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Chuva na arena: era a brecha que o cliente queria

Luciane de Castro 10 de fevereiro de 2018

Hoje é quarta-feira e este texto só estará disponível no sábado de carnaval. Seria mais prudente, digamos assim, que eu aguardasse mais alguns dias antes de mandá-lo para a revisão do editor, mas a veia do alambrado tá saltando. O sangue de torcedora tá correndo frenético agora.

Estava tudo indo bem nesta quarta-feira. Foco no término do texto para Lúcio Branco, casa milagrosamente em silêncio e o samba de raiz tocando alto no ouvido. Já já é carnaval e, embora eu não disponha mais de pique pra brincar a festa, gosto da aura que toma conta do país, assim como gosto d@s man@s que dão pé pra gente rir um pouco.

O que resta para terminar o texto para Lúcio pode esperar um tiquinho porque vou aproveitar o espaço da Arquibancada neste querido site Ludopédio para falar como sinto – eu e tantos outros companheiros e companheiras – o ambiente do estádio de futebol.

A urgência se dá em razão da notícia circulando e agitando o mundo futeboleiro sobre o processo movido por alguns torcedores contra o Palmeiras e a CBF, pela chuva que tomaram no dia do jogo contra o Santos. Mais detalhes neste link.

Nem no auge do meu bode por este futebol que nos é apresentado atualmente, poderia imaginar alguém capaz de despender tempo e dinheiro num processo cuja causa é simplesmente surreal. Tão surreal quanto ridícula.

Zero noção de estádio. Toda noção de dinheiro.
Zero noção de estádio. Toda noção de dinheiro.

A euforia por sediar uma Copa do Mundo após 64 anos nos brindou com uma mudança bastante significativa no modo de torcer e, em partes, nas características dos frequentadores do espaço do jogo.

Não é novidade e nem vou chover no molhado <olha o truque!> sobre as reformas exigidas nos estádios em nome do padrão FIFA e o quanto isso nos onerou em todos os sentidos. Óbvio ululante que a conta ia cair no colo do torcedor. Para uns, o ingresso mais caro e a impossibilidade de frequentar o espaço que até então era democrático. Para outros uma oportunidade de sair do sofá e não ter que lidar com o “tipo de gente” que faz do futebol o que ele é.

Mas não pretendo aprofundar a questão da elitização. Para isso recomendo fortemente o livro “Clientes versus Rebeldes – Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno” do amigo Irlan Simões. Um livraço, por sinal!

A ideia é falar de igual com quem sabe o que é uma arquibancada, um alambrado. Com quem tá pouco se lixando se tá um sol de rachar ou se um dilúvio se aproxima. A ideia é com quem é idem no amor pelo jogo e não pelos acessórios de boy que inventaram de colocar dentro de um “estádio”. A ideia é com quem foi suprimido deste local em razão de dívidas assumidas para atender às exigências da “dona” do futebol.

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Clássico entre Palmeiras e Santos sob muita chuva aconteceu em setembro de 2017 pelo Campeonato Brasileiro. Foto: Fabio Menotti/Ag Palmeiras/Divulgação.

Já conheço as respostas, mas vou perguntar por motivos de ‘preciso pegar pra louco quem entra com processo contra um clube porque acabou se molhando com a chuva’.
1 – Você é de açúcar ou qualquer outra substância passível de diluição em contato com a água?
2 – Qual o objetivo principal de uma pessoa que sai de casa para ver um jogo de futebol?
3 – Dentro de um estádio o mais importante é _______________.

4 – Coloque “F” para Falso e “V” para Verdadeiro
(  ) Vou ao estádio para comer coisas gostosas no espaço gourmet
(  ) Vou ao estádio para cantar forte e alto em apoio ao meu clube de coração
(  ) Vou ao estádio porque meu dia fica mais feliz quando me junto com a massa
(  ) Vou ao estádio porque quero tirar selfies e mostrar como gosto de futebol
(  ) É obrigatório permanecer sentado durante uma partida de futebol
(  ) Tão bonito quanto um golaço é a festa da torcida com bandeirões, mastros, sinalizadores e instrumentos
(  ) Bonito mesmo é essa gente educada e diferenciada que agora pode frequentar as arenas
(  ) Se quero conforto fico em casa vendo o jogo pelo pay-per-view
(  ) Quando sai um gol devo comemorar de forma comedida e bater palmas, preferencialmente
(  ) Na arquibancada eu posso cantar, gritar, xingar, ficar de pé, sentado, me debulhar em alegria num gol do meu time e abraçar até pessoas que nunca vi na vida.

Criaram a cultura do consumidor de futebol e suas arenas superfaturadas e totalmente desconectadas da realidade de 90% dos brasileiros, agora que lidem com este tipo de espectador. Era a brecha que o sistema queria e era o milho que nós, daqui, esperávamos o boy dar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. Chuva na arena: era a brecha que o cliente queria. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 10, 2018.
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