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Como o Jornal dos Sports cobriu o primeiro título de um sul-americano na Copa Intercontinental?

Tratamento do campeonato do Peñarol, em 1961, oscila entre campeão mundial e “a chamada ‘Copa do Mundo de Clubes’”

Trabalhamos, aqui, com a hipótese de que a Copa Intercontinental[1], batizada no Brasil, pela imprensa, de Mundial de Clubes, começou a tornar-se o principal sonho de consumo de torcedores e clubes nacionais a partir do bicampeonato do São Paulo, em 1991-92 (SOUTO, 2023). A partir daí, inicia-se um processo de mudança na hierarquia do futebol brasileiro, que, até então, tinha no topo da pirâmide os campeonatos estaduais, seguidos do certame nacional e, enfim, dos torneios internacionais. Com isso, o foco da cobertura vai, também, deslocar-se, abrindo espaço mais generoso ao chamado “Mundial de Clubes”, inclusive em finais que não envolvem times brasileiros.

Mas, como era a cobertura da imprensa nacional nos primórdios do torneio, que, até o início dos anos 1970, competia em atenção com outras competições que também produziam seus “campeões mundiais”, sem que qualquer um deles fosse reconhecido pela Fifa? Para ilustrar o tipo de acompanhamento que o jornalismo esportivo dedicava à competição, num período em que nenhum clube brasileiro ainda fora campeão[2], examinamos aqui como o Jornal dos Sports, o diário esportivo brasileiro mais vendido no Brasil nos anos 1960, acompanhou a primeira conquista do Mundial de Clubes por um time sul-americano, o Peñarol, do Uruguai, em 1961.

Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla sobre como a imprensa brasileira lidava com os diferentes torneios, cujos organizadores proclamavam seus vencedores “campeões mundiais”. Por isso, talvez seja importante ressaltar que o JS, além de ser um diário integralmente esportivo nesse período, tinha até um espaço denominado “Excursões dos clubes brasileiros (A. do Sul e Europa)”. Tal observação indica que, para sabermos se tal forma de cobertura era uma singularidade desse jornal ou um padrão da cobertura da imprensa da época, teremos de estender a pesquisa a outros jornais, incluindo generalistas, que tratavam de outros temas além de esportes. Apesar da ressalva, consideramos que revisitar a forma como aquele jornal acompanhou as finais daquele ano pode nos ajudar a compreender aspectos relevantes do processo de apropriação do jornalismo esportivo e dos torcedores de tal torneio, bem como sinalizar algumas contradições, inclusive nas nomeações e no tratamento hierárquico.

Por vencer a Copa dos Campeões da América[3] de 1961, o clube uruguaio classificou-se para a final contra o campeão europeu daquele ano, o Benfica, de Portugal. O regulamento da época determinava que a decisão ocorresse em duas partidas, uma em cada país dos finalistas. Caso houvesse dois empates ou cada time ganhasse um jogo, independentemente do saldo de gols, haveria uma terceira partida, no país em que fosse disputada a segunda. Em 30 de agosto de 1961, o Jornal dos Sports anunciou em matéria no meio da sua primeira página: “Penarol[4] chegou a Lisboa e treina para enfrentar o Benfica”.

Em 3 de setembro, nova matéria, cuja distribuição na primeira página dá pistas interessantes sobre o lugar destinado ao torneio na hierarquia do futebol brasileiro, o que se refletia na diagramação daquele importante diário esportivo. Mais uma vez sem emplacar a manchete do dia, a matéria foi publicada embaixo da nota “Football Pelo Brasil”, com a relação dos jogos a serem disputados naquele dia no país; e do título “Placard internacional de hoje”, com os resultados de partidas em nove países europeus e na Argentina. Só então, vinha a chamada “Benfica E Penarol Decidirão Amanhã O Segundo Título Mundial”, que tratava, basicamente, da abertura da competição e das campanhas das duas equipes até chegarem à final.

‘Fifa não reconhece título’ x disputa pela ‘supremacia mundial’

No dia seguinte, mais uma vez, a manchete é sobre uma competição estadual: “América, Bangu E S. Cristóvão, na corda bamba”, numa referência à campanha das três equipes no Campeonato Carioca. Abaixo dela um título com ressalva significativa: “Penarol E Benfica Hoje Em Lisboa: Fifa Não Reconhece Título”. A menção ao não reconhecimento oficial pela Fifa será a primeira de uma sequência de ambiguidades com que o jornal trata a importância do torneio. 

Na mesma edição, a competição merece, pela primeira vez, uma manchete de página, na seção “No Brasil e no Mundo”, que parece contradizer a ressalva da página inicial: “BENFICA E PENAROL INICIAM A DISPUTA PELA SUPREMACIA MUNDIAL”. Afinal, um torneio não reconhecido pela entidade maior do futebol internacional vale ou não a supremacia? A própria diagramação em que a notícia foi espremida parece alimentar tal contradição. Apesar de ser a principal matéria da página, teve direito apenas a três das cinco colunas do jornal e disputava lugar com o anúncio da venda de uma Vespa, na Cassio Muniz, com ilustração e espaço, pelo menos, cinco vezes maior do que a matéria.

No dia 5 de setembro, a manchete da primeira página não foi a vitória do Benfica, mas “Mais De Um Milhão Viram (sic.) O Turno Eliminatório”, que quantificava o público dessa fase do Campeonato Carioca. Ainda antes da matéria da final, havia o registro “Escolhidos Os Campos: América E Olaria, Na Gávea”, sobre os locais em que seriam realizadas as partidas da sequência do Carioca. Só então, vinha a chamada: “Um Gol de Coluna Liquidou o Penarol”. E uma mudança no tratamento dado ao torneio: “O Benfica iniciou a disputa da chamada “Copa do Mundo de Clubes” vencendo o Penarol, por 1 x 0, ontem à noite, no Estádio da Luz. (grifo nosso).” 

Além de questionar o caráter da competição, o jornal destinou apenas oito linhas à chamada para matéria interna, ilustrada pela foto do autor do gol, acompanhada mais uma vez da informação entre aspas “Copa do Mundo de Clubes”[5]. Na página interna, a manchete: “Gol De Coluna E Vitória Do Benfica: 1 x 0”. Aí sim, com uma matéria sobre o jogo, que incluía a súmula da partida. Nos dias seguintes, o resultado foi repercutido, mas em notas ou matérias bem mais modestas.

Dois dias após a primeira partida, em 7 de setembro, o confronto ganha destaque um pouco maior, baseado na repercussão na imprensa portuguesa, com a citação de comentários de jornais lusos sobre a vitória do Benfica e projeções para a segunda partida em Montevidéu. Alinhada à esquerda da parte final da matéria, uma nota sobre uma efeméride da vida social dos clubes cariocas: “Carlos Pimenta – O Aniversário Do Antigo Dirigente Do Vasco”. 

Não é possível dizer se a nota foi colocada propositalmente ao lado da matéria que envolvia o Benfica pelos laços entre o time e a numerosa colônia lusitana no Rio de Janeiro que, em grande parte, torcia pelo Vasco da Gama. No entanto, pode-se especular que o espaço dedicado à cobertura daquele ano possa ter sido influenciado, em alguma medida, pela presença de uma equipe de Portugal entre os finalistas. Para confirmar-se tal hipótese, é necessário ver o desenvolvimento da pesquisa em anos em que a final não envolva equipes brasileiras nem portuguesas. Na mesma edição, sob o título “Benfica: Do Zero Ao Infinito – Batalha Contra O Penarol É Salto No Abismo”, coluna assinada pelo então chefe de reportagem do diário, o jornalista Geraldo Romualdo da Silva, analisa o clube lusitano, da sua fundação a sua trajetória recente.

Apenas um dia antes da segunda partida, na edição de 16 de setembro, o jornal volta ao torneio. Em matéria na página quatro intitulada “Penarol Tem Oito Chances Sobre Dez De Vencer O Benfica”, o jornal reproduz o prognóstico de um jornalista francês, que despreza a chance de o time português ganhar a partida no Uruguai. Na página 8, um anúncio da Rádio Guanabara sobre as transmissões das partidas do Campeonato Carioca daquele dia inclui a informação de que Benfica x Penarol terá o locutor Oduvaldo Cozzi e comentários de Mário Viana (então, com um só “n”) e Vitorino Vieira. Pode ser um indício de que a final despertava interesses dos ouvintes e/ou, mais uma vez, o foco podem ser os torcedores da forte colônia lusitana no Rio.

No dia seguinte, porém, a chamada para o jogo, diagramada dentro de um quadro, com o título, “Peñarol x Benfica”, era apenas a sétima matéria do alto para baixo da página. Na página 4, a Rádio Guanabara repete o anúncio da véspera, agora, apenas daquela partida. Na página 7, a manchete era: “Botafogo Foi Recebido por Jango E Enfrenta Hoje o Guará: Brasília”. E a terceira matéria em importância: “Se Penarol Vencer, Terceiro Jogo Será Na Próxima 3ª Feira”. Na página 8, enfim a manchete: “Benfica Joga Hoje Seus Dois Por Cento De Chance Contra Dez do Penarol”, seguida de ilustrações com “bonecos” dos jogadores dos dois times, acompanhados de breve apresentação de cada um. 

Apesar de, na véspera da partida, merecer transmissão por rádio carioca e matérias em duas páginas, no dia seguinte, na edição de 18 de setembro, a matéria “Penarol Goleou O Benfica : 5 x 0” era apenas a sexta da primeira página. Numa página interna, o título repetia a informação em matéria de pouco destaque. Já no dia 19 de setembro, na primeira página, “Penarol x Benfica: Match Decisivo” chamava para continuação na página 4, em que o jornal titulava: “Penarol E Benfica Decidem Hoje O Título Mundial”. Ou seja, apenas duas semanas após colocar em dúvida o caráter da conquista, o Jornal dos Sports volta a nomear a conquista como mundial.

Simca e título mundial

Na quarta-feira, 20 de setembro, o título volta a reafirmar essa opção: “Peñarol é o novo campeão mundial”, sobre a vitória por 2 x 1 do time uruguaio. A chamada é encabeçada, no entanto, por foto com os jogadores uruguaios perfilados antes da partida e por uma legenda que reforça a contradição que marca a forma de nomear a competição: “Em partida tumultuada, que terminou com inopinada agressão do jogador José Augusto ao juiz da partida, e do técnico Scarene, do Peñarol, a um dirigente do Benfica, o campeão uruguaio levou a melhor, tirando da Europa o privilégio de ser a detentora da Copa dos Clubes Campeões (grifos nossos).” 

Registre-se que nem na edição que trata da conquista do título, o jogo conseguiu emplacar a manchete do Jornal dos Sports, mesmo sem que tenha havido partidas do Campeonato Carioca na véspera. A principal notícia da página é: “Clubes Vão Pedir A Deputados Majoração De Ingressos”. Ela é seguida pela informação de que Pelé fora suspenso por dois jogos; por noticiário de que o embaixador brasileiro na Nova República de Gana estava incumbido de conseguir bolsas para todos os jogadores brasileiros que desejassem ajudar Gana e Nigéria a “melhorar o nível do seu futebol”.

Além disso, uma curiosidade: alinhada à esquerda da notícia sobre o título, a matéria “UBIRAJARA: ‘O SIMCA SERÁ MEU”, era uma referência ao concurso Ídolo dos Ídolos, instituído pelo JS e pela Simca para o jogador mais votado pelos leitores. A chamada trata do desejo do então goleiro do Bangu de ser o escolhido e da promessa do seu clube de “quebrar lanças para dar ao valente guarda-valas alvirrubro o presente símbolo instituído pelo JORNAL DOS SPORTS e Simcar S.A.”. Acima do título, o sorridente Ubirajara sentado no capô do carro do concurso chama mais atenção do que a foto dos campeões. Por enfim, na página seis, a manchete da página: “Penarol É Campeão do Mundo: Dois A Um” – ilustrada por foto em que se vê a faixa “Bienvenido BENFICA” ao lado dos jogadores que saúdam a torcida. Nos dias seguintes, o jornal não repercute a conquista do time uruguaio.

Temos, assim, uma relação complexa, em que o periódico de esportes mais vendido no Brasil noticia todas as três partidas da final da Copa Intercontinental, mesmo sem a presença de um clube brasileiro, proclama o vencedor como campeão mundial, mas, na mesma edição, nomeia o torneio como “Copa dos Clubes Campeões”. O mesmo jornal, que já alertara que a Fifa não reconhecia a competição e se refere a ela como “a chamada ‘Copa do Mundo de Clubes’”, colocando tal condição entre aspas, um conhecido recurso do jornalismo usado tanto para ironia, como para avisar tratar-se de declaração literal, não deixa de apontar o vencedor como “o novo campeão mundial”. Para uma melhor compreensão de como o processo da relação do jornalismo esportivo foi se desenvolvendo e sendo modificado, é necessário aprofundarmos a pesquisa para incluirmos outras edições do torneio, com ou sem brasileiros nas finais, e estendê-la a outros periódicos, incluindo as seções de esporte dos jornais generalistas. 


[1] Torneio disputado

[2] Em 1962, no terceiro ano do torneio, o Santos foi o primeiro time brasileiro a ser campeão, ao vencer o Benfica, de Portugal, em duas partidas:  3 x 2, no Brasil, e 5 x 2, em Lisboa.

[3] Primeiro nome recebido pelo torneio, organizado pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), que, inicialmente, era disputado apenas pelos campeões nacionais da América do Sul. A partir de 1965, é rebatizado Libertadores da América, numa homenagem aos líderes políticos, como Simón Bolívar e José de San Martin, que libertaram países da região do domínio europeu.

[4] Ao longo da cobertura, por diversas vezes, o jornal grafa o nome do time uruguaio sem o til em cima do “n”. Em outros, respeita a grafia original Peñarol. Reproduzimos a forma utilizada em cada matéria, entendendo que tal duplicidade também pode dar uma pista da menor familiaridade do jornalismo local com nomes de clubes de países vizinhos, num período de intercâmbio futebolístico bem mais reduzido do que se estabeleceria a partir dos anos 1990.

[5] Em linguagem jornalísticas, aspas são usadas por dois motivos: para mostrar que uma declaração é literal ou para indicar ironia.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

 
 
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Sérgio Montero Souto

Mestre e Doutor em Comunicação pela UFF; professor da Faculdade de Comunicação da Uerj; autor de Os três tempos do jogo - Anonimato, fama e ostracismo no futebol brasileiro (Graphia)

Como citar

SOUTO, Sérgio Montero. Como o Jornal dos Sports cobriu o primeiro título de um sul-americano na Copa Intercontinental?. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 16, 2023.
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