Para começo de conversa, apresentamos nosso genuíno personagem a partir da sua semelhança com Pluto, o cachorro criado por Walt Disney, do qual Aldair lhe herda o apodo. Pluto é a versão animada de um cão da raça bloodhound, um exímio farejador. Como zagueiro, a função de cão de caça com certeza lhe caía bem. No entanto, neste escrito, Aldair Santos do Nascimento revela que por detrás de sua pelagem canina se esconde um canídeo superior, um lobo. Quando seu pai, seu Carmerindo, o colocou em um ônibus na cidade de Ilhéus (BA) com a intenção de que esse o levasse à capital carioca para que seu filho pudesse fazer testes no Vasco, seu clube do coração, ele não imaginava que Aldair se tornaria um autêntico lobo.
Na mitologia grega Lycaón era um rei que venerava Zeus. No entanto, certa vez o rei, em oferenda, sacrificou uma criança e a oblatou ao deus do olimpo. Zeus, extremamente furioso, castigou Lycaón transformando-o em um lobo. Daí vem o termo licantropia e o fundamento para as mais variadas versões do mito do lobisomem. No arquétipo que fundamenta a lenda do lobisomem, o homem aprisionado à grande mãe provedora (a loba) não desenvolve suas características masculinas viris e se torna um ente desvitalizado (RAMOS et al, 2005). “Na ‘sexta-feira de lua cheia’ a noite em que o símbolo da força feminina atinge o auge nos céus, as defesas do ego são assaltadas por instintos incontroláveis” (RAMOS et al, p. 179). O homem perde então o seu controle e é possuído pelas forças lupianas e sai a “devorar” as mulheres.
Com seu futebol “classudo”, Aldair foi selecionado na “peneira” cruz maltina, porém, não gostando do tratamento recebido nos seus primeiros quatro meses em São Januário, decidiu largar o clube. Ao seu pai, para não o magoar, disse que fora dispensado. É a partir desse movimento de recusa ao Vasco que Aldair chega ao Flamengo, em 1985, pelas mãos do ex-jogador rubro negro, Joarez dos Santos, que o observava nas peladas nos campos de várzea de Duque de Caxias. Aqui a confirmação de uma manifestação que ocorre na lenda do lobisomem: “Quando o homem é transformado em lobo, este perde sua sombra”. No Flamengo, Aldair conquistou dois títulos: o Campeonato Carioca de 1986 e o Campeonato Brasileiro de 1987.
No Carioca de 1986 entrou em campo na terceira rodada, em um clássico contra o Botafogo, e não saiu mais. De modo alternado, atuou o restante do certame ao lado de Mozer e de Leandro. Com seu jeito introspectivo e calado, Aldair foi conquistando a torcida do Mengão. Nesse mesmo ano, o Fla sagrou-se campeão em cima do time de seu pai, o Vasco da Gama. Após dois empates em 0x0 o Flamengo venceu a terceira partida por 2×0 e foi campeão.
O lobo é um animal que, desde a antiguidade, carrega traços que o ligam à maldade, a um caráter perverso, impetuoso e inescrupuloso, por isso muitos o relacionam ao diabo (RAMOS et al, 2005). Aldair era exatamente isso, um zagueiro ousado com quem quisesse se aproximar de sua meta, declaradamente era inimigo do gol em sua baliza, tinha o caráter inescrupuloso de caçador. Na religião do futebol, em que o gol é o auge da ritualística, Aldair era perverso, tentava impedir de todas as formas que os adversários fizessem o gol. No entanto, historicamente, ao lobo também foram atribuídos signos positivos. Exemplo disso são as tribos norte-americanas onde os pajés usam sua pele e seus dentes como amuleto de sorte, proteção e cura. Aldair também personificava essas características do lobo nas várias vezes que aparecia no ataque para fazer gols para sua equipe. Inesperadamente, sem deixar rastros (já que não tinha sombra), aparecia de surpresa para abater a bola para dentro da meta adversária.
Em 1987, Aldair fez parte da escrete rubro negra que venceu o campeonato brasileiro. Ali formou matilha no sistema defensivo do Fla com Zé Carlos, Edinho, Leandro, Jorginho, Leonardo, Andrade, dentre outros que protegiam o Flamengo da meia cancha para trás. Quem passasse do meio campo com a intenção de pisar na área do Flamengo, sabia que só lograria tal feito depois de receber muita patada e mordidas capazes de quebrar ossos. Aldair era um zagueiro diferenciado, até hoje figura na seleção de craques da história do Fla, sendo eleito um dos maiores zagueiros a vestir o manto do clube. Era um exímio caçador de atacantes acima da média, seus maxilares de lobo abatiam de modo certeiro, dava o bote na bola com muita precisão. Suas orelhas triangulares e os olhos oblíquos, tal qual as do lobo, lhe davam uma vantagem em relação aos adversários, pois os colocavam precisamente no seu radar de captura. Sua visão penetrante conseguia mapear o movimento de sua presa em campo, assim, seu bote era sempre letal. Aldair emboscava de todos os lados, sabia “patear” com as duas pernas.
Uma coisa que Aldair aprendeu com os lobos, é sua estratégia fria e calculista. Afinal, mesmo sendo um animal que tem a alcunha de devorador, esse precisa ser astuto para se aproximar de suas presas e dar o bote. Não pode ser afoito, é necessário ser perspicaz, e para tal, precisa dominar a ânsia da voracidade, necessita ser acometido e previdente, tal como o gélido e concentrado Aldair o era em campo. Nas fábulas infantis com aparição de lobos, geralmente em contraposição a personagens ingênuos e indefesos, a característica da voracidade é muito presente: “O lobo e os sete cabritinhos”, “O lobo e os três porquinhos”, “O lobo e a chapeuzinho vermelho”. “Essas histórias mostram que o lobo, quando se deixa dominar pela voracidade desmedida e por sua avidez desenfreada, não utiliza os recursos evidentes de inteligência e esperteza” (RAMOS et al, 2005, p. 157).
A troca de clube, feita por Aldair no início da carreira, já era indício de sua condição de Lobo, com capacidade de raciocínio acima da média e sentidos de predador nato – olfato mais apurado, visão e audição mais desenvolvidas. No Flamengo, jogou de 1985 a 1989, quando migrou para a Europa. Seu primeiro clube no velho continente foi o Benfica de Portugal, onde chegou para substituir ex-companheiro de Flamengo, Mozer. Mozer foi negociado pelo Benfica e estava indo para o futebol francês. Aldair chegou para compor a zaga ao lado de Ricardo Gomes. Duas temporadas depois, Aldair imigrou para o futebol italiano, foi jogar no clube que o consagrou como “o grande lobo”, a Roma.
Nada mais emblemático e harmônico com nosso personagem, afinal, o símbolo da capital italiana é a Loba Luperca[1], que amamentou os gêmeos Remo e Rômulo, este último, fundador da capital italiana. Os torcedores do Roma são conhecidos como Lupi (lobos), pois a palavra lobo deriva do latim lupus. O símbolo da esquadra da Roma, é o mesmo da capital do país, a Loba e os 2 gêmeos. Em 1990, Aldair chegou ao Roma para iniciar sua história gloriosa. Pelo clube foram 415 partidas e um total de três títulos nacionais: Copa da Itália 1990-91, Campeonato Italiano 2000-01 e Supercopa Italiana de 2001. Em 2003, quando o filho da Roma Negra[2] encerra sua passagem pelo clube, a Roma aposenta a “pele de Aldair”, mas nenhum outro jogador poderia utilizar a 6 do exímio zagueiro. No entanto, a pedido do próprio jogador, em 2013, o número 6 volta a figurar na camisa do Roma.
No contexto mitológico há outros contos em que a loba aparece como símbolo do princípio materno provedor. Tura, o fundador da Turquia e Siegfried, herói alemão, também foram amamentados por uma loba (RAMOS et al, 2005). O personagem Mogli, do conto “O livro da selva[3]” escrito pelo britânico Rudyard Kipling, conta a estória de um menino que teve seus pais devorados por um tigre (Shere Kahn) e que então fora criado por uma mãe loba (Akela) que o encontrou. Além dos lobos (a alcateia de Akela), o urso (Baloo), a cobra (Kaa) e a pantera (Bagheera) também ajudaram na criação do menino, protegendo-o do vilão da história, o tigre que matara seus pais.
Em 2004, Aldair, ainda no futebol italiano, jogou umas poucas partidas pela equipe do Genoa, onde aposentou pela primeira vez chuteiras. Ao retornar ao Brasil, Aldair, a pedido de sua esposa capixaba, voltou aos gramados em 2005 para atuar pelo Rio Branco, time do coração de sua amada. Nesse contexto, a esposa de Aldair demonstra ser um tipo de “Mulher Selvagem”, daquelas descritas na obra “Mulheres que correm com lobos”. O citado livro de Clarissa Pinkola Estés (2004) é um texto que tensiona, de modo contundente e poético, através de contos, a cultura patriarcal e moralista que submete a mulher ao homem e à imoralidade sexual[4].
De 2007 a 2010, a convite de seu amigo Massimo Agostini, Aldair ainda atuou pelo Murata de San Marino, onde aposentou-se definitivamente. A partir de então, passou a figurar em campeonatos de futevôlei. Com a seleção brasileira, Aldair também fez suas caçadas. Seu principal abate foi o título[5] da Copa do Mundo de 1994, disputada nos Estados Unidos. Era uma das mandíbulas da zaga daquele time, a outra era Márcio Santos – parceiro com quem fez dupla de zaga na equipe tetracampeã. Ali reencontrou parte daquele Flamengo campeão de 1987: Leonardo, Bebeto, Zinho e Jorginho.
Entre os predadores do futebol, Aldair certamente estaria um nível acima na cadeia alimentar, disputava a bola como quem leu e incorporou o dito popular “com a fome de quem tem um lobo na barriga”. Para a nação flamenguista, um lobo de pelagem nobre e olhar soberano. Te homenageamos, pelas cicatrizes que tens em seu corpo das jornadas de caçadas com o nosso manto.
Notas
[1] A loba Luperca é também conhecida como Loba Capitolina, pois a sua imagem mais famosa é a escultura talhada em bronze e mantida nos Museos Capitolianos. Os Museos Capitolianos são um conjunto de edifícios que guarda uma vasta quantidade de obras de arte italiana.
[2] Na música “Reconvexo”, Caetano Veloso batizou a Bahia como “Roma Negra”, enquanto derivação da “Roma africana”. Essa expressão foi concedida a esse estado pela mãe de santo Eugênia Ana Santos, também conhecida como mãe Aninha, devido às referências religiosas desses dois lugares – Roma, enquanto centro do catolicismo, e a Bahia, enquanto centro do culto aos orixás.
[3] O inglês Baden-Powell, idealizador do movimento escoteiro, utilizou a obra de Kipling para ser a base do escotismo, no qual os lobos também são referenciados. Essa obra literária também foi transformada em filme, em diversas versões.
[4] Neste sentido, vale mencionar que o termo lupula (pequena loba) era designado às bruxas transgressoras da moral na Idade Média. O termo lupanare (prostíbulo) também é oriundo do mesmo radical latino (RAMOS et al, 2005).
[5] Pela seleção brasileira, Aldair também ganhou a Copa América de 1989 e 1997 e a Copa das Confederações de 1997. Aldair também é medalhista olímpico pela seleção brasileira, conquistou a medalha de bronze nas Olímpiadas de Atlanta, em 1996.
Referências
ESTÉS, C. P. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
RAMOS, D. G.; DE BIASE, M. C. BALTHAZAR, M. H. M.; RODRIGUES, M. L. P.; SAUAI, N. M. L.; SAYEGH, R. R.; MALTA, S. M. T. C. Os animais e a psique: baleia, carneiro, cavalo, elefante, lobo, onça, urso (vol. 1). 2 ed. São Paulo: Summus, 2005.
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