177.19

Brasil e Colômbia: dois casos de intolerância religiosa clubística no futebol

Futebol e religião são dois fenômenos de alcance planetário, originados em períodos diferentes. Institucionalmente, pode-se afirmar que o futebol moderno é secular, tendo sua origem na segunda metade do século XIX. A Federação Internacional de Futebol – FIFA, criada em Paris em 1904, considera 1863 como o ano do surgimento do futebol. Por outro lado, a religião é milenar, tendo como referência a fundação da Igreja Católica Apostólica Romana por volta dos anos 30 DC. Na relação entre esses dois campos, observamos que o futebol incorporou elementos sociorreligiosos em sua prática, resultando em um vínculo notável entre esses temas em diferentes nações.

Na América do Sul, é possível perceber, que as manifestações religiosas estão presentes dentro e fora dos gramados, sendo muitas vezes expressas de forma pública e explícita. Clubes de futebol adotam nomes de santos(as) e de cidades com denominações religiosas. Do ponto de vista arquitetônico é comum os estádios possuírem uma pequena capela ou um lugar com um altar para que os adeptos religiosos possam se recolher e concentrar no seu momento de fé. Em campo, muitos jogadores após fazer o gol erguem os braços e os olhos ao céu e fazem o sinal da cruz. Vários jogadores têm em seus corpos tatuagens que remetem ao simbolismo religioso, fazem orações minutos antes dos jogos nos vestiários, além de iniciarem uma entrevista agradecendo a Deus. Jogadores, torcedores, dirigentes, profissionais de comunicação, manifestam de múltiplas maneiras os seus laços religiosos para com o futebol, demostrando a proximidade dessa relação.

No tocante entre futebol e religião, parece haver uma convivência pacífica e harmônica entre esses dois elementos. Porém, essa aparente harmonia entre o futebol e a religião tem revelado conflitos que foram expostos por jogadores como o meia Feijão[1] quando jogava no Bahia, o goleiro Weverton do Palmeiras[2] dentre outros, que disseram ter sido alvo de intolerância religiosa e preconceito. Para mostrar que esse estranhamento é mais amplo, procuramos trazer dois casos ocorridos em países diferentes que ultrapassam a esfera individual e entram na clubística. O primeiro no Brasil com o Guarani Futebol Clube da cidade de Campinas, Estado de São Paulo e o segundo na Colômbia com a Sociedad Anónima Deportiva América S. A., conhecida popularmente como América de Cáli, no Estado do Valle.  

Guarani
Fonte: reprodução X / Guarani FC

O clube brasileiro foi fundado em 1911 por imigrantes italianos. O nome foi escolhido em homenagem ao compositor Carlos Gomes, autor da ópera O Guarani (1870), vinheta do programa de rádio “A Voz do Brasil”, que foi adaptada do romance de mesmo nome escrito em 1857 por José de Alencar. Em suma, o romance narra uma história de amor, em que uma jovem, filha de um nobre português, se apaixona por um índio. Para os dois, é a descoberta do amor de forma pura, que desafia e apresenta as diferenças étnicas e culturais presentes no casal. Diferenças que por analogia podem ser pensadas entre a religiosidade dos jogadores e a instituição clubística, visando uma convivência respeitosa entre as partes, ou seja, uma busca harmônica nessa relação.

O Guarani é conhecido como Bugre, uma referência aos indígenas de várias etnias que não foram evangelizados e, em alguns casos, que se misturavam com os africanos. A figura do índio é emblemática e foi adotada pelo clube como mascote no início dos anos de 1950 e, desde 1977, está estampada na calçada em frente ao seu estádio o Brinco de Ouro da Princesa. À “força” do índio, foram atribuídos alguns feitos ao time como o título brasileiro em 1978 que foi ganho um ano após a sua pintura na calçada e a fuga do rebaixamento da primeira divisão de 1997.

Em 2014, o time estava em má fase, com sucessivas derrotas na Série C do Campeonato Brasileiro. Segundo o acervo Combate Racismo Ambiental[3], a figura estilizada do índio caboclo fora colocada no uniforme e no vestiário do clube em maio, pelo presidente do clube, Álvaro Negrão, que é um religioso e praticante espírita. Para ele e muitos torcedores esta imagem simbolizava uma fonte de “ajuda espiritual” para o Bugre, considerando um protetor do clube.

Todavia, a publicação citada anteriormente, nos diz que após resultados ruins com a presença estampada do o índio caboclo no vestiário e no uniforme, não muito diferentes dos sem ele, alguns jogadores com outro referencial religioso integrantes da equipe à época, mobilizaram para remover o símbolo da camisa. Eles reuniram com o comando do clube para pedir a retirada da figura do índio caboclo do uniforme e do vestiário, tendo os mesmos, o pedido atendido.

A inclusão do índio caboclo no uniforme do Guarani não nos parece ter sido um imperativo religioso do presidente do clube, mas uma tentativa folclórica de dar sorte ao time. A retirada da imagem, por sua vez, não deixa dúvidas do obscurantismo religioso presente no país, que se manifesta em instituições e grupos sociais, bem como no futebol.

Concordando com o acervo Combate Racismo Ambiental, em um país onde poucos jogadores conhecem a história de seus clubes, que tem o preconceito religioso vigente, prevaleceu o pedido de remoção do símbolo. O fato revela a intolerância religiosa existente no futebol e no país contra religiões, pois alguns membros do clube não aceitaram conviver com um símbolo de outra religião. Eles alegaram que a figura do índio caboclo estava atrapalhando o seu desempenho. É uma postura que manifesta o preconceito sofrido pelos não cristãos, o que de certa forma fomenta a tensão religiosa.

Esse acontecimento é um registro da intolerância contra as religiões de referência não cristã. O país é laico assegurado pela constituição, porém a religiosidade está fortemente presente no cotidiano da sociedade brasileira se manifestando de múltiplas formas, demandando que haja respeito, tolerância e o combate ao preconceito das diferentes formas de manifestações religiosas. Vale lembrar, que o vínculo social à religião, está disposto materialmente na maioria dos estádios, pois em muitos deles há um local destinado para que os jogadores e comissão possam exercer as suas crenças.

Na Colômbia, há também arquétipos particulares entre o futebol e a intolerância religiosa. Um dos episódios mais recentes e midiáticos, diz respeito a promessa religiosa feita por um torcedor para que seu time do coração, o Desportivo Cali, não fosse rebaixado para a categoria profissional B do futebol colombiano. Ele percorreu de joelhos 67 quilômetros da Cidade de Cali ao município próximo onde está a catedral do Milagroso de Buga, em Ala[4]. Apesar de muitas pessoas não concordarem com esse tipo de promessas que envolve sacrifícios corporais, ele recebeu apoio e estímulo de torcedores do seu clube, porém muitos os torcedores do clube rival (América de Cali) agiram com deboche e preconceito com relação a fé e a promessa desse torcedor.

América de Cali
Fonte: reprodução / Facebook América de Cali

Porém, o fato mais destacável no futebol e a intolerância religiosa na Colômbia, ocorreu com o clube América de Cali. Este clube foi criado no ano 1927 e sem dúvida, é um dos mais tradicionais e possui uma das maiores torcidas do país[5]. Ele conquistou 15 títulos nacionais, sendo um dos mais premiados. As suas conquistas permitiram-lhe alcançar uma longa história de participação em torneios internacionais, com algumas participações nas finais da Copa CONMEBOL Libertadores, que consiste na principal competição de futebol entre clubes da América do Sul.

A camisa do clube América de Cali possui um diabo no seu escudo. Este tem origem nos anos de 1940, quando um cronista fazia referência aos negros do América de Cali eram parecidos com diabos vermelhos. Assim, na década de 1950, foi oficializado o escudo, o famoso diabo vermelho, emblema do time professional a mais de 70 anos[6]. O símbolo do clube foi retirado da camisa em 2019, o que gerou uma polêmica entre os torcedores pois os mesmos já haviam incorporado a figura demoníaca ao escudo do clube. Os dirigentes do time professional negaram que a informação da retirada do diabo teria sido uma ato de preconceito religioso, esclarecendo que era uma comemoração da primeira camisa de clube, quando ainda não existia o diabo vermelho em seu uniforme.

Nesse particular, o diabo tem sido amplamente abordado desde temas religiosos considerando-se como satanás ou o demônio. Alguns dos jogadores professionais reconhecidos do clube como Anthony de Ávila, Wilson Pérez o Sergio Galván Rey, que possuem outra devoção religiosa, crenças ou simplesmente por superstição, decidiram cobrir o escudo do clube com um grupo de companheiros do clube demonstrando desrespeito a história do clube e preconceito com base em pressupostos religiosos.

Outro jogador, nos últimos anos, Carlos Sierra retirou o símbolo do diabo do escudo e substituiu por uma figura da silhueta de uma pessoa jogando futebol, em virtude da sua devoção religiosa[7]. Essa atitude demonstra que a sua intolerância religiosa sobrepõe ao respeito a história clubística, que tem como tradição um símbolo, que a princípio, não tem uma relação direta à cultura religiosa e sim a uma referência feita por um cronista à época, como dito anteriormente, que os negros do América de Cali eram parecidos ou jogavam como diabos vermelhos, no sentido de jogadores encapetados, travessos, irrequietos ou temidos pelos adversários.

Ainda na Colômbia, não se identificam casos de ateus ou agnósticos em futebol professional. Para Rincón (2020), o futebol na Colômbia é passional já que tem misturado a crença e fé de algum modo como o êxito dos clubes profissionais. Javier Borda (2017) nos diz sobre as dificuldades e desvantagens que pode ter um atleta não crente em clube do país[8], já que a religião é demasiadamente presente no jogo de futebol, sugere que nesse meio se dê mais liberdade para novas manifestações religiosas.

Muito pouco tem se discutido sobre a relação entre futebol e religião, apesar de ser um tema potente, pois esses dois elementos são características marcantes das sociedades brasileira e colombiana. Dessa forma, o tema inspira e requer também que outras investigações possam verificar a relação da religião no contexto do futebol amador.

Assim, é possível afirmar que a intolerância religiosa no Brasil e na Colômbia não se limita as manifestações sobre os jogadores e torcedores, ela ultrapassou a instância do indivíduo e chegou aos clubes de futebol. Em busca de uma convivência pacífica entre as diferentes crenças, espera-se que o obscurantismo religioso possa ser superado pela tolerância e o respeito às diversas manifestações religiosas.

Notas

[1]  Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2017/07/06/atleta-do-bahia-e-alvo-de-intolerancia-religiosa-e-rebate-sou-macumbeiro.htm Acesso em: 20 Ago. 2023.

[2] Disponível em:  https://blogs.correiobraziliense.com.br/dribledecorpo/a-inabalavel-fe-de-weverton-e-a-inaceitavel-intolerancia-religiosa-no-futebol/ Acesso em: 20 Ago. 2023.

[3] Disponível em: https://acervo.racismoambiental.net.br/2014/08/29/o-indio-caboclo-do-guarani-e-a-intolerancia-religiosa/   Acesso em: 23 Ago. 2023.

[4] Disponível em: https://www.eltiempo.com/colombia/cali/increible-hincha-del-cali-recorre-carretera-de-rodillas-al-senor-de-milagros-en-buga-756395. Acesso em: 26 Ago. 2023.

[5] Disponível em: https://repository.javeriana.edu.co/handle/10554/42627?show=full.  Acesso em: 23 Ago. 2023.

[6] Disponível em: https://repository.javeriana.edu.co/handle/10554/42627?show=full.  Acesso em: 07 Ago. 2023.

[7] Disponível em: : https://bolavip.com/conmebol/Insolito-jugador-de-America-modifico-el-diablo-en-el-escudo-de-la-camiseta-20190715-0067.html.  Acesso em: 28 Ago.2023.

[8] Disponível em: https://gol.caracoltv.com/blogs/se-habla-en-exceso-de-dios-en-el-futbol-colombiano  Acesso em: 30 Ago 2023.

Referências

Borda, J. (2017). Se fala em excesso de Deus em o futebol colombiano. Blog Gol Caracol tv. Disponível em: https://gol.caracoltv.com/blogs/se-habla-en-exceso-de-dios-en-el-futbol-colombiano. acesso em 30 agosto 2023.

Gonzalez, S. (2019). Insólito: jogador de América modifico o diabolô em o escudo da camisa¡ Disponível em: https://bolavip.com/conmebol/Insolito-jugador-de-America-modifico-el-diablo-en-el-escudo-de-la-camiseta-20190715-0067.html acesso 5/set./2023.

Jornal o Tempo. (2023). Abria sido uma montagem: torcedor do Cali, de joelhos em direção do senhor dos milagroso? Disponível em: https://www.eltiempo.com/colombia/cali/increible-hincha-del-cali-recorre-carretera-de-rodillas-al-senor-de-milagros-en-buga-756395 acesso 5/set./2023.

Mantilla, J. (2018). Noventa anos de América de Cali: história e vocês embláticas. Disponível em: https://repository.javeriana.edu.co/handle/10554/42627?show=full acesso 5/set./2023.

Rincón O. (2020). Sé joga como se vive. As culturas do futebol em Colômbia. Editorial. Universidade dos Andes.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Amarildo Araujo

Professor de Educação Física, Mestre em Estudos do Lazer e membro do Grupo de Estudos de Futebol e Torcidas GEFuT).

Hernan Tovar

Profesor de planta de la Universidad del Tolima. Integrante del Grupo de Investigación Ocio, Cultura Física y Salud (OCUFYS). Director del Semillero de Investigación en Ocio, Recreación y Tiempo Libre (SIORYTL). Licenciado en Educación Física, Recreación y Deportes de la Universidad del Tolima, Colombia. Especialista en Actividad Física de la Escuela Nacional del Deporte. Magister en Ciencias de la Actividad Física y el Deporte de la Universidad de Pamplona, Colombia. Doctor en Ocio y Desarrollo Humano de la Universidad de Deusto, España. Autor y coordinador del Libro Una mirada a la Recreación y al Ocio en los Programas Universitarios Colombianos (2019). Autor del libro Aptitud Física para Músicos. Afinando su instrumento corporal (2011) y, Ocio y salud para Músicos (2018). De un artículo en el apartado II del libro el legado de la crisis: Hábitos de ocio en el tiempo libre de adultos músicos, en la ciudad de Ibagué, Colombia (2015) y de varios artículos en revistas científicas.

Como citar

ARAUJO, Amarildo da Silva; TORRES, Hernan Gilberto Tovar. Brasil e Colômbia: dois casos de intolerância religiosa clubística no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 19, 2024.
Leia também:
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães