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Forte Apache: cinema da conquista, militares brasileiros – mas também Carlitos Tevez

Os últimos anos foram marcados pela inusitada e constante presença de uma instituição no noticiário: o Exército do Brasil. Em uma democracia e em tempo de paz (sempre relativos, é bom destacar, já que o segundo factualmente não existe em nosso horizonte histórico, enquanto a primeira é experiência precária entre nós) seria de se esperar um pouco mais de discrição por parte dos verde-oliva, limitando suas aparições aos atos de ofício. Mas, não foi o que aconteceu durante o governo de Jair Messias Bolsonaro, que se esmerou em ameaçar um golpe de estado que, segundo insinuava, contaria com o apoio da caserna. Como fica cada vez mais claro, a tentativa não deixou de acontecer e houve militares de alta patente que foram mais que coniventes com a coisa toda.

Pois bem, uma das informações que nos foi franqueada nesse período parece prosaica, mas não deixa de dizer algo. O quartel general do Exército, em Brasília, é informalmente chamado de Forte Apache, denominação inspirada no enclave mais avançado, em direção ao Oeste, da Cavalaria Estadunidense no século XIX. Nós o conhecemos por causa do cinema de Hollywood, em especial por meio do filme do mestre John Ford, Sangue de heróis (na verdade, Fort Apache), de 1948, com John Wayne, Henry Fonda e Shirley Temple. Da base militar para as telas, dela para a ocupação do tempo dos meninos: Forte Apache é um brinquedo infantil que reproduz, em escala reduzida, os edifícios, paliçadas e personagens daquele espaço construído para que homens brancos vencessem povos originários, submetendo-os, na melhor das hipóteses, ou exterminando-os, na pior delas. Maria Rita Kehl já escreveu que o tema do cinema estadunidense é a conquista. Adiciono que é o querem fazer significar tal palavra, que disfarça o saque, a matança, o racismo, a destruição.

Mas há um outro Forte Apache, não no Brasil, tampouco nos Estados Unidos da América, mas na vizinha Argentina. Também é essa a denominação informal a do Bairro Exército de Los Andes, em Ciudadela, na Grande Buenos Aires. Foi lá que nasceu Carlos Alberto Martínez Tevez, de vitoriosa carreira como jogador profissional de futebol, iniciada e concluída no Boca Juniors, seu time do coração. Nos dois últimos anos, ele vem se destacando como treinador, primeiro do Rosario Central e desde o ano passado no Independiente, ambas tradicionais agremiações do futebol albiceleste.

Carlos Tévez
Carlos Tévez quando jogava na Europa. Foto: CosminIftode/Depositphoto.

Com o Boca, Carlitos venceu muito, tendo sido campeão nacional, da Libertadores e Intercontinental, já aos 19 anos, em 2003. Na competição sul-americana a vítima da final foi o Santos, que vencera o Brasileirão do ano anterior com a segunda geração dos Meninos da Vila, a de Diego e Robinho. Na partida contra o representante europeu, por sua vez, o derrotado foi o Milan, um time fortíssimo que contava com os brasileiros Dida, Cafu, Kaká e Serginho, além de gente do calibre de Maldini, Inzaghi, Seedorf, Pirlo, Rui Costa e Shevchenco. Na condução dos milanistas, ademais, estava Carlo Ancelotti. Do lado Xeneize, Tevez, com a camisa 9, entrou no final do segundo tempo. Aliás, a 10, tão bem vestida por Diego Maradona e Román Riquelme, era levada pelo cearense Iarley que, três anos depois, seria novamente vencedor, desta vez do Mundial Interclubes, atuando pelo Internacional, de Porto Alegre.

Tevez também atuou muito com a camiseta da seleção argentina, inclusive na conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2004, mesmo ano de sua transferência para o Corinthians, onde na tão curta quanto exitosapassagem foi o grande destaque do time na conquista do Brasileiro de 2005. O destino era, no entanto, a Europa, e o Timão acabou sendo um trampolim para a Liga Inglesa, na qual o atacante estreou em 2006, com brilho, pelo West Hamm. Foi, no entanto, nos times de Manchester que viveu seus melhores momentos, principalmente no United, em que fez um trio de ataque demolidor com Wayne Rooney e Cristiano Ronaldo, quando venceram a Champions League (2007-2008). Da Ilha para o Continente, mas ainda na Europa, Carlitos foi campeão pela Juventus. Não demorou muito, no entanto, para cruzar o Atlântico, agora em sentido inverso, para atuar por um ano e meio novamente no Boca, o bastante para conquistar dois títulos antes de rumar para a China, onde foi ganhar muito dinheiro, e regressar à La Bombonera para viver os últimos anos da bela carreira, encerrada, sem alarde, em 2021.

Jogador de futebol argentino Carlos Tevez é apresentado ao Shanghai Greenland Shenhua F.C. em 2017. Foto: ChinaImages/Depositphoto.

A passagem pelo Corinthians foi breve, mas nem por isso isenta de significado. Isso se deu tanto pelo citado destaque no Brasileiro de 2005, quando a dupla de ataque com Nilmar (mais Carlos Alberto vindo detrás) funcionou bem demais, quanto pela entrega em campo, que não era pouca. O estilo aguerrido e o temperamento fleumático lhe valeram muita agressividade das defesas adversárias, assim como algumas asperezas com companheiros de clube. Mas o que marcou ainda mais a presença de Carlitos no Parque São Jorge foram dois outros episódios. Um foi a comemoração do gol em que diante da torcida fez o número 6 com os dedos das mãos, defendendo olateral-esquerdo Vinícius Fininho, que vinha sendo constantemente hostilizado; outro foi o que declarou quando o treinador Márcio Bittencourt foi demitido.

Márcio foi um valoroso médio-volante, um dos pilares do esforçado time que levantou o primeiro título brasileiro do Corinthians, em 1990, jogando para Neto decidir as partidas. Finda a boa carreira, era auxiliar-técnico permanente quando Daniel Passarela, o treinador que viera da Argentina com Tevez, Javier Mascherano e Sebastián Dominguez, foi demitido. Alçado ao cargo máximo, o funcionário do clube levou a equipe à dianteira do Brasileiro de 2005, mas acabaria substituído por Antônio Lopes, sob a alegação de que era preciso um profissional mais tarimbado frente ao estelar elenco. Entre os jogadores, houve quem lamentasse a saída do comandante, mas para imediatamente afirmar, no entanto, que era uma decisão que cabia à Diretoria e que era preciso respeitá-la. O único a manifestar-se de forma veemente contra a demissão foi Tevez, que em entrevista ao final de uma partida, com maturidade incomum para seus 21 anos, afirmou que jamais havia visto um técnico ser demitido com o time estando um primeiro lugar na tabela de classificação. Foi valente, como costuma ser.

Tevez habitualmente frequenta Fuerte Apache, tanto para levar seu filho em visita, já que entende que é bom para o menino saber onde estão as raízes do pai famoso, quanto para jogar futebol com os velhos amigos, programa que foi mais comum em 2022, quando já não atuava profissionalmente, e tampouco iniciara a carreira de treinador.  Enfim, do violento bairro de Ciudadela, do perigoso território estigmatizado, para onde sempre volta, veio ele, com sangue pulsante nas veias e senso de solidariedade incomuns no futebol.

Dreams – Tevez - El Apache
Tevez – El Apache. Arte: Fernando Taboada

Militares brasileiros não escondem sua admiração pelos pares do Norte, o que sugere o constrangedor apelido do quartel general em Brasília, já presente nas origens da capital federal. Mas o motivo pode ser outro, por exemplo, o fato de haver certa empolgação com os filmes ou com os brinquedos. Depois que, faz poucos anos, exercícios da Marinha tiveram como trilha sonora a canção-tema de Missão Impossível, série de fitas estrelada por Tom Cruise entre 2006 e 2023, nada há de surpreender, principalmente se a direção for o fundo do poço. Melhor mesmo é lembrar, com admiração, do jogo vibrante de Carlitos Tevez. Para El apache, que completou 40 anos na última segunda-feira, 05 de fevereiro, desejo uma longa vida e mando, mesmo sem que ele chegue a saber disso, aquele abraço.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Forte Apache: cinema da conquista, militares brasileiros – mas também Carlitos Tevez. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 10, 2024.
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