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A vida cinematográfica de Bert Trautmann

Nem toda boa história vira filme, mas a extraordinária vida de Bert Trautmann é um roteiro cinematográfico digno das telonas e, não à toa, realmente virou película. O filme “The Keeper”, de 2019, conta a trajetória pouco comum do goleiro alemão.

Mesmo para os melhores roteiristas seria difícil criar um enredo em que o protagonista serviu a Luftwaffe, Força Aérea nazista, foi capturado pelo exército britânico, feito prisioneiro de guerra pelos Aliados, encontrou no futebol sua redenção como ídolo do Manchester City e ainda recebeu a Ordem do Império Britânico.

Para além do filme, ao olhar a carreira do lendário goleiro alemão Bert Trautmann, ídolo do Manchester City, é possível entender o agradecimento que a maioria dos boleiros faz à bola. Não fosse o futebol, a vida de Trautmann teria sido muito diferente.

Escultura de Bert Trautmann no Museu do Manchester City. Foto: Wikipedia.

Antes dos gramados, o lado errado da Guerra

Causa estranhamento o fato de o goleiro ter feito sua estreia apenas aos 25 anos de idade, mas o que se descobre ao buscar o que aconteceu na vida desse alemão antes de iniciar nos gramados causa ainda mais espanto.

Nascido em Bremen, em 22 de outubro de 1923, Bernhard Carl Trautmann fez parte da Juventude Hitlerista, pois como muitos jovens alemães daquele período, integrou equipes atléticas ligadas ao nazismo. Mais tarde, ao completar a maioridade, em 1941, com o avanço da Segunda Guerra Mundial, foi obrigado a se alistar como paraquedista na Luftwaffe.

O jovem Bert Trautmann foi enviado ao Front Oriental e durante três anos combateu a União Soviética. Depois da derrota para o Exército Vermelho, foi enviado à Normandia, onde foi capturado pelos britânicos e feito prisioneiro após uma dura derrota nazista que aniquilou praticamente a tropa inteira. Trautmann foi um dos 90 sobreviventes de um regimento de mais de 1000 homens.

Do lado errado da história, ainda que sem ligações ideológicas com o nazismo, impressiona o fato de Bert Trautmann ter combatido nas duas frentes mais sangrentas da Guerra e ter escapado vivo.

Sob custódia dos britânicos, Trautmann foi levado para o campo de Lancashire e permaneceu preso até 1948, quando recusou ser repatriado à Alemanha e ganhou liberdade no Reino Unido.

A chegada ao futebol e a trajetória de de nazista à ídolo citizen

Em Lancashire, o alemão recomeçou sua trajetória trabalhando na área rural no campo de prisioneiros. Entre os trabalhos agrícolas, Bert também dava espaço a outra atividade: o futebol. A boa performance entre os prisioneiros o levou a jogar no gol do pequeno St Helens Town, clube amador da cidade, e em pouco tempo suas atuações seguras chamaram a atenção de outros times.

Até que no dia 7 de outubro de 1949, o Manchester City ofereceu um contrato profissional a Trautmann. A Guerra acabara há apenas quatro anos e Bert Trautmann havia saído de um prisioneiro de guerra para ser goleiro de um dos clubes mais tradicionais da Inglaterra.

Assim que a contratação foi anunciada, torcedores do City protestaram. As cicatrizes da Guerra ainda eram muito recentes, apenas quatro anos depois do fim do conflito, e não era fácil para os Citizens admitirem, de uma hora para outra, terem um nazista no próprio time.

Uma passeata com mais de 20 mil pessoas chegou a ser organizada para pedir que Trautmann não vestisse a camisa do Manchester City. Milhares de cartas foram enviadas à sede do clube pedindo o cancelamento do contrato. No entanto, foi o pedido de Eric Westwood, capitão do Citizen e veterano do exército britânico, que amenizou os ânimos.

A cada partida, Trautmann provava seu talento e conquistava a torcida do City. Porém, as torcidas rivais provocavam com os gritos de “nazista” em todas as partidas contra o Manchester City.

Ninguém defendeu o City como Bert Trautmann

Trautmann já era um nome respeitável no Manchester City quando viveu seu momento mais emblemático no clube e um dos momentos mais dramáticos e heroicos da história do futebol mundial.

O ano era 1956, o Manchester City disputaria a decisão da FA Cup contra o Birmingham, no icônico estádio de Wembley. O City construiu a vantagem de 3 a 1 com certa tranquilidade até que aos 28 minutos do segundo tempo, Peter Murphy, atacante do Birmingham, invadiu a área do City e, frente a frente com o goleiro alemão, tinha uma grande oportunidade para diminuir o prejuízo.

Velho Wembley e suas clássicas torres gêmeas, em foto tirada em 1996, por ocasião da Eurocopa disputada na Inglaterra. Foto: Wikipedia.

Bert Trautmann não pensou duas vezes e se atirou nos pés do atacante que não conseguiu parar o movimento a tempo e atingiu com sua perna a cabeça do goleiro. Trautmann caiu desacordado e, quando enfim recobrou a consciência, estava completamente atordoado.

Além de confuso, o goleiro estava com o pescoço visivelmente torto e reclamava de muitas dores, enquanto segurava a cabeça a todo momento. Mesmo assim, em razão da inexistência de substituições à época, permaneceu em campo por mais 17 minutos até o apito final que decretou a conquista do Manchester City.

Após a partida, o goleiro foi encaminhado ao hospital e um raio-x revelou a gravidade da lesão: cinco vértebras deslocadas. Ou seja, por 17 minutos, Bert Trautmann defendeu o Manchester City com o pescoço tecnicamente quebrado, algo impensável atualmente. Em 1956, mesmo ano da conquista da FA Cup, Bert Trautmann foi eleito o “Futebolista Inglês do Ano” pela Football Writers’ Association.

A consagração

A idolatria só aumentava com o passar dos anos e, em 1964, aos 41 anos, quando decidiu abandonar os gramados, a imagem de nazista já havia sido apagada pelo sentimento de uma torcida que via em Trautmann um torcedor em campo defendendo o City até com a própria vida. Se 15 anos antes, 20 mil pessoas foram às ruas contra sua contratação, na despedida, em Maine Road, 60 mil agradecidos torcedores aplaudiram o ídolo.

A gratidão permitiu que tempos depois da aposentadoria, em 2004, a rainha Elizabeth II tenha condecorado Bert Trautmann com a Ordem do Império Britânico, pelos serviços prestados ao futebol britânico e por sua importância na reaproximação entre Alemanha e Reino Unido no pós-guerra.

Em campo, o goleiro foi referência para sua geração, o lendário Lev Yashin chegou a declarar “Só existiram dois goleiros de classe mundial. Eu fui um, e o outro era aquele jovem alemão que jogava em Manchester – o Trautmann”. Também serviu de influência para as gerações seguintes como Gordon Banks, que se declarou muitas vezes um discípulo de Trautmann.

Depois de se aposentar, tentou a carreira de treinador, mas não repetiu o mesmo sucesso dos tempos em que defendia as metas do City. Perambulou por equipes modestas e terminou sua passagem pelo banco de reservas dirigindo seleções como Myanmar, Libéria e Paquistão.

Entre 1949 e 1964, em 15 anos defendendo o gol do Manchester City, o goleiro alemão entrou no ranking dos jogadores que mais vezes vestiram a camisa dos Citizens na história, Bert é o 4º colocado com 545 partidas.

Bert Trautmann morreu em 19 de julho de 2013, na cidade de La Llosa, na Espanha, aos 89 anos de idade e depois de escrever para sempre e de maneira inconteste seu nome na lista dos grandes ídolos do Manchester City.


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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. A vida cinematográfica de Bert Trautmann. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 4, 2020.
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