135.1

Amor à bandeira: símbolos nacionais e a seleção pós-2014

Ana Paula Florisbelo da Silva 31 de agosto de 2020

Junho de 2018 – Há quatro anos uma bandeira flamula no poste de energia da casa ao lado. Mas já não flamula com a mesma vivacidade de antes: está rasgada, e seus farrapos se encontram enrolados ao poste a qual está presa. Uma bandeira verde e amarela que outrora tivera cores intensas e vivas, mas agora se encontra desbotada. Fora grande e retangular, mas agora não passa de um pequeno retalho. Nos dias de vento forte a ouvia sacudir, estalada pelo vento, e quando finalmente sua dança era interrompida por se prender no poste ao qual está afixada, o vizinho que a colocou ali cuidadosamente tinha o trabalho de a desenrolar, para que pudesse se agitar orgulhosa e livre ao vento novamente. 

Mas depois do fatídico 7 a 1 ninguém mais se importou com ela. Presa ao poste, nunca mais foi desenrolada. O tempo tratou de castigá-la e lhe tirou as cores vibrantes. Seu tecido foi se rasgando com a ação do tempo. Não se deram ao trabalho de retirá-la dali ao fim daquela copa de 2014. E quatro anos depois ela ainda está lá, com aspecto derrotado e envelhecido. Ninguém a substituiu por outra. A esperança verde e amarela não se renovou. Faltando alguns dias para a copa da Rússia, não vi outras bandeiras novas tremulando pela vizinhança ou enfeitando carros, nem ruas pintadas.

As seções do comércio com objetos verde e amarelo para se torcer pelo Brasil não venderam tão bem, e permanecem encalhadas nas lojas. A camisa de seleção que mais foi vendida no mundo, às vésperas da Copa de 2018, fora a francesa. A camisa da seleção brasileira a se esgotar nas lojas credenciadas pela Nike fora a versão azul do uniforme, e não a tradicional canarinha. Seria a menor quantidade produzida da segunda camisa a razão de se esgotar tão rápido? Ou teria algum fator de rejeição à tradicional? O gosto pela camisa azul seria uma questão puramente estética? Existe uma grande relação entre a identidade de uma pessoa e aquilo que ela veste. Associamos nossa imagem àquilo com o qual nos identificamos. O brasileiro se identifica com a seleção brasileira? Com os símbolos nacionais? Com o Estado ao qual pertence?

Agosto de 2020 – O tratamento e a relação com os símbolos nacionais nos mostram muito sobre o envolvimento, o apreço e a capacidade mobilizadora da ideia de nação. Por trás de toda manifestação nacionalista há uma consciência coletiva de um grupo, com planos de futuro e características culturais em comum. Sob o futebol de seleções, as diferenças grupais dentro de um país tendem a ser anuladas. As diversas partes da nação se unem em torno de sua seleção, e o futebol se torna um elemento identitário, capaz de aglutinar diferentes parcelas de um povo (ao menos temporariamente).

A capacidade representativa da seleção brasileira, de despertar identificação e mobilizar torcedores, no entanto, está em baixa. Poderíamos dizer o mesmo com relação ao Estado brasileiro, fracionado desde as últimas eleições. Se cria, com uma seleção nacional, uma identidade relacionada a cultura e ao povo do território que representa. Como poderia, então, o brasileiro se identificar com uma seleção que joga mais no Emirates Stadium em Londres do que em estádios de seu próprio país? Como se sentiria parte de uma seleção que se tornou elitizada, e pouco joga em casa? Ou representado por um time nacional cheio de jogadores que nunca atuaram em um dos times nacionais dos milhões de corações brasileiros, ou que saíram do país precocemente?

De 2014 para cá tomamos diversos 7 a 1, dentro e fora dos campos de futebol. O placar se tornou uma metáfora recorrente do brasileiro desde então. Os símbolos nacionais não nos enchem de orgulho mais, sua cooptação política nos lembra o que há de pior na nação. O que era nosso foi vendido, saqueado, roubado. Nossos craques, nossos bens naturais, nossa gente são desvalorizados. Voltamos ao complexo de vira-lata do qual falava Nelson Rodrigues, após a derrota da seleção na Copa do Mundo de 1950.

Algo dentro de nós e ao redor de nós se quebrou e não pode mais ser consertado, foi se desgastando, sendo esquecido e ignorado, como aquela bandeira no poste da casa do vizinho. Enxergo sua permanência ali como um ato simbólico de rejeição, em que o esquecimento demonstra-lhe que não mais tem valor e importância. Para mostrar-lhe que o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. Pois se alguém a retirasse dali com raiva, puxando-a sem cuidado e despedaçando-a, esse ódio estaria apenas disfarçando um amor frustrado, e a verdade é que o amor acabou. 

Um pequeno farrapo da bandeira continua ali, e toda vez que a vejo trago a memória tudo aquilo que desejo esquecer. Em relação a seleção, mas também em relação a nação. Lembro o quão orgulhosa e esperançosa parecia aquela bandeira tremulando, e juntamente com ela a fé de seus torcedores em 2014. Mas agora é uma metáfora das nossas contínuas derrotas e daquilo que desejamos superar, lembrando-nos que aquela bandeira pode ser eu, você, nós. Pode ser nosso amor à pátria ou à seleção. Nossa esperança no futebol brasileiro, na nação, na política, na economia, na humanidade.

(Que o leitor me perdoe o salto de dois anos na crônica. Assim como a bandeira no poste vizinho, ela permaneceu esquecida e ignorada. A primeira foto da bandeira, em 2014, rasgada pela metade, se perdeu. Hoje, o que resta dela é um pequeno tecido, demonstrado na foto abaixo. E foi um vislumbre dela que me relembrou esse texto e me levou a finalizá-lo).

Foto: Ana Paula Florisbelo da Silva
Foto: Ana Paula Florisbelo da Silva


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Ana Paula Florisbelo

Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão. Mestranda em História pela Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão. Pesquisadora de História da Espanha Contemporânea, com foco nos temas Ditadura Franquista, nacionalismo, identidades, política e futebol. Artista.

Como citar

SILVA, Ana Paula Florisbelo da. Amor à bandeira: símbolos nacionais e a seleção pós-2014. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 1, 2020.
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