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Başakşehir campeão, reislamização da basílica de Santa Sofia: gol de Erdoğan?

O Istambul Başakşehir é apenas o sexto clube a sagrar-se campeão do Campeonato Turco com o título da Süper Lig 2019/20 juntando-se aos tradicionais Fenerbahçe, Galatasaray e Beşiktaş, o Trabzonspor e o Bursaspor. Um feito que seria comemorado por quem torce pela quebra de hegemonia nas ligas tradicionais que se encontram sempre dominadas pelos mesmos nomes, e que primeiramente ocorreu em 2010 com o título do Bursaspor. Então, o que há de diferente com a vitória do Istambul Başakşehir? Não há uma resposta simplista na medida em que a vitória em campo envolve uma complexa realidade que é ligada a ele, pois, jamais é alheia a ele, o futebol jamais foi apenas um jogo e em determinados momentos – isso fica mais evidente –, na Turquia de 2020 tal realidade está escancarada.

O Istambul Başakşehir é ligado ao presidente Recep Tayyip Erdoğan, o que é algo corriqueiro no futebol, entretanto – no caso em questão, é mais que isso –, o clube de Istambul é um projeto do presidente e de seu partido, o AKP, aliás, a ascensão do Istambul Başakşehir compõe seu projeto de poder. É sempre importante lembrar que projetos que visam o domínio das instituições de forma totalizante são amplos.

Não é segredo pra ninguém que governos ditatoriais ou com aspirações ditatoriais gostam de utilizar o futebol para suas demandas, também não é segredo que o leste europeu e os Bálcãs são palcos frutíferos para tal demanda. Para não causar desconforto, será explicado no decorrer do texto por que Erdoğan tem aspirações ditatoriais.

Sobre os Bálcãs, sim, a Turquia faz parte de tal região, mesmo que alguém argumente que “apenas a parte europeia”, mas o local onde se encontra a Turquia desde o Império Bizantino é caracterizada pelo encontro de culturas da Ásia e Europa. Sobre a utilização do futebol nos Bálcãs renderia um texto – aliás, renderá alguns aqui –, mas deixo em destaque, como exemplo, que Slobodan Milošević fora presidente do Estrela Vermelha antes de ser presidente da Iugoslávia e Franjo Tuđman tornara-se presidente do Dínamo Zagreb antes de ser presidente da Croácia, períodos que antecederam a Guerra dos Bálcãs.  

Sim, o futebol é utilizado por ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, apesar de ditaduras pelo simples fato de sua natureza poder nascer na direita ou esquerda, mas com o tempo caminhar naturalmente para os extremos. Não há ditaduras ambidestras, mas elas se assemelham nos excessos, como argumenta Norberto Bobbio (2011) para se conhecer um radical de direita, ande com um radical de esquerda e vice-versa.

Voltando ao Istambul Başakşehir, é importante destacar que não se trata de um clube que saiu do nada, mas há algumas características importantes em sua trajetória. O clube fora fundado em 1990 com o nome de Istambul Büyüksehir Belediyesi, vinculado à prefeitura da cidade. Sendo um figurante no futebol turco, mesmo com passagens significativas como na temporada 2009/10 que alcançara a sexta colocação, mas rebaixado na temporada 2012/13. O acesso veio logo na temporada seguinte, juntamente com o novo nome, Istambul Başakşehir, novas cores, adotou o laranja como cor principal, a cor oficial do AKP, o partido do presidente e novos símbolos, todos ligados a uma construção simbólica bem planejada, que remete a símbolos nacionais, que rementem a uma gestão de memórias já promovidas pelo grupo do presidente.

Símbolo do Istambul Başakşehir. Foto: Wikipedia.

É bem verdade que desde 2006 o clube, ainda Istambul BB, já tinha como presidente Göksel Gümüsdag, que é esposo de Müge Gümüşdağ desde o mesmo ano, o interessante nisso tudo é que ela é sobrinha de Emine Erdoğan, esposa de Recep Tayyip Erdoğan. As coincidências não param por aí, Gümüsdag também é membro atuante do AKP.

O clube, antes mesmo de ser ressignificado e ser alçado como um instrumento simbólico político foi alvo de disputas, o adversário político de Erdoğan, Mustafa Sarıgül, por ocasião das eleições municipais de Istambul concorrendo com o candidato do AKP Kadir Topbaş sugeriu a extinção do clube, por ser até então vinculado à prefeitura, inexpressivo e jogar no Estádio Olímpico Atatürk.

A solução foi rápida, construir um estádio, para 17 mil pessoas, o Fatih Terim Stadium. Sobre o nome do estádio é importante destacar que a escolha está no centro do projeto de gestão da memória promovido por Erdoğan, na medida que Terim apesar de não ser um apoiador dos mais entusiastas do proeminente político nem seu opositor, longe disso, representa a liderança da maior vitória turca no futebol, a Copa Uefa pelo Galatasaray em 1999/00. Importante destacar que desde então o título é ligado aos feitos do império Otomano e de forma desconexa a figura de Terim, à figura do líder otomano Osman I, sendo cantado como general pela torcida do clube.

A aproximação com a memória de Osman I é estratégica, visto que Erdoğan busca se afastar da memória de Mustafa Kemal, o Atatürk, o que é bem delicado, pois nenhum outro presidente o fez por este ocupar local privilegiado na memória turca. Atatürk fez sua fama como grande herói turco justamente com o declínio do Império Otomano, se estabelecendo como um líder militar em um período posterior, inclusive na Primeira Guerra Mundial, liderando o que ficou conhecido como Guerra de Independência Turca, derrotando a Tríplice Entente e proclamando a república, sagrando-se o primeiro presidente turco. Como admirador do iluminismo, promoveu amplas reformas e aproximações com o ocidente, sendo um modelo seguido até a gestão Erdoğan.

Portanto, a homenagem de Erdoğan para Terim em dar nome ao estádio tem sentido duplo em seu projeto de gestão de memória, por um lado se apropria do simbolismo dado a ele e, por outro, o ressignifica no interior de seu projeto. Madeleine Albright (145-146) explica que o distanciamento do atual presidente para com Atatürk se dá pelo fato de ele não ter vivido as vantagens conquistadas pelo herói turco e pelo fato de seu projeto ter que construir uma Turquia a partir de preceitos anteriores a ele, entretanto, sua retirada simbólica tem que ser feita de forma cuidadosa, o Fatih Terim Stadium vem corroborar a tese da professora da Georgetown University.

Estádio Fatih Terim. Foto: Wikipedia.

Há ainda um fato curioso na inauguração do estádio que ocorrera em 26 de julho de 2014, em pleno período eleitoral para o executivo, Erdoğan concorria para o cargo de Presidente, até então era Primeiro Ministro, cargo que ocupou entre 2003 e 2004, sendo antes prefeito de Istambul. Fora feito um jogo que contava com jogadores aposentados e jogadores em atividade, é bem verdade que em campo reduzido. A estrela da noite vestia a camisa 12 do Istambul Başakşehir, ele mesmo, Recep Tayyip Erdoğan.          

O enredo do jogo poderia ser descrito como algo homérico, mas causaria desconforto tanto a gregos quanto a turcos, portanto diremos que algo que Aşık Paşazade assinaria, tendo claro, Erdoğan como o herói central. Seu time perdia por 3 a 0, os três gols marcados pelo ex-jogador Mehmet Özdilek, até que Erdoğan faz um hat-trick ainda no primeiro tempo, saindo para o intervalo aplaudido e ao bom estilo “boleiro brasileiro” – que vira comentarista aos 28 anos – e não volta para o segundo tempo. Sim, me permitam essa pausa! Também acho bizarro, mas aproveite, vá ao YouTube e assista aos gols, o terceiro é de fato um golaço – parece o de um comentarista contra o Haiti em um jogo amistoso.

Bizarrices à parte o projeto de gestão da memória e apropriação simbólica estava em curso, ou em campo, a camisa 12, que Erdoğan usou na partida foi aposentada. Duas coisas podem ser destacas; 1 – nenhuma outra camisa jamais fora aposentada pelo clube, ou seja, ele é o nome mais importante de sua história; 2 – menos de um mês depois foi eleito o 12º presidente da Turquia. É pertinente destacar e este é um bom momento para isso que todo projeto de poder que visa ser duradouro, passa necessariamente por uma gestão de memória, transitando por uma gestão identitária e necessariamente por uma reapropriação e domínio simbólico.

Não obstante, as indicações de Roger Chartier (1990, p. 23) ajudam a compreender a busca pelo domínio simbólico promovidas por Erdoğan e seu grupo, na medida em que, para o autor, uma representação de si e dos outros está imersa em uma luta por uma dominação simbólica e que essa visa ser uma representação, que por sua vez, pode ser a matriz do discurso na medida em que essa comande os atos em busca de uma construção do mundo social. Não, o futebol não é apenas um jogo, a partida de inauguração do Fatih Terim Stadium não foi apenas uma partida e a atuação do “líder” foi milimetricamente planejada.

Sim, mas e as ligações do AKP com o clube? Destacaremos dois aspectos para demonstrar o controle do partido sobre o Istambul Başakşehir: 1 – a utilização estatal e 2 – o patrocínio estatal.

O primeiro aspecto proposto é pertinente na medida que se vislumbra uma tentativa de perpetuação no poder por parte do AKP e em especial na figura de Erdoğan, é o que Piero Ignazi (2012, p. 42-52) chama de roupagem aceitável da extrema-direita europeia. O AKP é um partido de extrema-direita que visa dominar por meio do uso de instituições republicanas e democráticas, o que não é novidade alguma na história das extremas no referido continente. Quando o time deixou de ser İstanbul BB para ser chamado Istambul Başakşehir, ele deixou de ser uma propriedade da prefeitura de Istambul, sendo a partir de então ligado ao Ministério da Juventude e dos Esportes da Turquia, o que faz todo sentido no interior do projeto de poder de Erdoğan, não mais mandatário de Istambul, mas da Turquia. No entanto, algo deve ser destacado nesta transferência subordinação estratégica ao Ministério da Juventude e dos Esportes, apesar de poder referenciar uma gama incontável de bibliografia que trate da importância do esporte e da juventude em políticas com objetivos totalitários, incorpora-se aqui as considerações de Patrizia Dogliani (2010, p. 196-201) sobre a importância central do esporte e juventude na busca de consenso por governos totalitários partindo da Itália de Mussolini. Mais uma vez, destacamos que este movimento feito pelo AKP não é gratuito e impensado, o consenso é construído aos poucos, nos detalhes.

O segundo ponto diz respeito à questões financeiras, o clube modificou seu patamar de investimentos desde a época que Erdoğan era prefeito de Istambul – antes de ser primeiro Ministro da Turquia – ainda com o antigo nome, entretanto, um salto significativo se deu como destacado com a ascensão de Erdoğan à presidência, a partir de 2015, ou seja, um ano após assumir como presidente turco, o clube acertou com um patrocinador intimamente ligado a ele e ao governo, tratava-se da empresa Medipol Eğitim ve Sağlık Grubu, uma empresa do ramo de Saúde que gere uma faculdade de medicina. Algo a ser destacado em tal parceria é que o grupo tem como administrador Fahrettin Koca, membro do AKP, Ministro da Saúde, amigo pessoal do presidente e seu médico particular há algumas décadas. O nome do clube passa a ser oficialmente Medipol Başakşehir Futbol Kulübü. Há também outras empresas estatais do ramo bancário e transporte aéreo também patrocinam a equipe.

Evidentemente isso fez com que o clube pudesse modificar o patamar de suas contratações. O time campeão conta com jogadores como o brasileiro Robinho, condenado por violência sexual na Itália, Emmanuel Adebayor, Gökhan Inler, Demba Ba e o nome mais expressivo do futebol turco nos últimos anos, Arda Turan. O astro turco é, inclusive, amigo pessoal e defensor ferrenho do presidente, o tendo como convidado de honra de seu casamento.

Apresentação de Robinho no Istambul Başakşehir em janeiro de 2019. Foto: Divulgação.

Uma pergunta é bastante pertinente, há comprovações de ajuda financeira ao clube? O patrocínio estatal e as ligações com membros do AKP podem servir como respostas. Trata-se de um time pertencente a uma empresa ligada ao presidente com contratos facilitados com o Estado. Os diretores do clube se defendem dizendo que o sucesso financeiro do clube se dá por conta de sua boa gestão, para isso exemplificam o negócio feito com as transações do jogador Cengiz Ünder contratado por € 1,5 milhões em 2016 e revendido para a Roma um ano depois por € 13,4 milhões. Em se tratando da Roma, é possível que o lucro tenha sido acima do valor de mercado. No entanto, chamamos a atenção para a argumentação da professora de economia da Universidade Medeniyet de Istambul, Ferda Halicioglu. A pesquisadora escreveu sobre as finanças de Futebol turco: “Ninguém sabe exatamente como eles são financiados porque seus livros não estão abertos, mas parece que eles recebem muito patrocínio de empresas envolvidas em contratos governamentais”. A professora sugere ainda que existe um mecanismo para que empresas fechem patrocínio com o governo, repassando parte como patrocínio para o Istambul Başakşehir.

Enfim, há interferência direta na arbitragem, nos resultados? Depende do que se entende como interferência, pois muitos alegarão que a Juventus na Itália, Real Madrid e Barcelona na Espanha, Boca Juniors e River Plate na Argentina e diversos outros times hegemônicos não são favorecidos sistematicamente em suas ligas locais. O jornalista esportivo local Alp Ulagay argumenta que por 30 anos os grandes clubes de Istambul tiveram tais decisões a seu favor quando enfrentavam times menores, isso deixou de ocorrer. Pode parecer pouco, mas é possível imaginar o quanto isso modificaria o panorama na Itália, Espanha, Argentina e outras grandes ligas.

O mesmo jornalista defende outra tese importante que merece ser destacada, que a ascensão do Istambul Başakşehir se dá em certa medida porque o clube não está afundado em dívidas como os grandes clubes turcos. Com isso, diferentemente dos clubes grandes da Turquia, o Istambul Başakşehir pôde contratar jogadores consagrados, diferentemente de seus rivais que diminuíram suas contratações de impacto nos últimos anos. Outro ponto positivo é que o clube não é prejudicado com o fair play financeiro da Uefa. Além do Istambul Başakşehir ser um clube exclusivamente de futebol, os grandes clubes turcos dividem seus investimentos com outros esportes, especialmente o basquete.

Em meio a todo o processo dentro de campo há um ponto determinante na marcha autoritária de Erdoğan, o conturbado processo de golpe contra o governo turco em 2016. Há versões distintas sobre o golpe, o partido socialdemocrata CHP acusa o governo de um “autogolpe”, um suposto golpe para centralizar o poder, para se fortalecer politicamente. O que se sabe é que as forças golpistas se estabeleceram em uma base da força aérea, a base de Akinci nas proximidades de Ancara, capital turca. Uma coisa tanto oposição quanto governo concordam, a participação do antigo aliado de Erdoğan o clérigo Fethüllah Gülen e seus seguidores.

Gülen é uma força política de elevada importância na Turquia, outrora um aliado de primeira linha de Erdoğan, tratado até como seu guru ou inspiração intelectual. Diferentemente dos gurus de outras terras, o clérigo pode sim ser considerado um intelectual, com influencia real sobre uma gama considerável dos professores universitários turcos, como aponta Madeleine Albright (p. 152-155). O fato marcante é que desde então, Gülen passou a ser tratado como inimigo, os gülenistas são perseguidos e Erdoğan acirrou sua política de controle aos opositores. Sim, mas e o futebol?

Durante o processo que envolveu o golpe de Estado, ações violentas por parte do governo foram proferidas. De outro lado, ações de resistência por parte da população, em uma medida considerável com envolvimento de coletivos de torcedores de Fenerbahçe, Galatasaray e Beşiktaş – o último com uma torcida com marcante influência anarquista, como por exemplo os Çarşı, grupo de torcedores anarquistas –, além de convocar abertamente para protestos e declarado inimigo do presidente, o que é recíproco. Não demorou muito para Erdoğan passar a tratar os torcedores dos referidos clubes como opositores. Após os protestos e a tentativa de golpe, há uma política sistemática de perseguição a torcedores e banimento dos estádios.

Juntamente com o título do Istambul Başakşehir veio a confirmação da reislamização da basílica de Santa Sofia. O que isso tem a ver com o futebol? Para compreendermos, é necessário que entendamos que há um projeto de movimento islâmico turco encabeçado pelo presidente Erdoğan, um projeto cultural, nele, o bairro de Başakşehir não é escolhido aleatoriamente. Portanto, ambos os casos fazem parte do mesmo projeto.

Basílica de Santa Sofia, em março de 2013. Foto: Wikipedia.

O edifício em questão, que é inclusive patrimônio da UNESCO, é uma obra de quase 1.500 anos, sendo uma catedral cristã até 1453, quando fora transformada em mesquita com a conquista turca de Constantinopla. Ponto importante na construção simbólica que Erdoğan busca gerir é que na década de 1930, na Turquia laica, Mustafá Kemal Atatürk, a restaura e a transforma em museu. A incursão de Erdoğan no caso de Santa Sofia é a mesma do Fatih Terim Stadium, o capital simbólico é o mesmo, só que agora o presidente dá um passo a mais, bem mais firme rumo a seus propósitos de gestão simbólica, da memória e tentativa de construção identitária.

Neste jogo de gestão de memória e construção identitária, o bairro de Başakşehir é de fundamental importância. Pois, o grupo que está no poder poderia assumir o controle de qualquer clube menor na Turquia, mas a escolha do clube em questão se dá de forma estratégica. É um local conservador, basicamente construído pelo AKP na década de 1990 para ser um reduto da tradição islâmica – aliás, da tradição islâmica conservadora –, com marcante influência rural, distante culturalmente da moderna Istambul. Professor da Universidade de Huddersfield, Dağhan Iraq defende que o bairro é central no projeto de poder de Erdoğan, que visa substituir os bairros cosmopolitas de Beyoglu, Besiktas e Kadikoy, sendo o clube mais uma ferramenta para isso. O local que não difere muito de locais com predileção para a extrema-direita em suas mais variadas vertentes nas descrições de Nonna Mayer (2015).

O professor Iraq, que é autor do livro Football fandom, protest and democracy: supporter activism in Turkey (2019), acredita que o Istambul Başakşehir terá seus momentos de glórias, mas desaparecerá quando o declínio erdoğanista vier. Destaca como exemplo o caso Osmanlispor, clube apadrinhado pelo ex-prefeito de Ancara Melih Gökçek, que teve seus momentos de áureos. Dağhan Iraq tem um argumento forte “Você não pode inventar um clube e impulsioná-lo à popularidade usando seu poder político. Esse é o objetivo de Erdoğan com Başakşehir, mas na Turquia não funciona assim”. Para ele, a paixão dos turcos pelo futebol faz com que “um cidadão possa apoiar Erdoğan fanaticamente e continuar apoiando Fenerbahçe, Galatasaray e Beşiktaş. Isso não é nada incompatível”. Essa, inclusive, é uma nuance interessantíssima a ser pensada, pois uma coisa sabemos, o amor dos turcos pelo futebol é algo especial.

As análises que tratam do futebol o colocando como central nos processos históricos incorrem em um erro importante, ele não o é. Por outro lado, há diversas análises que não dão importância alguma para o futebol nos processos históricos, o erro aí é ainda maior. Portanto, o Istambul Başakşehir, e sua ascensão meteórica, está incluso em um encadeamento histórico de amplitude bastante complexa e ainda em curso.

Sobre a questão inicial, se é um o gol da extrema-direita turca? Sim. Seria o gol definitivo? Não. Pois uma tática pertinente dos governos autoritários e dos fascismos, desculpem os puristas conceituais! Tão puristas que encheriam de orgulho o próprio Hitler e Mussolini, os conceitos são reapropriados temporalmente e o fascismo não morreu com Hitler e Mussolini, aqui é pensado uma cultura fascista como defende Jason Stanley (2019), pensando assim, essa vitória ou, essas vitórias não são as vitórias definitivas, pois esse tipo de governo necessita de inimigos constantes, reais ou imaginários, pois o medo é seu principal artifício, trazendo para a linguagem esportiva, adversários, logo, campeonatos constantes. No caso do Istambul Başakşehir, uma Liga Europa talvez.

Entretanto, em História do Tempo Presente podemos dar demasiada atenção para fatos que nos parecem muito importantes e com os presentes em construção, eles se mostrarem não tão importantes. Hoje, o título do Istambul Başakşehir é um gol importantíssimo de Erdoğan, a reislamização de Santa Sofia também, mas o futebol turco é muito emocionante e com diversas reviravoltas, os jogos não se decidem facilmente, amanhã, outros fatos podem surgir e esses perderem a sua importância paulatinamente. A bola ainda está rolando.

Referências

BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 2011. 3. ed.

CAMUS, Jean-Yves. LEBOURG, Nicolas. Les droites extremes en Europe. Paris: Seuil, 2015.

Football: le Basaksehir, un champion de Turquie qui doit beaucoup à Erdogan. France24, Paris, 20/07/2020. Acesso em: 27 de jul. de 2020.

How a small Istanbul team with government links rose to challenge Turkey’s footballlite. N WORLD, Abu Dhabi, March 13, 2019. Acesso em: 27 de jul. de 2020.

IGNAZI, Piero. Le Front National et les autres Influence et évolutions. In: DELWIT Pascal. Le Front national. Mutations de l’extrême droite Française. Bruxelles: Editions de l’Université de Bruxelles, 2012, p. 37-55.

IRAQ, Dağhan. Football fandom, protest and democracy: supporter activism in Turkey. Londres: Routledge, 2019.

MAYER, Nonna. Le plafond de verre électoral etamé, mais pas brisé. In: CRÉPON, Silvain. et al (org). Les faux-semblants du Front National: Sociogie d’un parti politique. Paris: Presses de Sciences Po, 2015, p. 299-320.

MOURENZA, Andrés.  As incógnitas do golpe turco: Um ano depois da sublevação militar, ainda existem perguntas sem resposta. El País, Istambul, 15 jul 2017. Acesso em: 28 de jul. de 2020.

MOURENZA, Andrés.  Erdogan coroa sua agenda islâmica com conversão da antiga basílica de Santa Sofia. El País, Istambul,  12 JUL 2020. Acesso em: 28 de jul. de 2020.

NARCIZO, Makchwell C.  Dos campos de futebol para os campos de batalha: uma análise da Guerra dos Bálcãs. In: FuLiA / UFMG, v. 2, n. 2, maio.-ago., 2017, p. 112-126

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Rio de Janeiro: L&PM, 2019, 3.ed.


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Makchwell Coimbra Narcizo

Doutor em História pela UFU, Graduado e Mestre em História pela UFG. Atualmente professor no IF Goiano - Campus Trindade. Desenvolve Estágio Pós-Doutoral na PUC Goiás. Membro do GEPAF (Grupo de Estudos e Pesquisa Aplicados ao Futebol - UFG). Coordenador do GT Direitas, História e Memória ANPUH-GO. Autor dos livros: A negação da Shoah e a História (2019); A extrema direita francesa em reconstrução - Marine Le Pen e a desdemonização do Front National [2011-2017] (2020) dentre outros... isso nas horas vagas, já que na maior parte do tempo está ocupado com o futebol... assistindo, falando, cornetando, pensando, refletindo, jogando (sic), se encantando e se decepcionando...

Como citar

NARCIZO, Makchwell Coimbra. Başakşehir campeão, reislamização da basílica de Santa Sofia: gol de Erdoğan?. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 69, 2020.
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