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A Tríplice Coroa e a Legitimidade dos Campeonatos Regionais: quanto vale um Estadual?

Georgino Jorge de Souza Neto 26 de março de 2021

Eu sei bem que esse assunto é um tanto quanto batido, mas preciso falar sobre isso aqui na Arquibancada. Não por dever acadêmico, mas por consideração amorosa. Tenho uma namorada cruzeirense (sim, o pertencimento clubístico não resistiu aos encantos e ao charme de uma mulher linda e inteligente). Quem me conhece sabe bem da minha paixão pelo Glorioso Clube Atlético Mineiro. Mas, ao me debruçar no campo de Estudos do Futebol, devo, vez ou outra, exercer a decantada imparcialidade científica do pesquisador.

Fato é que, em um despretensioso final de tarde, regado a uma cerveja gelada com tiras de presunto espanhol, me atrevo a dizer, com ares de seriedade, que a tríplice coroa cruzeirense não deveria ostentar legitimidade. A princípio, a namorada imaginou que fosse apenas mais uma zoação clubística, emergida de algum recalque escondido no inconsciente. Mas insisti. E desfiei minha argumentação, que apresento a seguir.

Primeiro, que a determinação do título “tríplice coroa” não tem nenhum caráter de oficialidade, sendo uma “invenção” (até apelei para Hobsbawm, ao sentir o olhar desafiador e incrédulo da companheira). Segundo, que por aqui não se obedece a critérios definidos por uma entidade reguladora (CBF ou FIFA, por exemplo). Expliquei  ainda que aqui, em terras brasilis, apenas copiamos uma invenção europeizada, e que, pra variar, copiamos mal e porcamente. Lá, ao menos, existe um critério definido (e consensualmente aceito, ainda que tácito), que é: dois campeonatos nacionais e um continental. Para ilustrar, no caso da Espanha, a tríplice coroa é concedida ao clube que vencer o Campeonato Espanhol, a Copa do Rei e a Champions League, ou ainda na Inglaterra, equivalente a Premier League, Copa da Inglaterra e Champions League.

A bem da verdade, para registro textual, devo dizer que apenas 10 vezes uma equipe conquistou a tríplice coroa europeia: o Barcelona da Espanha duas vezes, em 2008–09 e em 2014-15; o Celtic da Escócia em 1966–67, o Ajax da Holanda em 1971–72, o PSV Eindhoven (também da Holanda) em 1987–88, o Manchester United da Inglaterra em 1998–99, Internazionale da Itália em 2009–10, o Bayern de Munique da Alemanha em 2012-13 e o FC Porto por 2 vezes em 2002-03 e em 2010-11.

Manchester United
Na temporada 1998-99, o Manchester United conquistou a Champions League, Premier League e FA Cup. Foto: Reprodução Twitter

E aqui no Brasil, o que dizem os registros de clubes que se arvoram ao direito de ostentar tal título? Fazendo uma pesquisa rápida no Pai Google, é possível encontrar a seguinte lista:

Palmeiras 2020 – Paulista, Copa do Brasil e Libertadores

Flamengo 2019 – Carioca, Brasileirão e Libertadores

São Paulo 2005 – Paulista, Libertadores e Mundial

Cruzeiro 2003 – Mineiro, Copa do Brasil e Brasileirão

Paysandu 2002 – Paraense, Copa Norte e Copa dos Campeões

Grêmio – 1996 – Gaúcho, Brasileirão e Copa Sul-Americana

Palmeiras 1993 – Paulista, Rio-São Paulo e Brasileirão

São Paulo 1993 – Libertadores, Mundial e Supercopa Sul-Americana

São Paulo 1992 – Paulista, Libertadores e Mundial

Flamengo 1981 – Carioca, Libertadores e Mundial

Santos 1968 – Paulista, Recopa dos Campeões Intercontinentais, Supercopa Sul-Americana e Torneio Roberto Gomes Pedrosa (reconhecido como Brasileirão)

Santos 1963 – Taça Brasil (reconhecido como Brasileirão), Rio-São Paulo, Libertadores e Mundial

Santos 1962 – Taça Brasil (reconhecido como Brasileirão), Libertadores e Mundial

Bahia 1959 – Baiano, Torneio Norte-Nordeste e Brasileirão.

 E é exatamente ao analisar essa relação que teço centralmente a minha crítica. Se é para copiarmos a “tradição inventada” europeia (salve, Hobsbawm), que façamos de forma superposta. Ou seja, a tríplice coroa brasileira deveria ser concedida ao clube que ganhasse, em uma mesma temporada, o Campeonato Brasileiro, a Copa do Brasil e a Libertadores da América. O brasileiro avacalhou com o negócio. Banalizou a tal da tríplice coroa. Basta ganhar três campeonatos numa mesma temporada que lá vem camisa bordada com a insígnia real. Seguindo a minha lógica, a tríplice coroa brasileira seria uma conquista inédita (e portanto, nem o Flamengo, nem o Palmeiras, nem o São Paulo e muito menos o Cruzeiro deveriam ostentá-la).

Parei para respirar um pouco e notei a feição avermelhada da namorada. Ela então contra-argumentou. Pautou sua narrativa na tentativa de validação do campeonato estadual (que os próprios cruzeirenses, sempre que o perdem, chamam de Ruralzão). Disse que historicamente os Estaduais concederam signo, símbolo e significação aos principais clubes do país. Que se não fossem os campeonatos regionais, em um país de território continental, a forja e a constituição do pertencimento clubístico jamais seria possível. Um golaço argumentativo (avisei que era inteligente, além de linda, né?).

Eu, que me arvoro a estudar o futebol na perspectiva historiográfica, sabia que ela tinha razão. De fato, os campeonatos estaduais, durante muito tempo (diria que do início do século XX até a instituição da Copa do Brasil, em 1991), se revestiram de importância e glamour, dando aos clubes uma notória emulação, recrudescimento do pertencimento clubístico e ainda retorno financeiro.

Mas tive que pedir a tréplica (não a tríplice), para afirmar que isso não existe mais. Os grandes clubes não se importam mais com os campeonatos regionais (notoriamente causadores de prejuízos aos seus cofres). Inclusive, que se pudessem optar, sequer os disputariam, o fazendo estritamente por obrigação contratual.

Este debate não é novo (é novo apenas para o círculo restritíssimo entre mim e minha namorada), mas não representa nenhuma novidade no universo dos viventes futebolísticos. Neste debate, me coloco ao lado daqueles e daquelas que entendem a menor importância que os estaduais representam nos dias de hoje (não é questão de ser contra ou a favor dos estaduais, mas de que ele não cabe no novo ordenamento do futebol brasileiro, ao menos para os chamados grandes clubes). Nas palavras do jornalista Tim Vickery:

“É inegável que os estaduais tiveram uma importância histórica e ajudaram muito a desenvolver o futebol no Brasil. Mas também é indiscutível que a hora deles passou. Na minha cabeça, eles morreram junto com o Plano Real. Em um mundo onde dois mais dois são quatro (com acréscimo de juros), os estaduais logo se descobrem inúteis. É verdade que algumas finais e os grandes clássicos ainda podem empolgar. Mas, no contexto do lixo que os envolve, eles têm sido tão raros agora que podemos compará-los com o anel de ouro engolido pelo cavalo. Dá para recuperar quando sair do outro lado, mas primeiro é preciso vasculhar muita coisa desagradável”.

Pois é: quanto vale um estadual? Uma coroa? Penso que não. No contexto do futebol atual, onde o mercado e o espetáculo são determinantes, considerar a conquista do estadual com peso suficiente para se juntar à tríplice coroa, me parece uma nota de conveniência de ocasião. A CBF bem que podia acabar com essa baderna e se posicionar, estabelecendo critérios oficiais e instituindo de fato a Tríplice Coroa brasileira. Até lá, vou seguir acreditando que o Cruzeiro não tem mesmo tal honraria.

Cruzeiro 2003
Cruzeiro de 2003. Foto: Reprodução

Abrimos outra cerveja, e ela me pergunta:

– Mas se o Galo ganhasse o Mineiro, o Campeonato Brasileiro e a Libertadores este ano? Você iria dizer que não é uma tríplice coroa?

Apenas respondi:

– Meu amor: se o Galo ganhar só o Campeonato Brasileiro já seria uma Tríplice Coroa.

Ela riu. Eu ri. Sabemos que o jogo nunca acaba. E esse é exatamente o fascínio maior dessa coisa maluca chamada futebol: a sua infinitude…

 

Referências

https://esporte.ig.com.br/futebol/2021-03-09/confira-os-times-brasileiros-que-conquistaram-a-triplice-coroa.html

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/01/140115_coluna_timvickery_estaduais_tv

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Georgino Jorge Souza Neto

Mestre e Doutor em Lazer pela UFMG. Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas/GEFuT-UFMG. Membro do Laboratório de Estudo, Pesquisa e Extensão do Lazer/LUDENS-UNIMONTES. Membro do Observatório do Futebol e do Torcer/UNIMONTES. Torcedor do Galo...

Como citar

SOUZA NETO, Georgino Jorge de. A Tríplice Coroa e a Legitimidade dos Campeonatos Regionais: quanto vale um Estadual?. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 55, 2021.
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