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Caricaturas de J. Carlos: representações da torcida no início do século XX

Tentar reescrever o passado dos torcedores e torcedoras que frequentaram estádios nos primórdios do esporte é bastante difícil. No caso do Brasil, a imprensa nos ajuda a captar um pouco deste fenômeno, sempre tomando os devidos cuidados com os discursos proferidos neste tipo de documento. Podemos usar também fontes literárias, atas de assembleias de clubes que descrevem um pouco da atmosfera do que se passava em suas arquibancadas em dias de jogos. Até mesmo documentos policiais sobre distúrbios dentro e fora dos estádios. Há também um universo ainda quase inexplorado de referências aos torcedores e às torcedoras feitas por meio de caricaturas publicadas em muitas das revistas do início do século XX.

Para ilustrar estas referências, vou mostrar um pouco do universo destas caricaturas de J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha), publicados na revista Careta. Já trabalhei um pouco com este material, principalmente no capítulo que escrevi para o livro Torcida Brasileira. Alguns destes desenhos foram colocados no texto anterior que falava sobre assédio nas arquibancadas. Mas creio que vale a pena mostrar um pouco mais deste universo.

Página número 8 da revista Careta com o texto "O foot-ball" e com as ilustrações de J. Carlos (número 569, publicado em 17 de maio de 1919, p. 8).
Página número 8 da revista Careta com o texto “O foot-ball” e com as caricaturas de J. Carlos (número 569, publicado em 17 de maio de 1919, p. 8).

J. Carlos foi, sem dúvida, um dos maiores caricaturistas do Brasil do seu tempo. Ilustrou as capas e páginas da revista semanal Careta. Esta publicação foi talvez a mais popular revista do Rio de Janeiro e que circulou por todo o Brasil. Trabalhou com exclusividade para esta revista entre 1908 e 1921. Há muitos desenhos de J. Carlos relacionados a torcedores e torcedoras. Mas esta é uma temática que ainda carece de uma pesquisa mais aprofundada.

Um dos momentos altos destas publicações se deu em 1919, ao longo do Campeonato Sul-Americano de futebol daquele ano, disputado pela primeira vez no Rio de Janeiro. A revista Careta fez uma ampla cobertura do evento. As caricaturas de J. Carlos serviram para ilustrar textos e capas da revista. Como nesta coluna o interesse é sempre na arquibancada, deixo aqui alguns exemplos extraídos de dois números da revista publicados ao longo do Sul-Americano de 1919. São dezoito caricaturas que compunham dois textos: “O foot-ball” (publicado no número 569, de 17 de maio de 1919) e “Torcedoras e Torcedores” (publicado no número 572, de 7 de junho de 1919). Sem análises mais aprofundadas, a ideia é dar conhecimento destas caricaturas, mostrando o potencial deste tipo de abordagem.

Página número 9 da revista Careta, continuação do texto "O foot-ball" e com as ilustrações de J. Carlos (número 569, publicado em 17 de maio de 1919, p. 9).
Página número 9 da revista Careta, continuação do texto “O foot-ball” e com as caricaturas de J. Carlos (número 569, publicado em 17 de maio de 1919, p. 9).

Um dos aspectos que se nota é que todos os representados (jogadores, torcedores e torcedoras) são brancos. Há também mais representações de torcedoras do que de torcedores. Além disso, apenas as torcedoras aparecerem interagindo com jogadores. São oito ilustrações de torcedoras se contorcendo (ou seria torcendo?), além de três ilustrações de torcedoras junto de jogadores. Em relação aos torcedores, são apenas quatro ilustrações, ainda que em uma delas há uma multidão de torcedores atrás da figura principal. Há duas ilustrações de jogadores em atuação com a bola. E também uma imagem feminina da república segurando as bandeiras dos quatro países participantes: Argentina, Chile, Uruguai e Brasil.

O texto “O foot-ball” fazia alusão à grandiosidade que o futebol tinha para o carioca daquele tempo. Dez das doze caricaturas fazem referência aos torcedores e torcedoras. Destas, sete se referem exclusivamente à torcida, cinco deles representando apenas mulheres.

Página número 16 da revista Careta com o texto "Torcedoras e Torcedores" e com as ilustrações de J. Carlos (número 572, publicado em 7 de junho de 1919, p. 16).
Página número 16 da revista Careta com o texto “Torcedoras e Torcedores” e com as caricaturas de J. Carlos (número 572, publicado em 7 de junho de 1919, p. 16).

Já no texto “Torcedoras e torcedores”, que já inicia colocando em seu título as torcedoras antes dos torcedores, tem uma página com seis ilustrações: três torcedoras, dois torcedores (um deles com muitos outros torcedores atrás) e um jogador. O texto que acompanha as imagens afirma que o futebol no Rio de Janeiro representa o que o teatro representa para Paris e que com este esporte foi criada uma importante figura, o torcedor, “figura que é, na sua individualidade mais simpática, mais constante, e mais numerosa – paradoxalmente feminina”. Aliás, este texto é um dos pouco que se dedica exclusivamente a falar deste novo personagem que se instaurava nos estádios de futebol naquele período.

Há uma série de questões a serem pesquisadas a partir destas e de outras representações esportivas feitas nos desenhos de J. Carlos e de desenhistas como Belmonte, Seth, Henfil e tantos outros. Podemos estudar relações étnicas, de gênero, da cultura popular, da urbanidade, aspectos do lazer moderno, do entretenimento, o próprio papel que ocupam estas ilustrações dentro das publicações, a presença de grandes políticos nas arquibancadas, entre muitos outros. Creio que vale a pena esta investida.

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Em tempo:

  1. As imagens foram retiradas do banco de dados da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  2. Para quem se interessar por este tipo de temática, recomendo a dissertação de Flavio Pessoa, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, “Humor, Futebol, Política e Sociedade nas charges do Jornal dos Sports: um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo Molas (1944-1947) e Henfil (1968-1972)“.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Caricaturas de J. Carlos: representações da torcida no início do século XX. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 23, 2018.
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