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“Boca é um (eterno) cabaret!”

Fabio Perina 14 de julho de 2022

Para tratar da história do Boca Juniors-ARG dos últimos 30 anos é preciso reconhecer que dentro de campo foi o “rey de copas” de sua época com 4 Libertadores ganhas entre 2000 e 2007, diante de uma disputa particular com o Independiente de Avellaneda que reivindica tal orgulho com um placar global em toda a história de 6×7 na Taça Libertadores e outras diversas copas internacionais. Porém fora de campo nessa mesma época as polêmicas também são inúmeras e fazem parte do folclore do futebol, conforme será o tema desse texto, vide o tema ser reaquecido pela recente demissão do treinador Sebastián Battaglia em nova eliminação na Libertadores. Uma crise que chegou a seu ápice quando Battaglia pediu reforços (treinador quem cometeu erros cruciais em um elenco já cheio de “referentes”, quem por sua vez também cometeram erros cruciais) logo após a eliminação e Riquelme colocou a demissão em um quadro de desobediência e provocação ao invés (da já sabida) incompetência e inexperiência

Sebastián Battaglia
Sebastián Battaglia. Fonte: Wikipédia

Certamente tornando o clube ‘xeneize’ como o vestiário mais hostil do mundo. Um diagnóstico que chega através de algumas fontes como os vídeos picantes de Pablo Carrozza e os textos picantes de Antonio Serpa. E até mesmo uma cobertura cada vez maior na imprensa brasileira através do blogueiro Tales Torraga, como na recente derrota contra o San Lorenzo logo após a eliminação em que ocorreram diversas polêmicas dentro e fora de campo em um clássico com tudo que se tem direito! Acrescento que o “cabaret” é tão permanente que desafia até a forte tese do “bode expiatório” que uma demissão de treinador costuma ter o efeito de pacificar o ambiente. vide mandar ao banco o zagueiro e capitão Isquierdoz quem certamente era um dos menos culpados.

No vídeo a seguir há a retrospectiva dos casos históricos em que se relata inúmeras tensões e até agressões entre jogadores, seja flagrantes a todas as câmeras no campo de treino ou supostas em vestiários. Um vídeo que através da narrativa e da sonoplastia dramatiza as ocorrências e ainda lança a curiosa hipótese da coesão no vestiário e no clube ser mais a exceção do que a regra (oposta ao discurso ufanista e clubista nas vitórias de “contra tudo e contra todos” ou provando “a força da camiseta”)

Ou seja, diante da constante “lavagem de roupa suja” em público, há uma auto-destrutiva violação de “códigos” de silêncio de vestiário (como se diz no vocabulário da boleiragem argentina) em que não é possível se encontrar um “pecado original” diante de tantos casos! Assim como fica mais uma vez a lição da dificuldade de se equilibrar um plantel tanto em aspectos físicos, técnicos e táticos como sobretudo de personalidade entre jovens e veteranos e ainda com a “ascendencia” que exercem no vestiário e no clube. Acrescento também que outra reflexão que fica como questão de fundo é de um dilema existencial entre a realidade e sua relação com a mídia como protagonista ativa ou mera mediadora: o “cabaret” é uma invenção do periodismo ou Boca se suicida?

A começar por 1993 pelo inesquecível escândalo “halcones x palomas” (ou falcões x pombas). Quando nem sequer o “desahogo” de se livrar de uma fila de uma década sem títulos serviu para apaziguar um ambiente que mandou embora até mesmo um treinador conciliador como o uruguaio Oscar Tabarez. O pivô da guerra interna foi a formação de duas “igrejinhas” (como se diz no vocabulário da boleiragem brasileira) entre o goleiro “Mono” Navarro Montoya e o meia “Beto” Márcico levando a polarizar os demais referentes da equipe para cada um dos dois lados. Disputa que chegou a ter até mesmo votação aberta de todo o elenco pelo posto de capitão, porém decidida em apenas um voto e, portanto, não foi plenamente aceita. Vide uma pérola de um desses referentes, o lateral Carlos “Colorado” Mac Allister, apos indícios de agressões no vestiário, com profunda auto-crítica: “por erro ou por omissão, todos fomos culpados”!

Veio 1998 com outro episódio (ainda mais) emblemático, cujo cenário distinto teve o distanciamento da disputa pelo título dentro de campo (com a irônica bandeira negra pela barra “gracias por el campeonato”) deixar a paz ainda mais improvável fora dele. A começar que era um vestiário cheio de referentes que até mesmo um treinador tão “canchero” como Hector “Bambino” Veira teve dificuldades em “domar as feras”. Vide com um grupo de referentes colombianos: Córdoba, Bermudez e Serna. Além de vários outros referentes argentinos em todas as posições, vários com passagem anterior ou posterior pela seleção: como Samuel e Fabbri na defesa, Cagna, Riquelme e irmãos Schelotto na meia, e Caniggia e Palermo no ataque. Ou seja, era “muito cacique para pouco índio”(como se diz no vocabulário da boleiragem brasileira). O pivô do escândalo foi minutos depois uma reunião supostamente fechada: quando o atacante Diego “Gambeta” La Torre ao ligar o rádio de seu carro escutou todas as informações sobre essa reunião. Havia um espião. Então não duvidou em disparar para a imprensa ali reunida a pérola imortalizada (“quando o meme já vem pronto”): “Boca es un cabaret!”.

Evidente que na troca de temporada o clima era de “o último que sair que apague a luz”, e a troca de treinador para Carlos “Virrey” Bianchi iniciou o auge de conquistas do clube em copas internacionais na virada dos anos 90/2000 com sua “era dorada”, conforme citada no início. Fora de campo também é preciso mencionar que foi o período da longa presidência do midiático empresário Mauricio Macri. Quem depois usou da visibilidade do clube para uma meteórica ascensão na política: de prefeito a governador e finalmente presidente (vide episódio já tratado em crônica anterior). Evidente que muitos podem exaltar o lado marketeiro da “mística copera” nessa fase vencedora, porém ela seria pouco decisiva se na era Macri o clube não fosse tão blindado nos bastidores na AFA e sobretudo na Conmebol e com isso se beneficiasse de sucessivos erros de arbitragem a seu favor. Vide os exemplos evidentes dos paraguaios Horacio Elizondo e Ubaldo Aquino contra o Palmeiras em 2000 e 2001. Nem mesmo o auge chegou a pacificar o vestiário, sendo que naquela década os vários títulos foram coroados pelo protagonismo do craque Riquelme e do goleador Palermo, quem nunca chegaram a se reconciliar de fato. Vide uma cena insólita em 2010 (presente no vídeo sugerido, assim como a menção a uma tentativa frustrada de “asado” reconciliatório) dentro de campo em que Riquelme cara a cara com o goleiro deu um passe para Palermo superar um tão desejado recorde como maior artilheiro do clube, porém cada um comemorou o gol correndo para um lado diferente! Assim como última “cereja do bolo” brindada pelo insólito vídeo foi o forte “cruce” Ledesma-Orión em 2014 e outros recentes

Mauricio Macri aMartín Palermo
Mauricio Macri e Martín Palermo. Foto: Wikipédia

Dando um salto a frente, para entender o momento atual com seus escândalos cotidianos, é preciso voltar aos “destroços” que a derrota em Madri em 2018 para o arquirrival River Plate deixou no clube. Um divisor de águas esportivo e até institucional. Quando esteve mais próximo de acariciar a Libertadores mas fracassou (como se diz na gíria boleira argentina: “la Copa se mira pero no se toca”). O presidente Daniel Angelici saiu pela porta dos fundos após a derrota acusado externamente de pouca força nos bastidores e internamente de ter rachado o clube. Em seu lugar o novo presidente eleito Jorge Ameal trazia como novidade um dos vices ser o antigo ídolo Riquelme. E também essa nova diretoria trouxe uma inovação paradoxal com o “Consejo de Futbol”, ou seja, um colegiado de ex-referentes dentro de campo da “era dorada” como os já citados colombianos Bermudez e Serna e também Delgado e Cascini para mediar as decisões entre plantel e diretoria. O que poderia parecer a priori uma boa ideia como um anteparo para tentar afastar o excesso de dirigentes e políticos “natos” no vestiário e colocar gente que “fala a linguagem dos jogadores”, porém acabou tendo como resultados ainda mais polêmicas e desuniões. Levando a seu nome pejorativo mudar para “Consejo de Asado” ao se cercar de bajuladores pouco competentes e sobretudo pouco unidos.

Um contexto que foi particularmente bombástico dentro e fora de campo foi em meados de 2021. Houve um duplo 0 a 0 contra o Atlético-MG pela Libertadores em que se anularam um gol do Boca em cada partida. Depois, uma confusão no túnel ao vestiário do Mineirão indo de provocações a conflitos entre a delegação (jogadores e dirigentes) do Boca contra a delegação do Galo e até o policiamento. Seguido pela prisão temporária da delegação “xeneize” durante a madrugada em uma delegacia. No retorno à Argentina, um fato novo reforça a hipótese do enfraquecimento da diretoria “xeneize” diante da Conmebol e até mesmo na própria AFA: não conseguir o adiamento de partidas diante de um elenco desfalcado por ter que cumprir um isolamento sanitário prolongado diante dessa situação excepcional.

Se isso já não fosse pouco, dentro de campo o trabalho do até então experiente treinador Miguel Angel Russo era insustentável em resultado e desempenho, ficando muitas partidas sem sequer marcar gols. O que sustenta uma das hipóteses mais antigas do futebol que os jogadores derrubaram um treinador de propósito (ou “hicieron la cama” como diz o vocabulário da boleiragem argentina). O alívio para todos é que eram as últimas semanas de estádios vazios sem público e assim se livraram de vaias gigantescas que seriam inevitáveis em uma Bombonera lotada. A troca de treinador para a efetivação do interino Sebastián Battaglia, quem tinha como única experiência no ofício as categorias de base do clube. Junto de uma mescla de “pibes” e “referentes” ajudou a melhorar bastante o desempenho e por consequência os resultados para os últimos meses do ano. A relativa paz atual dentro de campo foi parcamente sustentada com a confiança do “Consejo de Futbol” em Battaglia (afinal esteve no plantel multi-campeão de duas décadas atrás) e as conquistas recorrentes de copas “truchas” (secundárias: Copa Argentina, Copa da Liga e até Copa Maradona e Torneo de Verano). Conforme escreveu Serpa, “campeão que queima todos os livros” ao levantar copas mesmo em meio ao caos e à fúria! Ora, são fortes as suspeitas de estabelecer relações causais que a progressiva perda de importância nos títulos remete a uma progressiva perda de influência nos bastidores da Conmebol desde a gestão Angelici e agora sobretudo com a gestão Ameal-Riquelme.

Riquelme
Juan Román Riquelme. Foto: Wikipédia

Nesses cerca de 3 anos desde desastre de Madri, seria exaustiva uma retrospectiva das várias polêmicas entre os personagens envolvidos: Riquelme e Consejo na diretoria e “referentes” do plantel que saíram pela porta de trás como o artilheiro Wanchope Avila e o ídolo e recém-aposentado Carlitos Tevez (quem rompeu contrato e há rumores que concorrerá na próxima eleição em alguma chapa). E sobretudo a insólita permanência do colombiano Sebastián Villa, caso recorrente de confusões fora de campo nos últimos dois anos: tendo desde acusações de agressões a mulheres (e afastamento para solução da investigação), abandono de emprego e recusa em treinar (justamente às vésperas de um Superclasico) e até mesmo um caso menos grave porém também simbólico: a declaração de que faltaram “huevos” na derrota em Madri. Algo que muitos consideram uma grave falta de “códigos” de coesão interna, como se buscasse se isentar do grupo que também pertencia. Segundo opinião dos dois colunistas destacados, igualmente faltaram “huevos” para os dirigentes em mandarem embora um jogador como Villa com tantos problemas extra-campo diante do pretexto de dentro de campo ser o único possível lampejo de improviso diante de esquemas táticos previsíveis e inertes. Um raio-X de tantas polêmicas pode ser visto no link a seguir em que é possível “escalar” mais de um time de casos. Com menção a outros referentes não citados ainda como Zambrano, Pavón, Zárate e outros.

Hoje o papel de Riquelme é dúbio: internamente esses conflitos citados que sempre estouram e externamente busca uma improvável conciliação diante da Conmebol para tentar atenuar as punições do caso Mineirão do ano passado e mesmo atenuar as atuais punições por racismo do ano atual. O personagem Riquelme comprova que sempre sobrou talento em campo (fazendo-o ser tantas vezes odiado, admirado ou cobiçado pelo futebol brasileiro), mas também o que poucos sabem que sempre faltou companheirismo fora dele. O que parece potencializado agora como dirigente em que se vê contra todos ao seu redor na tentativa de ter controle sobre tudo ao seu redor, tal qual tinha controle sobre a bola em campo. Vide sustentar treinadores frágeis como foram o semi-aposentado Russo e o inexperiente Battaglia para que o próprio Riquelme pudesse ser mais protagonista que eles. Atualmente há a perspectiva que tudo em breve se repita ao novamente recorrer a um interino vindo da “era dorada” e que tenha que pedir a benção do Consejo sem ter voz próprio que é o ex-lateral Ibarra. Em suma, Carrozza retoma a pérola de Mac Allister cerca de 3 décadas depois para concluir que entre jogadores, treinadores e dirigentes todos são culpados. Evidente que recentemente as sombras do “cabaret” parecem seguir rondando a Bombonera, assim como novamente o dilema de qual o papel da mídia nesse processo: se por um lado protege o Boca ou por outro se superdimensiona os escândalos…O qual o blogueiro é convicto em responder que Boca se auto-destrói e sobretudo o “Consejo de Asado” acabará sendo o fiador do retorno do “angelicismo” cheio de empresários que antes alegou superar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “Boca é um (eterno) cabaret!”. Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 14, 2022.
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