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Che Guevara, o pegador de pênaltis

Pablo Galassi 6 de dezembro de 2020

O futebol teve momentos importantes na vida do guerrilheiro. Jogar como goleiro o ajudou a sobreviver em sua famosa viagem pela América Latina e os torcedores do Rosario Central o consideram um ídolo próprio. 

A última imagem de Che Guevara como uma bola de futebol é a de um amistoso entre o clube Industrial de La Habana e o Madureira do Rio de Janeiro, em 1963 (imagem acima). Os olhos cariocas estavam fixados naquele jovem de boina, barba e uniforme que ri com a bola entre as mãos. O ministro da Indústria da Revolução, com as botas da guerrilha sempre amarradas pela metade, como se o protocolo não importasse. Difícil – falando em futebol – não encontrar paralelismo com outro herói popular argentino – o outro herói – que também em Cuba encontrou seu refúgio, e que tem o Che tatuado. Maradona também era capaz de entusiasmar o povo com as chuteiras de futebol constantemente desamarradas.

La Higuera

Começamos pelo final. Vallegrande, Bolívia, 12 de outubro de 1967. Na ausência de aeroporto, o Cessna 182 do jornal argentino Crónica decola do campo de futebol onde havia pousado há pouco. Dentro, o fotógrafo Hugo Lazaridis e o cronista Walter Operto guardavam uma exclusiva mundial: Ernesto Guevara de la Serna, também conhecido como Che, não havia caído em combate, como afirmava o Exército da Bolívia. Havia sido capturado e executado a sangue frio. Os cronistas argentinos conseguiram enganar dois guardas bolivianos para que conseguissem gravar alguns poucos minutos de corpo. As imagens reconstituem o final daquele mártir seminu que tanto lembrava o Cristo morto de Andrea Mantegna, embora os seus olhos ainda estivessem abertos, olhando para frente, como se estivesse vivo. O Cessna acelerou e decolou, passou sobre o travessão de uma das metas e de volta para Buenos Aires. Não era o único avião que fez esta rota naquelas horas. No mesmo dia, três peritos argentinos chegaram ao povoado de La Higuera com a ordem de identificar Che Guevara a partir de suas impressões digitais. Do corpo, só preservaram as mãos no formol, amputadas pelo cirurgião Moisés Baptista. Mãos cortadas “que ainda golpeiam” como escreveu Pablo Neruda. Mãos que dispararam e curam feridas, moveram peças de xadrez, segurou bolas de rugby e que, ainda custe imaginar, também defendeu pênaltis.

Goleiro

O dia 6 de julho de 1952 o jovem Guevara escreveu a sua “querida senhora” Celia de uma Bogotá militarizada, “o país que tem mais garantias individuais suprimidas de todos os que viajamos”. E o seu companheiro Alberto Granado havia chegado de balsa Mambo-Tango vindo do Peru. Outra conhecida foto da viagem imortalizada com os seus remos apoiados, Che com a camisa listrada, como pitoresco gondoleiro do Amazonas. No porto cafeeiro vizinho de Leticia, eles contornaram as dificuldades com improvisos, que dependendo das circunstâncias, às vezes assumiam o papel de médicos e outras vezes de jogadores profissionais de futebol. Granado no meio de campo e Che no gol por causa da asma que sempre o assolava. O goleiro se autodenominou “Fúser” pelo Furibundo Serna.

A equipe local Independiente Sporting de Leticia recorreu aos estrangeiros para disputar um pequeno torneio. Che cita en passant em seu diário de viagem a aventura futebolística: “Pensamos que só iriamos treinar para não passar vergonha, mas como eles eram muito ruins, decidimos jogar também. Com o resultado brilhante que o time mais fraco foi o finalista e perdeu o desempate nos pênaltis.” Alberto estava inspirado parecendo Pedernera, com passes milimétricos. Ele ganhou o apelido de Pedernerita, e eu salvei um pênalti que ficará na história da Letícia”. Granado acrescentou mais detalhes nessa festa: “O verdadeiro herói foi Fúster. Como a partida terminou em 0 a 0, e era a final, então, foi definida nos pênaltis. Das três penalidades contra nós, o primeiro foi um tiro de canhão que acabou no fundo das redes. O segundo foi para fora, e o terceiro, Pelao pegou de maneira brilhante. Foi um remate no canto superior direito, que Fúster numa estirada formidável, jogou a bola por cima do travessão”.

Guevara explicou também como passaram o tempo na Colômbia, tentando assistir aos jogos de graça: “Amanhã verei Millonarios e Real Madrid da arquibancada mais popular, já que os compatriotas são mais difíceis de quebrar do que os ministros”, escreve Ernesto. Entre os jogadores argentinos que imigraram para o jovem e rico e futebol colombiano, após a greve rioplatense de 1948, estava Adolfo Pedernera, Nestor Rossi e Alfredo Di Stefano. Eles eram as estrelas do Ballet Azul de Bogotá: porém, os dois vagabundos não conseguiram ingressos para o amistoso contra os espanhóis.

Ian Howkey, biógrafo de Di Stefano, cita o encontro da Saeta Rubia em que Guevara e Granado tentaram sem sucesso que o grande Alfredo lhes desse ingresso para a partida. Já haviam passado seis meses desde de que subiram de Córdoba na La Poderosa, como apelidaram a Norton 500 de 1939. A motocicleta sobreviveu até Santiago do Chile, quando passou de “mangueros motorizados” para “linyeras con el mono a cuestas”. Foi na zona mineira dos Andes que o diário de Guevara registrou a primeira experiência futebolística da viagem. “Nos encontramos com um grupo que estava jogando futebol. Alberto tirou um par de alpargatas da mochila e começou a dar sua palestra. Resultado: contratado para o jogo do próximo domingo; casa, comida, transporte”.

A picardia criolla foi fundamental para que eles ganhassem abrigo e comida: “Nas ruínas de Cuzco, encontramos um grupo que jogava futebol e fomos convidados a jogar. Falei, com todo humildade, que havia jogado por um clube de primeira divisão de Buenos Aires com Alberto, que mostrou a sua habilidade no campinho. Nossa habilidade relativamente estupenda garantiu a simpatia do dono da bola e do gerente do hotel”. Algo estava mudando o ânimo de Fúster. Na noite de 14 de julho de 1952, comemorou o seu 24º aniversário com um discurso pan-americanista, convidando o público a um brinde ao Peru e à América Unida. Estavam na colônia de leprosos de San Pablo, onde passavam os dias em com Granado jogando futebol com os doentes, que assistiam com lágrimas o Mambo-Tango se afastar com a corrente: Che não imaginou então que outro barco, maior, mas não menos precário, está esperando para levá-lo ao seu destino revolucionário e caribenho.

Canalla

Havana, 1997. Cerca de 50 torcedores do Rosario Central comemoram o gol mais festejado do mundo, imortalizado por Negro Fontanarrosa em seu conto mais famoso: a histórica palomita (arremate de cabeça mergulhando[1]) de Aldo Pedro Poy na semifinal entre Central e Newell’s Old Boys de 1971. Um ritual reproduzido todos os anos em um lugar diferente entre fãs nostálgicos e o próprio protagonista da jogada. Miami, Montevidéu, Santiago do Chile, Barcelona ou Malloca testemunharam a procissão. Segundo a tradição, todo dia 19 de dezembro Aldo Poy voa como naquela tarde no Monumental, marcando de cabeça. Membros da OCAL, a misteriosa Organización Canalla para América Latina, levam 700 camisetas para os “caribitos” (os jovens cubanos) e uma certidão de nascimento para Che.

Porque além de Rosario, Ernesto Guevara era de Central. Seu irmão Roberto revelou e Dr. Granado repete aos fãs desonestos. Isso é confirmado por Carlos Ferrer, companheiro de viagem em sua última viagem à América, quando o destino o apresentará a Fidel Castro em uma noite quente mexicana de 1955: seu ídolo de infância foi Torito Aguirre, artilheiro do Central junto com Kempes. Bonito, provocador e bêbado, Aguirre morreu em uma delegacia nos subúrbios de Rosario, espancado até a morte por dois policiais. A caravana de Rosario passou por Havana em 14 de setembro de 1997.

O próprio Aldo Pedro Poy ensaiou sua palomita em um campo de futebol da ilha. O meio-campo estava improvisado um jogador cubano, apaixonado por motocicletas e com algum traço familiar conhecido: Ernesto Guevara March, último filho de Ernesto Guevara e Aleida March. Um mês depois, exatamente trinta anos após sua morte, os restos mortais de Ernesto Guevara identificados em solo boliviano voltaram à Cuba. Eles foram enterrados no mausoléu de Santa Clara, onde em 1958 a Coluna 8, guiada por Che, deu o “xeque-mate” no regime de Batista. A seu lado, desde então e para sempre, a guajira Aleida, mensageira, guia e guerrilheira.

 

Tradução: Victor de Leonardo Figols

[1] A cabeçada é conhecida no Brasil como “peixinho”.


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Como citar

GALASSI, Pablo. Che Guevara, o pegador de pênaltis. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 15, 2020.
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