio a outro para experimentar a ambiências de vários estádios de futebol. A prática era comum o suficiente para que, em 1978, fosse criado o “Club 92“, reunindo todos os torcedores que haviam visitado os 92 estádios das ligas profissionais inglesas. De acordo com Heinisch (2008), os membros desse clube mantém estatísticas sobre suas visitas aos estádios, incluindo datas, times, resultados, números de público e descrição da ambiência sentida. Isso faz do Club 92 o maior clube de groundhoppers do mundo.

Capa do site Club 92. Fonte: https://www.92club.co.uk/

Na década de 1990, o groundhopping começou a se desenvolver na Europa continental após a Copa do Mundo de 1990 na Itália. De acordo com Kren (2013), esse foi o momento-chave da europeização da prática. O groundhopping também se desenvolveu em um momento crucial na história dos estádios ingleses e, posteriormente, europeus. Na esteira do desastre de Hillsborough, em 1989

, e sob a influência dos órgãos nacionais e internacionais que regem o futebol, a qualidade dos estádios em termos de construção e recepção melhorou consideravelmente.

No entanto, houve uma profunda mudança da dimensão social, ou seja, na forma como os usuários eram vistos. Os estádios passaram então para a era do controle e do consumo. As multidões são segregadas, privadas de qualquer valor social, e os indivíduos são atomizados, reduzidos ao status de clientes. Segundo Roux (2014), os estádios, que costumavam ser espaços públicos de socialização da mesma forma que os parques e as praças, estão se tornando espaços de consumo. O resultado é um fenômeno duplo: uma melhoria no equipamento e seu uso para o consumidor, mas um empobrecimento da qualidade sensível para o espectador.

De acordo com Hourcade (2002), esses novos estádios, que abrem espaço para a disciplina e para gestos menos espontâneos, não são muito apreciados pelos groundhoppers, que valorizam a ambiência genuína, a arquitetura e o genius loci dos estádios menores, que ainda estão ligados a uma identidade local e marcados pela história passada. Os hoppers são mais apegados a dimensão nostálgica e emocional dos estádios.

Os groundhoppers compartilham histórias e fotos de suas aventuras por meio de blogs e redes sociais. De acordo com Aubry, Kotelnikoff e Navarro (2015), nesses fóruns especializados, os mais interessados também trocam informações e boas dicas sobre as cidades. Os “saltadores” costumam viajar sozinhos ou em pequenos grupos e, muitas vezes, visitam um local esportivo, assistem ao jogo de futebol e depois prolongam a estadia para aproveitar a cidade, a região ou o país. Portanto, os groundhoppers são turistas atípicos que escolhem seu destino com base nos estádios e na ambiência que eles oferecem.

Referências bibliográficas

Amphoux, Pascal. Ambiance architecturale et urbaine. In: Lévy, Jacques; Lussault, Michel (Orgs.). Dictionnaire de la géographie et l’espace des sociétés (p. 72-73). Belin, 2003.

Aubry, Antoine; Kotelnikoff, Laura; Navarro, Guillaume. Le « groundhopping » ou quand le football devient une destination touristique. 2015. Disponível em: http://www.slate.fr/story/101005/profession-groundhopper. Acesso em: 25 de outubro de 2018.

Augoyard, Jean-François. Vers une esthétique des ambiances. In: Amphoux, Pascal, Thibaud, Jean-Paul; Chelkoff, Gregoire (Orgs.). Ambiances en débat. La Croisée, 2004.

Bauckham, David. Serious leisure: the case of groundhopping. In: Blackshaw, Tony. Routledge Handbook of Leisure Studies. Nova Iorque: Routledge books, 2013

Chadoin, Olivier. La notion d’ambiance: contribution à l’examen d’une invention intellectuelle postmoderne dans le monde de la recherche architecturale et urbaine. Les annales de la recherche urbaine, 106(1), 2010, 153-159.

Floate, Mike. Non-League Football Grounds in Kent. Newlands Printing Services, 1995.

Heinisch, Jörg. Abenteuer Groundhopping kennt keine Grenzen. Kassel, Agon, 2008.

Hobsbawm, Eric. Production de masse des traditions productrices de masses: Europe 1870-1914. In: Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence. (Orgs.). L’invention de la tradition. Paris: Éditions Amsterdam, 2006.

Hourcade, Nicolas. La place des supporters dans le monde du football. Pouvoirs, vol. 101, no. 2, 2002, pp. 75-87.

Kren, Hendrik. Groundhopping – a phenomenon in European fan culture. 2013. Disponível em: http://www.free-project.eu/documents-free/Working%20Papers/Groundhopping%20a%20phenomenon%20in%20European%20fan%20culture%20(H%20Kren).pdf. Acesso em: 31 de outubro de 2018.

Rodrigues de Melo, Natália; Roux, Jean-Michel; Mao, Pascal; Bouhaouala, Malek. Le groundhopping, une nouvelle forme de tourisme sportif. Une analyse à partir du cas français. Téoros [Online], 41-2 | 2022.

Roux, Jean-Michel. L’ambiances des stades. Urbanisme, n°393, dossier « Grands stades en quête d’urbanité », 2014, pp. 60-62.

Sansot, Pierre. Vers une sociologie des émotions sportives. In: Sansot, Pierre. Les formes sensibles de la vie sociale. Presses Universitaires de France, 1986, pp. 63-103.

Simões, Irlan. Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2017.

Thibaud, Jean-Paul. Les puissances de l’ambiance. In: Remy, Nicolas; Tixier, Nicolas, (Orgs.). Ambiances, tomorrow. Proceedings of 3rd International Congress on Ambiances. Volos, Grèce, vol. 2, 2016, 689-694.

Thibaud, Jean-Paul. O Ambiente Sensorial das Cidades: para uma abordagem de Ambiências urbanas. In: Tassara, E; Rabinovich E.P.; Guedes, M.C. (Orgs.). Psicologia e Ambiente. Educ., 2004.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 13 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Natália Rodrigues

Graduada em Turismo (UFOP), mestre e doutora em Arquitetura (UFRJ), mestre em Geografia (Univ. de Grenoble), professora do curso de Educação Física (Univ. de Orleans). Uma profissional polivalente, pra não dizer ziguezagueante, mas sempre focada no esporte: esporte e lazer, esporte e cidade, gestão do esporte.

Como citar

MELO, Natália Rodrigues de. Groundhopping, colecionando ambiências de estádios de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 20, 2024.
Leia também:
  • 178.29

    The Beautiful Game: filme sobre a Copa do Mundo dos Sem-Teto é uma prova de como o futebol pode mudar vidas

    Grant Jarvie
  • 178.16

    A relação entre política e futebol: uma história de rivalidade entre a Dama de Ferro e a cidade de Liverpool

    Amanda Trovó
  • 178.10

    Além de uma sala de troféus cheia: Bill Shankly, Jurgen Klopp e a consciência de representar o Liverpool FC

    João Pedro Mota Salgado