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Bairro Vasco da Gama: onde o futebol e a cidade se encontram

Fernando da Costa Ferreira 29 de setembro de 2023

Avenida Roberto Dinamite, 10, bairro Vasco da Gama, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Noite de três de setembro de 2023. Milhares de pessoas comemoram o gol de pênalti convertido por Vegetti. Sim, o Vasco está em campo defrontando o Esporte Clube Bahia. Não, o jogo não tem como palco o Estádio de São Januário, mas sim a Arena Fonte Nova, em Salvador, a cerca de 1.600 quilômetros de distância.

Torcedores e moradores festejam e protestam em frente a São Januário e à Barreira do Vasco. Em destaque, um homem negro sem camisa e com os braços levantados. Ao fundo, bandeiras das torcidas organizadas tremulando.
Torcedores e moradores festejam e protestam em frente a São Januário e à Barreira do Vasco. Foto cedida por Julia Santos (@garotadasfotosvasco).

A festa/protesto começara horas antes em desagravo à punição infligida pela Justiça Comum, que se sobrepôs, à anteriormente imposta pela Justiça Desportiva, em razão de atos de violência e vandalismo ocorridos nas áreas interna e externa do estádio após a derrota sofrida para o Goiás, em 22 de junho.

O encontro de torcedores com moradores e comerciantes escreveu mais um capítulo na extensa relação futebol – cidade encontrada naquele local. A feição atual das porções do bairro Vasco da Gama compostas por São Januário e pela Barreira do Vasco, com suas alegrias, conflitos e carências constantemente expostas, reflete as lutas contra o preconceito e pelo direito à cidade e ao estádio travadas há quase um século.

Uma batalha antiga

Ao estudarmos o contexto associado à construção do estádio, podemos perceber que essa relação entre o futebol e a cidade é muito anterior à criação do bairro Vasco da Gama, em 1998. Ela remete à perseguição sofrida pelo clube desde 1923, com a conquista do campeonato da cidade do Rio de Janeiro, promovido pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), com uma equipe composta majoritariamente por negros, operários e brancos pobres.

No ano seguinte, o Vasco da Gama desiste de ingressar na Associação Metropolitana de Esportes Athléticos (AMEA), recém-fundada por América, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense por se recusar a dispensar os doze atletas com perfil considerado “inadequado” pela diretoria da nova associação. Segundo o regulamento, as equipes deveriam ser formadas por estudantes ou trabalhadores que não exercessem profissões subalternas (exceção feita aos operários, para poder acomodar os jogadores do Bangu). Havia também o veto à presença de atletas analfabetos (ainda que tenham sido contratados professores para ensinar os jogadores para que pudessem ao menos assinar a súmula das partidas de forma autônoma). O documento subscrito pelo então presidente José Augusto Prestes, onde explicita as razões para a desistência da entrada na AMEA, conhecido como Resposta Histórica, representa, para muitos, o maior “troféu” da história cruzmaltina e uma prova concreta da luta da equipe pela inclusão de jogadores negros e analfabetos.

Além destas restrições impostas à participação do Vasco da Gama nos campeonatos promovidos pela AMEA, havia também um artigo no regulamento da associação que somente permitia a filiação de clubes que apresentassem estádios em boas condições para a prática do futebol. O campo utilizado pelo Vasco na Rua Morais e Silva encontrava-se distante de cumprir tal requisito. Teve início uma bem-sucedida campanha de arrecadação empreendida por torcedores e dirigentes que culminou na construção de uma nova praça de esportes – a maior da América do Sul até então – para abrigar os “camisas negras” e a crescente massa que os acompanhava.

Com o dinheiro arrecadado, foi adquirida, em 1925, uma propriedade de aproximadamente 65.000 metros quadrados, “nos fundos” de São Cristóvão, uma porção decadente da então capital do país. Outrora conhecido como “bairro imperial”, há décadas se transformara em um bairro eminentemente industrial e proletário, habitado, em grande parte, por uma população operária. Antes mesmo da Proclamação da República, em 1889, o bairro perdera sua aura aristocrática, com a mudança das famílias mais abastadas para a Tijuca e bairros da Zona Sul carioca.

A escolha daquele local para uma obra de tamanha envergadura deriva da combinação de três importantes fatores: a disponibilidade de grandes terrenos em uma área menos valorizada de São Cristóvão; a facilidade de acesso proporcionada pelo transporte por bondes; a existência de uma infraestrutura “herdada” do período áureo do bairro.

Também é possível apontar alguns fatores secundários, tais como: a relativa proximidade com o antigo campo da Rua Morais e Silva e com a zona portuária (local de fundação do clube); a existência de uma numerosa colônia portuguesa em São Cristóvão; a identificação do bairro com Portugal, construída desde a chegada da Família Real à Quinta da Boa Vista, em 1º de janeiro de 1809.

Clara e Hamilton Malhano (2002) apontam um sério obstáculo relacionado à execução da obra. A proibição do então Presidente da República, Washington Luís, para a importação de cimento belga. Tal privilégio fora anteriormente concedido ao Jockey Club Brasileiro para a edificação da sua sede. Coube então à Cristiani-Nielsen, empresa responsável pela construção, misturar em cada pá de cimento, duas pás e meia de areia e três e meia de pedra britada, além de reduzir ao mínimo a quantidade de água utilizada. Menos de um ano após o lançamento da pedra fundamental, em 1926, no terreno que anteriormente abrigara uma chácara, foi inaugurado, em 21 de abril de 1927, o Estádio Vasco da Gama, popularmente conhecido como Estádio de São Januário.

Em 1931, tem início a ocupação de uma área localizada nas proximidades do estádio, que se intensificou na metade final da década seguinte. Surge então, a Barreira do Vasco, comunidade horizontal que cresceu de forma desordenada com as carências e problemas típicos das regiões que sofreram com a falta de políticas públicas eficientes nas áreas de habitação, transporte, segurança pública etc. A própria denominação da localidade deriva da proximidade física com a sede do clube e o estádio.

O bairro Vasco da Gama

A criação do bairro Vasco da Gama, em 1998, deixa explícita a influência do clube sobre aquela porção do espaço urbano carioca. A começar pelo processo de formação territorial incomum, na cidade do Rio de Janeiro, de nomear um bairro em homenagem a um clube e não o contrário (Bangu, Botafogo, Flamengo, Olaria etc.). A própria escolha do local, surgido a partir do desmembramento de parte do tradicional bairro de São Cristóvão, teve a centralidade concreta e simbólica exercida pelo estádio de São Januário como referencial utilizado para a sua delimitação. Afinal, caso o estádio tivesse sido construído em outra porção da cidade, esta seria escolhida para abrigar o novo bairro.

Um quarto de século após a sua criação, a relação entre o bairro e o clube tem se consolidado. Além da comunidade conhecida como Barreira do Vasco, desde janeiro de 2023, o endereço oficial da sede do Club de Regatas Vasco da Gama recebeu a denominação formal de Avenida Roberto Dinamite, 10, em homenagem ao maior ídolo da história cruzmaltina e ao número da camisa que envergava.

Foto da placa com o endereço Avenida Roberto Dinamite, 10. Ao fundo, a fachada da sede do Club de Regatas Vasco da Gama.
Fachada da sede do Club de Regatas Vasco da Gama, com a placa indicativa do endereço em destaque. Foto cedida por Leandro Fontes.

No período compreendido entre os anos de 2002 e 2004, realizei uma pesquisa junto aos moradores do então recém-criado bairro Vasco da Gama, que culminou com a dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ordenamento Territorial e Ambiental, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em resumo, constatei a existência de “dois bairros” dentro de um só.

O primeiro, formado pela população residente fora da Barreira, com predomínio de casas e pequenos prédios antigos de classe média, ocupados, em muitos casos, pela mesma família há décadas. O time do coração da maioria era o Vasco da Gama, porém, se mostravam contrários à criação do novo bairro, pois se identificavam com São Cristóvão, visto por eles como “bairro imperial”, ainda que ninguém tivesse idade para vivenciar aquele período.

O segundo, composto pelos moradores da Barreira do Vasco, apresentava perfil distinto. Desprovido de qualquer planejamento urbanístico, com pequenas casas “coladas” umas às outras e umas sobre as outras. A maior parte dos entrevistados não nascera no Rio de Janeiro (vinham principalmente da Região Nordeste), residia no local há poucos anos e nem mesmo torcia para o Vasco da Gama (traziam consigo a identidade clubística do seu sítio de origem). Por sua vez, ao serem questionados a respeito da criação do bairro, a maior parte, após responder que desconhecia a nova denominação, concordava com a homenagem. Afinal, “o estádio fica logo ali’ enquanto apontavam para a sede do clube.

De um lado da rua, parte do antigo ginásio e do muro do Club de Regatas Vasco da Gama. Do outro lado da rua, parte da Barreira do Vasco.
Parte do antigo ginásio e do muro do clube, com a Barreira do Vasco ao fundo. Foto do autor (outubro de 2002).

Para alegria (ou desespero) dos antigos moradores de fora da Barreira, foi promulgado o Decreto nº 28.302, de 14 de agosto de 2007, alterando a denominação do bairro de São Cristóvão para Bairro Imperial de São Cristóvão (ao qual eles formalmente não pertencem).

São Januário e a Barreira do Vasco

É inegável a relação de proximidade física e simbólica da comunidade com o clube. Em uma área com tantos problemas, os jogos realizados em São Januário constituem uma importante fonte de renda para parte da população local. Nos arredores do estádio, que resiste como “raiz” em meio a tantas arenas, essas datas geram inúmeras oportunidades para que trabalhadores formais e informais aufiram uma fonte de renda extra. Ainda que seu entorno seja considerado um local pouco amigável para torcedores rivais (inclusive com a inscrição “Território Hostil” em um dos muros da redondeza), o que se verifica para a torcida mandante e para os moradores é, na maior parte das ocasiões, a formação de um espaço de festa.

O “pré-jogo” para o torcedor cruzmaltino que vai a São Januário conta, além dos produtos tradicionalmente vendidos em portas de estádios, com opções bastante singulares, que o portal UOL chamou de “tour raiz”. São trailers, estúdio de tatuagem, bares, comercialização de alimentos e bebidas variadas a cargo de vendedores ambulantes e, até mesmo, um animado “corredor do funk” em frente ao estacionamento da entrada social.

É possível compreender o sentimento de revolta que uniu torcedores, moradores, dirigentes e parte da imprensa em razão dos argumentos utilizados pelo juiz de plantão que, no mês de agosto, proferiu a sentença de interdição de São Januário. Alegando razões de segurança, mencionou a existência de uma favela ao lado do estádio, onde é possível ouvir o estampido de tiros, além de se tratar de um local com a presença do tráfico de drogas. Citou também a falta de áreas de escoamento suficientes para o público, em razão das ruas estreitas do entorno, por onde seria comum a presença de torcedores se embriagando antes das partidas.

A decisão pautada na associação entre favela e violência com a subsequente criminalização antecipada dos seus residentes, não se sustenta por si só, ou então teria que ser aplicada a outros locais que realizam eventos com expressiva presença de público. Matéria escrita por Guilherme Schiavinato e Guilherme Peixoto, publicada no portal g1 cita o levantamento produzido pelo Instituto Fogo Cruzado. Nele, o número de tiroteios nos arredores de São Januário (22) é o mesmo verificado nas cercanias do Maracanã. Nem por isso, a Justiça determinou o fechamento da arena.

Quem confere vida ao estádio é o torcedor. No espaço urbano, esse papel é exercido pela coletividade que dele se apropria. O evento de 3 de setembro marcou esse encontro mágico. O bairro pulsou entre o estádio e a favela. A tríade “amaldiçoada” de 1923, composta por preto-pobre-português, após um século, sofreu pequenas adaptações passando para preto-pobre-favelado. Compete ao poder público não se omitir e cumprir com as obrigações que lhe cabem, para que os jogos no estádio voltem a representar uma fonte de lazer para a torcida cruzmaltina e de geração de renda e trabalho para a população residente nos arredores. Cem anos se passaram e a luta contra o preconceito e o elitismo na cidade e no futebol persistem e resistem no bairro Vasco da Gama.

Referências

BRAZ, Bruno. Vai ao Vasco x Bahia? UOL mostra ‘tour raiz’ de São Januário aos torcedores. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/05/14/vai-ao-vasco-x-bahia-uol-mostra-tour-raiz-de-sao-januario-aos-torcedores.htm Acesso em 04 de setembro de 2023.

FERREIRA, Fernando da Costa. O bairro Vasco da Gama: um novo bairro, uma nova identidade? 2004. 156 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Geografia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.

GE. Milhares de torcedores se reúnem em frente a São Januário para assistir a Vasco x Bahia. Disponível em https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/2023/09/03/torcedores-se-reunem-em-frente-a-sao-januario-para-assistir-a-vasco-x-bahia.ghtml Acesso em 04 de setembro de 2023.

MALHANO, Clara E.S.M.B. São Januário: arquitetura e história. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2002.

SCHIAVINATO, Guilherme; PEIXOTO, Guilherme. Em parecer contra São Januário, juiz cita favela ao lado, ‘torcedores se embriagando’ e gera polêmica; sem jogos, comércio tem prejuízo. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/08/17/em-parecer-contra-sao-januario-juiz-cita-favela-ao-lado-e-torcedores-se-embriagando-sem-jogos-comercio-reclama-de-prejuizo.ghtml Acesso em 25 de agosto de 2023.

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Fernando da Costa Ferreira

Doutor em Geografia pela UERJ. Professor do Instituto Benjamin Constant. Autor da tese O estádio de futebol como arena para a produção de diferentes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo Maracanã. Apesar de sofrer (e se desesperar) com o seu time, se orgulha de ter feito com que Fernanda e Helena (ainda que sem qualquer chance de escolha...) herdassem a paixão paterna.

Como citar

FERREIRA, Fernando da Costa. Bairro Vasco da Gama: onde o futebol e a cidade se encontram. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 29, 2023.
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