175.31

“Bueno, eu sou morenito né? Não sou tão negro, não” – O histórico de atos racistas no futebol espanhol

Notas introdutórias

No ano de 2023, o jogador de futebol profissional Vinícius Júnior, negro e atuando pelo Real Madrid (um dos maiores clubes do futebol mundial), foi alvo de diversos ataques racistas, tanto durante os jogos, nos estádios, quanto nas redes sociais. Aqui, no Ludopédio, foram realizadas algumas análises sobre o assunto sob variadas perspectivas. Como este é o meu texto de estreia na coluna Futebol e Negritudes, trarei uma discussão para contribuir neste debate. O objetivo é discutir o racismo no futebol espanhol através das páginas da revista Placar, disponíveis no Google Books[1]. Pretendo verificar a viabilidade do racismo ser um fenômeno enraizado na cultura futebolística no território espanhol. Como metodologia, realizei buscas via palavras-chave no site indicado acima e, posteriormente, uma análise dos dados encontrados. Utilizei as palavras chaves: “racismo na Espanha” e “negros no futebol espanhol”, assim, neste trabalho utilizarei as nove primeiras incidências encontradas, listadas na tabela abaixo, na ordem em que apareceram, excluindo as duplicidades.

Tabela 1 – Textos selecionados para discussão

Mês/ano

Página

Título

jun/07

88

Eto’o: um flamenguista

jan/06

81

Perdendo na raça

out/00

50

Negro ou morenito?

mar/98

41

A volta dos que não foram

jul/06

68

Ah, eles tão malucos!

nov/97

97

Estrelas em preto e branco

fev/85

40

Entrevista: Luis Pereira

jan/07

45

Contra o racismo

dez/98

36

Entrevista: Rincon

Fonte: Elaboração do autor

Vamos à discussão dos dados!

Futebol e racismo na Espanha

Silvio Almeida (2019) apresenta a construção do racismo como um elemento estrutural da sociedade brasileira, inserido em um modo de produção capitalista, onde o racismo é um dos pilares de sua sustentação, assim como foi em determinados modos de produção no passado. Trazendo uma ponderação de que é parte do capitalismo na totalidade. Franz Fanon (2008) destaca a necessidade de abordar os elementos econômicos que envolvem o racismo nas sociedades contemporâneas nas variadas formas da economia, independentemente do nível ou montante movimentado. Immanuel Wallerstein (2021) aborda a maneira como o capitalismo utiliza o racismo para a acumulação de capital pelas classes dominantes em um sistema-mundo já definido, com fronteiras desenhadas e papéis a serem desempenhados por nação, raça, classe e outros marcadores sociais. Estes elementos brevemente apresentados estão presentes nas discussões sobre o racismo no futebol, ao passo que o futebol não é uma esfera flutuante da sociedade. Alguns autores que podem contribuir com esta afirmativa são Arlei Damo (1998) e Roberto DaMatta ao apontarem que o futebol é parte da cultura, apesar de estudarem especificamente nossa sociedade, acredito que dado ao nível global a afirmativa pode ser, guardado as características de cada território, válida para países em que o futebol seja proeminente. 

Vcitor Figols (2023) trouxe para o debate sobre o racismo no futebol espanhol a fala de Vinícius Júnior, destacando a normalização desse fenômeno na cultura do futebol espanhol pela La Liga[2], clubes e torcedores. Além disso, o autor apresentou uma breve lista de jogadores de futebol que enfrentaram episódios de racismo no cenário espanhol. Por sua vez, Florenzano (2023) abordou as comemorações de Vini Jr. que o tornaram alvo de racismo na Espanha. Adicionalmente, abordou sobre parte da política envolvendo esses atos racistas, dando destaque ao movimento de extrema-direita existente no país. Esses dois textos abordam aspectos relevantes, e acredito que seja necessário resumi-los para visualizar alguns dos temas apresentados no Ludopédio sobre o assunto[3].

O presente texto possui uma construção que não existe isoladamente; ele tem suas raízes em um passado. Ao examinarmos este período no contexto do futebol espanhol, surge a questão: os atos racistas, ocorridos especificamente no futebol, são contemporâneos ou já perduram há algum tempo na Espanha?

Utilizando a revista Placar como nosso ponto de acesso ao passado, tivemos a lista de matérias já indicadas acima. Estas possuem uma divisão entre matérias que abordaram o racismo como ponto principal e pergunta em entrevistas com jogadores que atuaram por lá, cabe destacar que não houve menção ao futebol feminino, nem com jogadoras em relação à temática (o que caberia a necessidade de um estudo específico). Divido a discussão nestes dois eixos.

Vini Jr
Jogadores de futebol, Comitê Técnico e torcedores homenageiam Vinicius Junior, futebolista do Real Madrid, que sofreu racismo na Espanha na La Liga. Foto de thenews2.com/Depositphoto

“Episódios de racismo à parte” – As matérias que apresentaram o racismo no futebol espanhol

Em 1998, a revista trouxe um recorte noticiando que Roberto Carlos, lateral do Real Madrid naquele ano, teve seu carro arranhado com a palavra “Makako”. Em outra publicação de 1997, tivemos a publicização de um jogo realizado na Espanha como parte de ações contra o racismo. Nessa partida, os jogadores Karembeu e Eric Cantona “mudaram de cor de pele (black e White face[4])”, esta prática em determinados contextos é considerada como um ato de “racismo recreativo[5]”.

Em uma matéria publicada em julho de 2006, intitulada “Ah, eles estão malucos” (Placar, 2006), foram apresentadas posturas controversas de alguns treinadores de seleções que participariam da Copa, como o francês Raymond Domenech, que não convocou nenhum jogador do signo de Escorpião, pois, acreditava no horóscopo. A matéria menciona também Luis Aragónes e sua recusa em receber um buquê de flores amarelas, alegando que a cor dá azar. Além disso, indica “episódios de racismo à parte” sobre Aragónes, referindo-se ao momento em que durante o treinamento da seleção espanhola, ele se referiu a Henry como “negro de merda[6]”.

Houve a publicização, em janeiro de 2006 (PLACAR, 2006), de um termo assinado em março de 2005, por clubes e proposto por La Liga em combate ao racismo no futebol espanhol. Neste termo, havia 31 medidas antirracistas a serem adotadas durante os jogos sob a regulamentação da Federação.

Por fim, a última matéria faz referência a um episódio de racismo sofrido por Samuel Eto’o, na época atleta do Barcelona, onde ele sofreu insultos racistas por parte dos torcedores do Zaragoza. Inclusive, pensou em deixar o gramado e, se tivesse tomado tal decisão, teria o apoio do companheiro de time Ronaldinho Gaúcho (PLACAR, 2007).

Nessas quatro matérias, temos a demonstração, excluindo o jogo contra o racismo, de que esse fenômeno não é esporádico, tampouco novo. No caso do racismo sofrido por Eto’o, o termo antirracista, assinado pela La Liga (federação de futebol espanhol) já havia sido publicado por volta de um ano e meio. Naquele momento, o árbitro interrompeu a partida e solicitou, através do sistema de som do estádio, que a parte dos torcedores cessassem os insultos racistas. Cabe destacar que, já naquele momento, havia manifestações de jogadores como Ewerthon, atleta do Zaragoza, que solicitava medidas mais efetivas da Federação contra esses atos racistas[7]. No caso de Luis Aragónes, o próprio Henry cobrou uma multa maior do que a aplicada pela Federação Espanhola ao treinador. A solidariedade entre os jogadores, como apontado por Ronaldinho Gaúcho se colocando ao lado de Samuel Eto`o pode ser uma das chaves na luta antirracista, principalmente por interromper atividades televisionadas, apostas esportivas e afins.

Passemos a discussão sobre as entrevistas com jogadores em que o tema do racismo no futebol espanhol apareceu.

“Bueno, eu sou morenito né? Não sou tão negro, não”. Percepções sobre racismo nas entrevistas de jogadores nas páginas da Placar

Nas entrevistas utilizadas nesse artigo temos diferentes percepções sobre as negritudes e o racismo. Na entrevista concedida à Placar nos anos 2000, Catanha, jogador brasileiro, naturalizado espanhol, que na ocasião foi convocado para defender a seleção europeia, respondeu a perguntas sobre negritude que é importante trazermos aqui. Em um primeiro momento ele foi indagado sobre ser o segundo jogador negro a defender a Roja[8]. O atleta traz elementos que vão ao encontro das questões do Colorismo. Entendendo este fenômeno como sendo parte do racismo estrutural, onde algumas pessoas vão se considerar pardas, morenas e afins para não entrarem no grupo dos negros e negras, majoritariamente excluídos, como caracterizado por Alessandra Devulsky (2021).

Ao responder à pergunta, Catanha vai se afirmar como “morenito”, e de fato qualquer pessoa tem o direito de se declarar da maneira que lhe for conveniente e na posição em que se encontre no debate do letramento racial. Todavia, nos dá uma amostra da própria operação tecnológica do que é o funcionamento do racismo estrutural e do colorismo ao separar/dividir as negritudes pela variação da epiderme, nos planos coletivos (o outro) quanto no individual (o eu) e nos subconscientes. A resposta literal do atleta foi “Bueno, eu sou morenito, né? Não sou tão negro, não. Sou morenito do Recife. Não importa(…) Ninguém perguntou se Deus era branco ou preto. Se eles têm chamado jogadores negros para várias seleções do mundo, é porque são bons jogadores. E é isso o que importa. Não qual é a raça.” (Placar, 2000).

Já Fred Rincon, ao ser questionado sobre a existência de uma experiência com o racismo no futebol espanhol respondeu que

“Sofri. Antes de eu chegar, tinham pichado as paredes do Estádio Santiago Bernabéu dizendo que não aceitavam um negro no Real Madrid. Durante a temporada, a torcida pressionava para que o técnico não me colocasse no time. Antes de assumir o cargo, o presidente, Lorenzo Sanz, disse que o único jogador do elenco que deveria ser mandado embora era eu. Quem era eu? O único negro do Real. Falei com ele exigindo respeito. Quando ele assumiu, eu é que queria sair.”  (PLACAR, 1998).

Rincon aponta que sofreu racismo de parte da torcida do próprio clube que defendia na época, o Real Madrid e também institucionalmente. Nenhum dos episódios sofridos pelo ex-jogador teve alguma consequência, tanto o consciente (pichação do muro) quanto o subconsciente (pedido de saída pelo presidente do clube, na época).

Já Luís Pereira em entrevista concedida à Placar em 1985, indica a existência do racismo no futebol e na sociedade espanhola, ao afirmar que “na hora do xingo – em campo, no trânsito, na rua – é que inevitavelmente o racismo vem à tona. Mas tenho meia dúzia de saídas decoradas, todas impublicáveis. Sei que esse tipo de coisa é normal” (PLACAR, 1985). Em sua fala podemos perceber a naturalização do racismo ao indicar que é “normal” bem como das violências que estão envolvidas no processo. Não quero catequizar o debate, contudo, é importante destacar a naturalização por meio da frase concedida na entrevista. Emilene da Silva (2018) apresenta as maneiras em que esta naturalização do racismo foi sendo construída historicamente em nosso país, com diversas tecnologias que traziam as relações raciais hierarquizadas com as pessoas negras na base da pirâmide. E que este fenômeno, naturalização do racismo, é um dos alicerces para o mito da democracia racial, ao passo que se transforma em uma negação. Trazendo consequência para as subjetividades das pessoas negras, com sintomas desta negação do racismo e de sua própria naturalização. Mesmo nestas condições, é necessário destacar que o jogador, lá na década de 80, nos dá pistas da existência do racismo em diversos âmbitos da sociedade espanhola e demonstra que o combatia à sua maneira.

Samuel Eto`o em entrevista publicada em 2007 na Placar, não entra em detalhes sobre o racismo que sofreu durante o período em que atuou pelo Barcelona. Apesar de reconhecer o fenômeno prefere indicar que ele pode ser destruído, mas que não quer passar “toda a vida em cima disso” (PLACAR, 2007).

Ponderações sobre o texto

Esta breve contribuição sobre o tema do racismo no futebol Espanhol demonstra, em meu prisma, que o fenômeno não é uma construção atual naquele território, pelo contrário. Possui raízes históricas que ainda não foram combatidas de forma firme, por todos e todas envolvidas com o esporte, principalmente pela Liga que não toma medidas que punam de maneira exemplar os envolvidos em atos racistas. Indico que o racismo, existente em parte da sociedade espanhola, está sendo refletido nos estádios de futebol na Espanha. O combate a este na cultura futebolística não é a finalização de sua existência, mas é uma luta necessária sob vários aspectos que ultrapassam as quatro linhas. Assim, quando olhamos os atos racistas presentes no futebol espanhol é necessário buscar seu passado e compreendermos, um pouco, que fazem parte de um contexto social e não uma ascensão contemporânea, que tem início e fim rígidos.

 

* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Autor Bolsista CAPES DS

Notas

[1] Disponível em https://books.google.com.br/books?id=T5KpYmC2ZA4C&hl=pt-BR&rview=1&source=gbs_navlinks_s

[2] Instituição responsável pela organização do futebol na Espanha.

[3] Ver outros textos sobre o assunto (Vini. Jr x racismo) em https://ludopedio.org.br/?pagina=2&s=vin%C3%ADcius+junior

[4] Prática em que as pessoas usam maquiagem para parecer de outro grupo étnico racial, inaugurado nos Estados Unidos da América, com atores brancos utilizando maquiagem para interpretar personagens negros.

[5] Atos ou práticas racistas que são incluídos em determinados atos para parecerem “brincadeiras”.

[6] Matéria completa disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas/2005/03/04/ult59u91676.jhtm

[7] Ver matéria em https://www.uol.com.br/esporte/ultimas/afp/2006/02/26/ult33u51513.jhtm

[8] Nome que também é chamado a seleção de futebol espanhola.

Referências

ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.

DEVULSKY, A. COLORISMO – FEMINISMOS PLURAIS. Kindle: Polen, v. 1, 2021.

DAMO, A. S. Bons para torcer, bons para se pensar: os clubes de futebol no Brasil e seus torcedores, Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 11-48, 1998

DAMATTA, R.. Antropologia do óbvio: notas em torno do significado social do futebol brasileiro, Revista USP, n. 22, p.10-17, 1994.

FIGOLS, Victor de Leonardo. “O racismo é o normal na La Liga”. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 30, 2023.

LIMA, M. E. O.; VALA, J.. As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia (Natal), v. 9, n. 3, p. 401–411, set. 2004.

SILVA, E. M. da. Heranças da escravidão: da naturalização do racismo institucional ao genocídio da população negra. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 21, p. 91–124, 2018. Disponível em: https://revistadpers.emnuvens.com.br/defensoria/article/view/134. Acesso em: 4 dez. 2023.

WALLERSTEIN, I. As tensões ideológicas do capitalismo: universalismo versus racismo e sexismo. In: BALIBAR, É; WALLERSTEIN, I. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo: Boitempo, 2021. p. 63-74.

Revistas

ETO‘O: um flamenguista. Revista Placar, São Paulo, p. 88, jun. 2007.

Perdendo na raça. Revista Placar, São Paulo, p. 81, jan. 2006.

Negro ou morenito?. Revista Placar, São Paulo, p. 50, out. 2000.

A volta dos que não foram. Revista Placar, São Paulo, p. 41, mar. 1998.

Ah, eles tão malucos!. Revista Placar, São Paulo, p. 68, jul. 2006.

Estrelas em preto e branco. Revista Placar, São Paulo, p. 97, nov. 1997.

Entrevista: Luis Pereira.Revista Placar, São Paulo, p. 40, fev. 1985.

Contra o racismo. Revista Placar, São Paulo, p. 45, jan. 2007.

Entrevista: Rincon. Revista Placar, São Paulo, p. 36, dez. 1998.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danilo da Silva Ramos

Secretário do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer - PPGIEL da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional - EEFFTO da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG desde 2017 e mestrando deste mesmo programa (turma 2020). Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Américo Pimenta (2006). Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Geraldo di Biase - UGB (2011), Membro dos Grupos de Pesquisa: História do Lazer (HISLA), Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (NEPGRES) e Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Como citar

RAMOS, Danilo da Silva. “Bueno, eu sou morenito né? Não sou tão negro, não” – O histórico de atos racistas no futebol espanhol. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 31, 2024.
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