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Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

Camila Valente de Souza 14 de abril de 2024

O racismo no futebol tem sido assunto principal nas mais diversas mídias esportivas do Brasil. Casos explícitos como o do jogador do Real Madrid, Vinicius Jr., recentes embates entre Brasil e Argentina e até mesmo casos que não ocorram de forma tão explícita, como é o caso do John Kennedy, jogador do Fluminense. Entretanto, é muito importante destacar que o racismo e o futebol se interseccionam desde o início do século passado. Negros já foram impedidos de estar nas arquibancadas, dentro dos clubes e até mesmo de praticarem esta modalidade esportiva.

Entendendo o futebol enquanto um microcosmo constituinte da sociedade brasileira, que influencia e é influenciado por esta sociedade, falar de racismo no futebol é também falar de racismo na sociedade brasileira. Antes de debatermos sobre esses aspectos dentro deste esporte, é primordial que possamos entender a importância do futebol na cultura nacional.

A importância cultural do futebol

O futebol é um esporte que historicamente está imerso na cultura brasileira. É possível perceber que todo brasileiro em algum grau já teve contato com esta modalidade esportiva e tem alguma familiaridade com ele, mesmo que não de forma direta. O fato de o futebol ser um esporte que não necessita de muitos materiais para se jogar no dia a dia facilita sua presença nas periferias e por conseguinte sua massificação. Todo brasileiro já assistiu/jogou/torceu – viu alguém torcer – alguma partida de futebol, seja profissional ou não. Outro aspecto que aproxima o futebol da grande massa da população brasileira é o fato de ser um esporte fortemente difundido pelos meios de comunicação, sejam por veículos escritos ou audiovisual. “A comunicação de massa – jornal, revista, rádio, televisão – traz fatos, notícias de regiões e grupos espacialmente distantes, mas que podem se tornar familiares pela frequência e intensidade com que aparecem” (VELHO, 1978, p.128). A Internet, com a popularidade das redes sociais, colabora para que essa “paixão” permaneça se perpetuando para as novas gerações. 

O torcedor de futebol pertence a um grupo social marcado pela heterogeneidade de suas características e composições. Desde que o futebol foi introduzido no Brasil, despertou-se o interesse de cada vez mais pessoas. Esses “aficionados” começaram a se unir para prestigiar os jogos e com isso passaram a se organizar, mas o futebol tomou uma proporção tão grande na sociedade brasileira que torcer deixou de ser algo que se restringe às arquibancadas dos campos de futebol, massificou-se ao ponto de que ele se torna assunto no trabalho, na escola, entre familiares, entre amigos e nos mais diversos espaços, nas mídias, nas redes sociais, nos rádios, entre outros meios de comunicação.

O torcedor, agente responsável pelo ato de torcer, é também um indivíduo que compõe a sociedade e reflete toda diversidade social também dentro das arquibancadas, dos estádios, ou onde quer que esteja torcendo. Por isso, o futebol se torna um importante campo para discutir e combater as opressões (como o racismo) que ocorrem na sociedade, pois elas também acontecem no futebol, assim como se manifestam os movimentos contra hegemônicos dentro e fora deste âmbito. Sobretudo, este esporte está tão imerso na cultura brasileira que ele também pode ser como uma espécie de vitrine para a sociedade como um todo.

O Racismo no futebol 

O Brasil é um país que, ainda na atualidade, apresenta características semelhantes às suas raízes coloniais e escravocratas, consequentes de sua história e formação social. As opressões aos grupos tidos como minoritários[1], como o racismo aos negros e indígenas e o machismo contra as mulheres, estão nas estruturas sociais do país. Esse padrão também está presente no âmbito do futebol e ele acontece das mais diversas formas e nos mais variados espaços deste esporte.

Desde sua origem elitista que excluía os grupos mais periféricos dos espaços de lazer a popularização deste esporte, que é entendido como pertencente a cultura nacional, ainda hoje, o terreno do futebol é um espaço em que o discurso de ódio e, muitas vezes, o apagamento desses grupos minoritários se fazem presentes, mesmo que a maioria dos grandes ídolos do futebol, historicamente, sejam homens negros, inclusive o Pelé que é considerado o “Rei do Futebol”. E, se adentrarmos no campo do futebol feminino, as jogadoras mais famosas também são negras, como a Marta, a Formiga e a Cristiane.

Ignora-se que a própria história do futebol no Brasil, inicialmente praticado por representantes de elites majoritariamente de descendência europeia, é perpassada por lutas pelo direito de jogar bola e de torcer, pelo direito de ser reconhecido como jogador e torcedor de futebol. (PINTO, 2017, p.18)

Não é futebol, é racismo
Movimentos Sociais realizaram um protesto em solidariedade ao atacante Vinicius Junior, do Real Madrid e contra o Racismo, em frente ao Consulado espanhol na Zona Sul de SP nesta noite desta terça-feira (23). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75

Porém nem sempre o negro foi bem-quisto no futebol – assim como hoje, apesar de “aceito”, o negro não pode cometer nenhuma falha, pois a “régua” moral é muito mais rígida. “A derrota do Brasil em 50, no campeonato mundial de futebol, provocou um recrudescimento do racismo. Culpou se o preto pelo desastre de 16 de julho”[2] (FILHO, p.17, 2010), no caso, o goleiro Barbosa[3]. Mario Filho, vai relatar em seu livro “O negro no futebol”, a exclusão do negro neste esporte, tanto no campo como nas arquibancadas, no início do século passado. Segundo Mario Filho (2010), aos jogadores brancos estava reservado os grandes clubes, e aos negros os clubes menores. Aos torcedores brancos as arquibancadas, aos negros a geral. “O fato é que mesmo com as tentativas de manter o futebol exclusivo das elites, a popularização e a consequente massificação foram inevitáveis” (MAGALHÃES, p.22, 2014).

O futebol se popularizou e o negro não só passou a fazer parte deste esporte, como tornou-se o protagonista. Os times formados pelos operários das fábricas foram fundamentais para essa inserção, mas outros aspectos como a profissionalização do futebol foram muito importantes para este fato, como descreve Soraya Bertoncello (p.82, 2022):

A profissionalização do futebol, nos anos 1930, foi determinante para a inserção do negro no esporte. A transformação do amadorismo para o profissional, porém, não foi tranquila: houve conflitos entre as federações com os que eram contrários às mudanças acarretadas. A profissionalização também mudou o perfil dos torcedores no estádio, uma vez que a modalidade já não era mais um lazer exclusivo para a elite. Porém, as diferenças sociais seguiram bastante marcadas nas arquibancadas: aos ‘novos’ torcedores, oriundos das classes populares, eram reservados os espaços chamados de ‘geral’.

De certo, nos últimos anos, tivemos alguns avanços no que diz respeito ao combate a essas opressões. Posicionamentos contra hegemônicos presentes nas arquibancadas, debates na grande mídia, campanhas nos estádios e nas redes sociais promovidas pelos clubes, são alguns aspectos que contribuem para este fato. Contudo, o discurso de ódio a estes grupos ainda é predominante no âmbito do futebol, por isso, é necessário compreender o porquê, ainda na atualidade, é tão difícil de superar essa narrativa dentro deste esporte.

Entendendo – a partir do conceito de Guedes (1998), que o campo de futebol é o lugar onde foi colocado o povo brasileiro – que a arquibancada é um microcosmo constituinte da sociedade brasileira[4], pode-se afirmar que o racismo presente nesta sociedade também está na arquibancada e no campo futebolístico como um todo. Visto que, a partir desta concepção, o futebol reflete e influencia essa sociedade. Portanto, é fundamental o desenvolvimento de estudos acerca da questão racial no futebol.

De fato, o futebol, como a maioria dos esportes, é um excelente terreno para a construção e confrontação de juízos sobre a nação. E é justamente porque os esportes se constituem em ‘domínio menor’ da sociedade que apresentam enorme abertura às mais diversas apropriações ideológicas. (GUEDES, 1998, p.20)

O que o futebol de hoje fala sobre o racismo

Assim como Barbosa não podia errar, e tantos outros jogadores negros que vieram antes ou depois dele, ainda hoje, o homem negro continua sem poder cometer erros (dentro ou fora do âmbito futebolístico). O jogador negro não pode ter falhas. É o que vem acontecendo com o jogador John Kennedy, do Fluminense, e que foi convocado para a atual seleção pré-olímpica. Mais popularmente chamado pela torcida do tricolor carioca como JK, ao longo de sua recente carreira profissional o jogador foi assunto nas “Redes Sociais” e em páginas de futebol sobre o uso de drogas, inclusive teve um carro apreendido com 10 gramas de maconha, mas o jogador não estava no veículo e as duas pessoas no carro não tinham habilitação[5]

Contudo, na última temporada, JK se tornou um dos jogadores mais importantes da história do Fluminense, com apenas 21 anos. Foi dos pés do jogador que saiu o gol do título da Copa Libertadores da América, título esse que o tricolor das Laranjeiras almeja há tempos, principalmente após o vice-campeonato em 2008, e o qual o clube nunca havia conquistado. Além disso, foi importante em todas as fases eliminatórias da competição, inclusive iniciando a virada contra o Internacional na semifinal do mesmo campeonato. No mundial de clubes, ainda em 2023, após a conquista da Libertadores, fez o gol na semifinal contra o Al Ahly que garantiu a vaga na final contra o Manchester City.

John Kennedy
John Kennedy comemora gol pelo Fluminense. Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC.

Entretanto, apesar de todas essas conquistas, o que ficou marcado no JK foi o seu envolvimento com as drogas, ou com o técnico, Fernando Diniz, um homem branco, que recuperou o menino perdido. A torcida do Fluminense, inclusive, fez uma música para o jogador, se referindo às questões do mesmo com as drogas.

 Ele fuma, ele cheira, ele gosta de baforar. Oba, oba, mais um gol do JK.

Ainda após a semifinal do Mundial de Clubes, viralizou na internet uma “Fake News” dita por um jornalista no “UOL News Esporte’’, que a comemoração feita pelo jogador, imitando um urso, é uma referência a um chefe de uma facção criminosa do Rio de Janeiro[6]. Após críticas na internet, o jornalista pediu desculpas e declarou que ouviu boatos e que “pode ter” caído em uma “Fake News”. O jogador já havia dito, anteriormente, que a comemoração tinha um duplo significado, primeiro em relação a ter fome de gols, ainda na base, e também como uma referência ao jogador Cristiano Ronaldo, ídolo do JK[7].

Outro aspecto que precisa de atenção é acerca do aprofundamento da rivalidade entre Brasil e Argentina no futebol. Durante a Copa Libertadores, ocorreram diversas denúncias de jogadores e torcedores brasileiros que foram jogar na Argentina e que sofreram racismo, principalmente de torcedores rivais nas arquibancadas imitando macacos. Essa questão ganhou maior projeção na final na Libertadores, com a invasão argentina no Rio de Janeiro e após o confronto entre a seleção da Argentina e o Brasil no Maracanã culminando em uma briga generalizada na arquibancada. De repente, o brasileiro se tornou antirracista e usou deste suposto antirracismo para ser xenofóbico. Não é porque um grupo de argentinos foi racista que todo argentino é racista, não podemos generalizar. Todavia, o que na realidade incomoda não é somente o “racismo argentino” e sim que este racismo é dirigido ao brasileiro como um todo, inclusive ao branco, por isso incomoda de forma generalizada. A mesma sociedade que é diariamente racista, que tem esse racismo enraizado em sua estrutura, nas suas instituições, levanta a pauta antirracista quando esse racismo é oriundo da Argentina.

Na final da Libertadores a torcida do Fluminense modificou um canto direcionado ao flamengo com o termo mulambo, trocando o termo por racista:

“E pra você flamenguista me escuta, mulambo imundo, filha da puta”

“E pra você argentino me escuta, racista imundo, filha da puta”

Contudo, em 2021, a Bravo 52 anunciou nas redes sociais que iria retirar o termo mulambo desta e de outras músicas da torcida para se referir a torcida do Flamengo, entendendo ser um termo pejorativo de cunho racista. No mesmo dia houve uma série de ataques pelas redes sociais da Força Flu contrária à decisão da Bravo causando uma grande tensão que fez com que a Bravo voltasse atrás na decisão e não quisesse mais tocar nesse assunto para evitar conflitos.

No jogo seguinte a final no Maracanã, que foi retirado o termo racista para fazer um protesto antirracista, o canto original com a expressão mulambo retornou às arquibancadas.

Para finalizar, é importante destacar os casos recentes de racismo contra os jogadores brasileiros Vinicius Jr. e Rodrygo do Real Madrid, na Espanha, e a forma como ambos denunciaram a opressão e deram visibilidade a essa pauta que é muito importante. Quando estes jogadores denunciam o racismo dentro do futebol, esta opressão passa a ser debatida dentro deste âmbito. Eles são referência para os diversos jovens negros que sonham em ser como eles. É importante ressaltar que o futebol é um campo importante no combate às opressões devido ao fato deste esporte penetrar as mais diversas camadas sociais, as mais diferentes idades e a heterogeneidade que representa a sociedade brasileira.

Referências Bibliográficas

BERTONCELLO, Soraya. O futebol enquanto instância midiática da publicidade social: uma análise do discurso das campanhas do Esporte Clube Bahia. PUC-RS, Porto Alegre, 2022.

FILHO, Mario. Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad. 5ª edição: 2010.

GUEDES, Simoni Lahud. O povo brasileiro no campo de futebol. Revista DF-letras, Brasília – DF, 1998.

MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Com a taça nas mãos. Sociedade, copa do mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Lamparina, FAPERJ. 1ªed. Rio de Janeiro, 2014.

PINTO, Mauricio. Rodrigues. Pelo direito de torcer: das torcidas gays aos movimentos de torcedores contrários ao machismo e à homofobia no futebol. São Paulo, 2017.

VALENTE, Camila. Muito Além do Futebol: política, conservadorismo e resistência nas torcidas de futebol do Brasil contemporâneoRio de Janeiro, 2023.

VELHO, Gilberto. “Observando o Familiar.” In: A Aventura Sociológica. NUNES, Edson de Oliveira. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.


[1] Tidos como minoritários, pois são minorias nos espaços de poder, porém são a maioria da população brasileira.

[2] Em 1950 o Brasil perdeu a Copa do Mundo em casa, no Maracanã, para o Uruguai. O estádio mesmo com mais de 100 mil pessoas ficou em completo silêncio após a derrota, com as pessoas sem acreditar no que estava acontecendo, este fato ficou conhecido como “Maracanazo”.

[3] Barbosa foi acusado de ter falhado no gol que deu a vitória ao Uruguai, ainda hoje há dúvidas sobre esta falha ter acontecido de fato.

[4] VALENTE, 2023

[5] Carro de John Kennedy é apreendido com tabletes de maconha | O Globo

[6] Jornalista faz acusações sobre comemoração de John Kennedy e depois se desculpa | Terra

[7] Final do Mundial de Clubes: Entenda a comemoração de John Kennedy, do Fluminense, que já foi associada à polêmica | Terra

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SOUZA, Camila Valente de. Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 15, 2024.
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