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Divididos pela camisa amarela: o legado político e esportivo da Copa de 2014 na América do Sul

Semanas antes do início da Copa de 2014, boa parte da população brasileira expressava sentimentos contraditórios em relação ao torneio: de um lado, havia a tradicional demonstração eufórica de amor pela seleção; de outro lado, porém, os brasileiros estavam furiosos com a FIFA e as suspeitas de corrupção que se acumulavam em relação às obras já prontas e mesmo aquelas inacabadas para a competição.

Estas atitudes conflitantes em relação à seleção encontram raízes no passado autoritário do país, quando governos ditatoriais usaram a gloriosa trajetória da equipe nacional masculina de futebol para reforçar a sua própria tirania. Durante a ditadura civil-militar (1964-1985), diversos grupos guerrilheiros que lutaram contra este governo antidemocrático tentaram mobilizar seus militantes na clandestinidade a torcer contra a seleção – mas sem atingir muito sucesso nesta empreitada, como eu comento em meu livro mais recente.

Desde 2014, os brasileiros vêm vivendo em um terremoto político. Alguns meses depois do final da Copa, a eleição presidencial dividiu o país em dois: a então presidente Dilma Roussef conseguir ser reeleita pela margem mais estreita de votos na história das eleições presidências no Brasil,  vencendo seu rival por apenas 3% dos votos válidos. Esta divisão política se refletiu na sociedade como um todo: famílias brigaram em virtude de seu candidato preferido, amizades de longa data foram desfeitas; a raiva que dominava as mídias sociais transbordou para as ruas, onde discussões acaloradas dos partidários de candidatos opostos eram cenas comuns.

Logo após a sua reeleição e o início de seu segundo mandato, Roussef encarou uma campanha oposicionista sem precedentes no país: uma classe media urbana, inflamada pelos partidos derrotados na eleição presidencial do ano anterior, e infeliz com os rumos da economia brasileira, começou a demonstrar todo seu ódio contra Dilma Roussef. Inicialmente, eles protestavam do interior dos seus apartamentos, batendo panelas nas janelas a cada vez que a presidente aparecia na televisão para um pronunciamento ou entrevista. Depois de um tempo, eles saíram às ruas aos milhares para manifestar sua desaprovação ao governo de Roussef e suas políticas econômicas e sociais. Rapidamente, o presidente da Câmara dos Deputados aceitou e encaminhou um pedido de impeachment contra a presidente.

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Cristiane Brasil, com a camisa da seleção brasileira, durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff. Foto: Antonio Augusto/Câmara dos Deputados.

Movimentos de extrema direita, com a ajuda dos maiores canais de televisão brasileiros e de alguns governadores estaduais, insuflaram os protestos. Milhões de manifestantes se aglutinaram nas ruas para protestar contra a presidente. Em maio de 2016, Dilma Roussef foi temporariamente removida de seu cargo pela Câmara dos Deputados. Logo após os Jogos Olímpicos do Rio em 2016, ela foi definitivamente afastada. As alegações contra ela eram inconclusivas e não envolviam acusações de corrupção, mas a maioria dos Senadores votou contra ela de qualquer jeito. Michel Temer, o seu vice que participou ativamente na campanha para derrubá-la, assumiu a presidência.

Mas qual a relação desta turbulência política com a seleção brasileira de futebol?

A camisa amarela. O símbolo escolhido pelo movimento pró-impeachment de Dilma Roussef, liderado por partidos políticos conservadores e por organizações políticas de extrema direita, foi a camisa amarela da seleção brasileira. Para evidenciar o seu alegado patriotismo e lealdade ao país, milhões de pessoas vestiram a camisa amarela da seleção nas manifestações contra a então presidente eleita.

Curitiba (PR) - Manifestantes a favor da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em frente a sede Policia Federal (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Manifestantes (vários com a camisa da seleção brasileira) a favor da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em frente a sede Policia Federal. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.

Em uma sociedade que já estava rachada ao meio pelas eleições de 2014, o uso da camisa da seleção por forças conservadoras mostrou-se determinante para ampliar esta divisão social. Em um lado, viam-se as classes medias e altas, todas vestidas em amarelo, protestando contra o governo de Dilma Roussef e as políticas sociais do governo de seu Partido dos Trabalhadores (PT). Do outro lado, mais à esquerda do espectro político, estavam os apoiadores destas políticas, que consideravam o impeachment um golpe de Estado e bradavam por justiça – sempre usando vermelho.

Esta divisão simbólica não terminou em 2016 com a queda da presidente. Depois do impeachment, o terremoto social e político continuou. A Operação Lava a Jato, uma investigação nacional contra a corrupção, muito controversa, mas com forte apoio social, mandou para a prisão diversos empresários e políticos importantes, incluindo o ex-presidente da Câmara dos Deputados (o mesmo que encaminhou e liderou o processo de impeachment de Dilma Roussef) e o ex-Governador do Rio de Janeiro, entre outras figuras do alto escalão político brasileiro. Finalmente, há alguns meses, a Operação Lava a Jato conseguiu prender o ex-presidente (2003-2010) brasileiro, Luiz Inacio Lula da Silva, que atualmente lidera todas as projeções de votos para a eleição presidencial de 2018.

Em todos estes momentos, a camisa amarela da seleção foi usada pelos manifestantes nas ruas, para mostrar o seu desencanto com os rumos do país e a sua desaprovação as alegadas praticas corruptas de diversos governantes.

Moradores da Travessa Santa Clara, região central de Niterói, enfeitam rua para Copa do Mundo 2014 (Tomaz Silva/Agência Brasil)
Moradores da Travessa Santa Clara, região central de Niterói, enfeitam rua para Copa do Mundo 2014. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.

Entretanto, as intenções por trás do impeachment de Dilma Roussef rapidamente se tornaram claras: Michel Temer, o novo presidente, começou a cancelar todas as políticas sociais que marcaram o governo do PT, devolvendo milhões de pessoas à miséria que havia quase sido erradicada na década anterior. Ele também encaminhou projetos a Câmara dos Deputados para abolir direitos trabalhistas que vigoravam nos últimos 80 anos, fazendo com que milhões de trabalhadores passassem a enfrentar condições piores e mais inseguras de trabalho.

A confusão política não se encerrou, e a camisa da seleção, que outrora era o símbolo de uma nação vencedora, virou sinônimo de partidos políticos e organizações conservadores, e de políticas publicas antipopulares. Toda esta balbúrdia política, combinada com os escândalos da FIFA nos quais três presidentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) foram depostos de suas funções e banidos do futebol pela FIFA, sendo um inclusive  preso nos Estados Unidos, resultaram em um grande “legado”: a seleção começou a ser extremamente questionada e passou a, lentamente, deixar de ser o centro do cotidiano dos brasileiros.

Pesquisas recentes mostram que 41% dos brasileiros não têm mais muito interesse por futebol. Além disso, há uma tendência crescente das pessoas torcerem contra o time nacional! Aquela atmosfera festiva que costumava tomar as ruas do país durante os jogos do time nacional durante a Copa do Mundo começou a diminuir. Evidência deste estado de espirito aparece em um incidente pequeno, mas simbolicamente relevante ocorrido no início desta Copa de 2018 em uma pequena comunidade de classe baixa em Teresina, no norte do Brasil: aquela comunidade, ao invés de pintar as suas ruas e casas com as cores da bandeira nacional brasileira, fez as suas decorações usando… as cores da Argentina, o rival esportivo mais tradicional do Brasil!

A divisão politico-eleitoral, o uso da camisa da seleção por um dos lados do conflito social, as persistentes praticas corruptas nos altos escalões da sociedade brasileira, incluindo os cartolas do futebol, finalmente invadiram os corações da população brasileira: depois de quatro anos da “melhor Copa do Mundo da história”, o seu legado está tomando forma – e não parece muito positivo para aqueles que sempre amaram o glorioso futebol-arte da seleção Brasileira


(1) Originalmente publicado em http://playthegame.org/news/comments/2018/070_divided-by-a-yellow-shirt-the-2014-world-cup-and-its-political-and-sporting-legacies-in-south-america/

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Jorge Dorfman Knijnik

Nasci em Porto Alegre, cresci em São Paulo e brinquei carnaval em Pernambuco. Filhos, Frevo e Futebol. Tardes com meu pai assistindo o Pele jogar no Pacaembu. Recentemente publiquei o livro "The World Cup Chronicles: 31 days that Rocked Brazil", um passeio histórico e etnográfico sobre o Brasil antes, durante e depois da Copa de 2014 (https://amzn.to/2An9bWS). Atualmente moro em Sydney, na Austrália, onde sou professor da Western Sydney University - venha fazer doutorado comigo! Mas já aviso: continuo São Paulino! e um pouco gremista também.

Como citar

KNIJNIK, Jorge Dorfman. Divididos pela camisa amarela: o legado político e esportivo da Copa de 2014 na América do Sul. Ludopédio, São Paulo, v. 109, n. 32, 2018.
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