A violência do singular: o esporte e o papel da masculinidade predominante
Tomarei a liberdade da escrita para versar sobre uma temática que muito me afeta e inquieta, a saber, o esporte e a vigência de uma masculinidade singularizada no campo esportivo. A princípio, adianto que a proposta aqui anunciada é, declaradamente, ensaística e exploratória. O intuito é gerar a problematização e, sobretudo, a reflexão.
Há algumas semanas, assisti a um documentário nomeado The mask you live, dirigido por Jennifer Siebel Newsom, que aborda a questão da formação das crianças americanas no interior de uma cultura com traços, arraigadamente, patriarcais. De maneira provocativa, Jennifer nos convida a refletir e questionar sobre as imposições sociais que supervalorizam comportamentos hipermasculinizados. Essa supervalorização exerce diversos efeitos na formação de crianças no que tange a verbalização e a relação com os afetos e os sentimentos de forma geral. Um detalhe chamou, particularmente, minha atenção. De forma reiterada e objetiva, o esporte é posto em pauta, como um local ambivalente. Em certa medida, ele pode reforçar e estimular uma certa singularização de masculinidade agressiva, viril e performática. Todavia, dada essa condição primeira, o esporte também pode ser muito potente no que tange à reflexão e à problematização da cristalização desse papel dominante e dessa singularidade do ser homem. Ressalto que a proposta dessa obra americana é semelhante ao projeto que deu origem ao documentário brasileiro chamado: O silêncio dos homens.
O esporte é presente na minha vida desde criança. Transitei entre o caratê, capoeira, muay thai, futsal, natação, atletismo até que parei no vôlei e lá permaneci por longos anos. Durante esse período, ouvi, recorrentemente frases, como “bate feito homem”; “não vai chegar a lugar nenhum com essa mão de moça”; “sai daí, mulherzinha”; “aqui é lugar de homem”; “quer moleza? Faz balé”; “Isso não pode. É coisa de menina”. Essas são algumas poucas de muitas frases que vários meninos, assim como eu, ouvem, ouviram e ainda ouvirão em diversos setores e o contexto esportivo, de certa forma, potencializa esse tipo de comentário. Por mais normalizadas que essas frases sejam na nossa sociedade, os seus efeitos são incalculáveis. A nossa sociedade normaliza frases e comportamentos que, incalculavelmente, estruturam nossa forma de agir, de pensar e de sentir.
O efeito colateral de todos esses ditames é uma ojeriza às características tidas como femininas, uma incapacidade de lidar com os sentimentos, uma impotência de explorar e de sentir o mundo erógeno e gigantesco do próprio corpo. Uma fixação no falo e uma ausência gritante da fala. Uma redução do todo para uma paranoia em ser e só fazer coisa de homem ainda que isso custe um alto preço psíquico.
Na construção dessa identidade masculina com todos os adjetivos másculos, as características tidas e construídas contingencial e historicamente como boas são, automaticamente, coladas. Dessa forma, tudo aquilo que fugir dessa conjuntura é tido como ruim ou errado, logo tem de ser evitado. A singularização e sedimentação dessa ilusória identidade com pretensão universal e totalizante é danosa, pois descarta toda e qualquer forma de ser homem que fuja desse padrão. Não há espaço para fraquejadas. O esporte, por sua vez, tem contribuído, muitas vezes, para enfatizar das mais variadas maneiras esse script do dever-ser homem e do dever-ser mulher. Os demais corpos que não se adequam a essa fôrma são tidos como abjetos e não raramente são alvo de chacotas.
Diante do exposto, haveria alguma relação entre os episódios de agressões, brigas entre atletas, entre atletas e arbitragem e demais possibilidades com essa masculinidade singularizada? A agressividade e, muitas vezes, a violência seria uma característica valorizada e, de certa forma, aceita nesse cenário másculo e viril? Dificilmente vemos notícias de violência protagonizadas por mulheres no cenário esportivo. Seria esse mais um indício do que se espera da performatização desses papéis e desse dever-ser homem e dever-ser mulher?
Seria injusto e leviano da minha parte, além de ser uma enorme incoerência lógica abordar o esporte somente por um viés imutável. Penso que o esporte possa ser mais um local propício e profícuo para problematizarmos essas questões. Uma forma de repensar. Afinal de contas, jogo bom é jogo jogado em meio ao caldeirão de diferenças. Pluralizar esses corpos e essas formas de sermos humanos. Enfim, fica o convite para repensarmos essas formas e essas fôrmas e, quem sabe assim, possamos dar vez e voz às diversas maneiras de ser, de seres.