166.6

Comunidades da várzea, os campos e a autogestão

Nesta seção arquibancada, trago uma pequena, mas importante discussão presente em minha tese de doutorado[1]. A pesquisa se propôs a fazer uma análise do futebol comunitário como uma possiblidade de lazer em uma favela[2] de Belo Horizonte, o Morro do Papagaio (Aglomerado Santa Lúcia). Entendi ser conveniente publicar um fragmento desse trabalho para a coluna Arquibancada, uma vez que a realidade observada, pode ser semelhante a de muitas outras comunidades e clubes de várzea do país. Ou mesmo, não sendo uma realidade semelhante, entendo que também pode provocar reflexões das mais diversas acerca do futebol varzeano, das periferias urbanas e do lazer. Assim, para o presente artigo, aponto a importância da organização dos próprios moradores de comunidades em relação aos campos de várzea e aos clubes comunitários.

A pesquisa ocorreu no parque Municipal Jornalista Eduardo Couri. Parque localizado muito próximo ao Aglomerado Santa Lúcia e que tem hoje dois campos de futebol que são largamente utilizados pela população da favela e de outras comunidades de Belo Horizonte, principalmente aos finais de semana. Porém antes da construção e inauguração desse equipamento público de lazer, a comunidade do Morro do Papagaio já utilizava o terreno para as mais diversas atividades de lazer dentre elas o futebol. Cerca de 4 campos já haviam sido construídos pelos moradores e um deles ainda existe no parque que é o “campo velho”. O “campo novo” foi construído juntamente com o parque (no ano de 1996). Com essa breve contextualização, explicito que pretendo aqui trazer um pouco da realidade observada na pesquisa de campo, em relação à Associação Esportiva da Barragem Santa Lúcia, criada e mantida pelo próprios moradores da comunidade que tem por objetivo manter os campos (no sentido de organização de horários e infraestrutura, mas também enquanto manutenção da existência do espaço físico como local de lazer). Comecemos por este papel da associação.   

Parque Jornalista Eduardo Couri
Parque Jornalista Eduardo Couri. Fonte: divulgação/PortalBH

Não permitir que o campo velho “morresse” foi o principal fator motivador para a criação da Associação devido as diversas e constantes ameaças que a comunidade sofria de perder o campo, de forma especial para a prefeitura que cobiçava o amplo espaço. Diante desse cenário, no ano de 1980, alguns moradores se organizaram e criaram a Associação Esportiva da Barragem Santa Lúcia. Nessa época ainda não havia o campo novo, mas a organização dessa ação comunitária foi importante para que o campo velho seguisse existindo e sendo utilizado pelos moradores do Morro do Papagaio. Como dito, com a criação do Parque criou-se também o campo novo, e muito em razão da luta dos moradores, por meio da associação, esses espaços de lazer se consolidaram na cidade, e as ameaças de ocupação por outros empreendimentos e construções públicas passaram a ser remotas.

Porém a existência da Associação não deixou de ser importante, uma vez que há a demanda de gerência do local. Esse papel é assumido pelos moradores, em que pese os campos estarem dentro de um equipamento público do poder municipal. Neste viés, a gerência dos vestiários dos campos, da cantina e dos bares, da própria sede da Associação Esportiva, e claro, dos campos (marcações, redes, alambrados, iluminação e organização de horários para uso) é feita pela associação dos moradores do Morro do Papagaio. Essa organização se dá largamente no âmbito da utilização do espaço (horários do campo) e no âmbito da manutenção e pequenos reparos do equipamento (condições de uso pela população).

Uma característica peculiar neste locus de pesquisa é que os campos da barragem Santa Lúcia não são de responsabilidade (“pertencem”) de um único clube amador, como ocorre na maior parte dos campos de várzea, segundo aponta Ribeiro (2021), e sim de toda a comunidade, por meio da Associação Esportiva. Entendo que esse fato é relevante e pode explicar o sentimento de pertencimento que existe entre os moradores do Morro e os campos e toda a parte do Parque que abriga o universo do futebol amador. Esse sentimento de pertencimento faz com que a participação das pessoas do Morro do Papagaio seja intensa. Muitas que não fazem parte formalmente da Associação Esportiva se colocam à disposição para ajudar nas tarefas cotidianas demandadas pelos campos. Um exemplo disso são os eventos que ali são organizados. Em alguns, observei que familiares de jogadores da comunidade se oferecem para preparar e distribuir a comida, quando é feita e oferecida gratuitamente pela Associação.

Atualmente, há uma outra decisão, outro desafio, que a Associação Esportiva precisará enfrentar e que não poderia deixar de trazer para este texto, que é o crescente movimento de instalação do gramado sintético nos campos comunitários das grandes cidades. Essa tendência objetiva que os campos sejam cobertos com a grama artificial. Existem grandes debates com o “pessoal da várzea” para avaliar os prós e os contras dessa mudança. A Associação Esportiva já foi contatada pela Prefeitura de Belo Horizonte para a sondagem de um possível interesse na instalação do gramado sintético no “campo novo”. As conversas que pude ter com os moradores do Morro do Papagaio que estão mais envolvidos com o futebol comunitário indicaram que a ideia parece ter sido rechaçada em um primeiro momento. Há um receio que os horários fiquem escassos para o uso da própria comunidade, uma vez que este projeto (Várzea Viva, em BH) é feita por meio de parceria com empresas privadas que acabam tendo o controle da maior parte dos horários de uso das campos (que são alugados aos interessados) Além da questão dos horários, a outra preocupação apontada é a manutenção do gramado, que tem um custo de manutenção e um dispêndio ainda maior quando for necessário realizar a troca do piso.

Segundo Santos (2019), esse é o principal motivo que faz com que jogadores e outros atores da várzea na cidade de São Paulo se coloquem contra essa modificação. Mas há uma nítida disputa sobre esse quesito: “Tem muita gente do pessoal de várzea que prefere mais a grama sintética do que o terrão. Se chover, você consegue jogar, por exemplo. O terrão vira um barro e fica mais complicado de se jogar. No meu caso, sou suspeito para falar. Prefiro mais a terra do que a grama sintética, porque com o tempo o society vai ficando ruim, sem manutenção”. (SANTOS, 2019. Entrevista ao portal Terra).

Campo do Inconfidência
Campo do Inconfidência, 2016. Foto: Ricardo Laf

Em Belo Horizonte, o principal exemplo, que está servindo de incentivo para outros clubes e comunidades se interessarem pelo Várzea Viva, é o Campo do Inconfidência, no Bairro Concórdia. Após a reforma, o campo passou a ser designado como Arena Inconfidência Supermercado BH, empresa que ganhou a licitação para fazer a renovação e explorar o campo com horários e publicidade. Vejo com receio essa política, pois, concordando com Marcellino et al. (2006), entendo que:

“Democratizar o lazer implica democratizar o espaço. Muito embora as pesquisas realizadas na área das atividades desenvolvidas no tempo disponível enfatizem a atração exercida pelo tipo de equipamento construído, deve-se considerar que para a efetivação das características do lazer é necessário, antes de tudo, que ao tempo disponível corresponda um espaço disponível”. (MARCELLINO et al., 2006, p. 57).

Assim, avalio que a parceria buscada pela PBH[3] não favorece a democratização do acesso ao espaço e o torna ainda menos disponível, uma vez que o ingresso ao equipamento fica atrelado à questão financeira. Um espaço público ou equipamento de lazer menos democrático e menos disponível pode sofrer com falta de frequência de usuários, pois se tornaria menos acessível, principalmente em razão da falta de recursos monetários de uma parcela de pessoas do universo do futebol comunitário. Segundo Rechia e Betrán (2010), com um possível afastamento desses equipamentos, podemos: multiplicar os efeitos negativos da segregação social, permitindo inferir-se que a redução, a segregação ou a elitização dos espaços públicos é uma realidade do urbanismo atual. Esse fato conduz, muitas vezes, a uma vontade de proteger-se e de distinguir-se, vivendo em espaços privados em função da insegurança para apropriar-se de espaços abertos como ruas, parques e praças, podendo inibir, dessa forma, a experiência e o uso de espaços coletivos. (RECHIA; BETRÁN, 2010, p. 183).

Por um lado, a manutenção do “terrão” como piso dos campos do Parque Jornalista Eduardo Couri faz com que a Federação Mineira de Futebol e a prefeitura os busquem cada vez menos para a realização de partidas e campeonatos de sua responsabilidade e organização. A preferência vem sendo dada aos campos que já adotaram o gramado sintético ou possuem grama natural. Isso pode significar, a longo prazo, uma redução no protagonismo e na relevância dos campos da Barragem no cenário do futebol amador de Belo Horizonte. Contudo, a resistência em aderir ao modelo por parte dos atuais membros da Associação Esportiva acarreta maior autonomia e disponibilidade de horários para uso da própria Associação e da comunidade do Morro do Papagaio. Caberá, portanto, aos festivais e torneios organizados pelos moradores e pela Associação manter o interesse no uso dos campos e na participação de times amadores de dentro e de fora da comunidade.

Ainda analisando essa resistência, em certa medida ela é uma objeção à mercantilização do espaço público. Quando a instalação do gramado é feita, a empresa parceira detém o controle da maior parte dos horários e pode alugar o campo. Em geral, os arrendadores dividem o campo em três ou quatro quadras e as alugam separadamente aos interessados. Nos horários que “sobram” para o uso da comunidade, os clubes locais (ou associação de moradores) também podem fazer a locação do espaço, garantindo assim, um pouco de recurso financeiro. O problema, porém, se apresenta nesse momento: com poucos horários disponibilizados, a comunidade priorizará o uso por ela própria ou buscará recursos financeiros para a locação? Caso essa situação ocorresse nos campos da Barragem, seria complexo encontrar uma alternativa que agradasse a todos, pois existem muitos times na comunidade e por isso é alta a demanda por horários nos campos.

Pelo que foi observado durante a pesquisa, entendo que a Associação Esportiva da Barragem Santa Lúcia tem um relevante papel para que os campos do Parque Jornalista Eduardo Couri continuem sendo referência tanto para a comunidade quanto para os atores sociais envolvidos com o futebol amador em Belo Horizonte. As dificuldades que foram a mim relatadas demonstram que, caso a Associação deixasse de atuar, seria necessário que outra forma de participação comunitária assumisse os cuidados com o local, uma vez que a prefeitura tem adotado um modelo de extremos: ou com pouca mediação por parte do poder público (com toda a responsabilidade ficando a cargo dos moradores), ou com entrega dos espaços à inciativa privada, reduzindo ou mesmo impossibilitando o acesso daqueles que não tem condições financeiras para investir no próprio lazer.

Notas

[1] ABRANTES, Felipe Vinícius de Paula. A bola no “pé do morro”: O futebol como campo de possibilidades de lazer no Morro do Papagaio em Belo Horizonte – MG. Tese (Doutorado em Estudos do Lazer) – Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021. 202p.

[2] Optei por utilizar o termo “favela” uma vez que a palavra é utilizada pelos próprios moradores do Morro do Papagaio, além de existir um movimento social (Associação Nacional de Favelas – ANF) que busca privilegiar o uso da palavra favela. Há nesse ato um viés político, uma tentativa de retirar desse substantivo uma possível conotação negativa. Para mais informações acerca desse debate, a ANF fez uma publicação sobre o tema disponível em: www.anf.org.br/favelas-ou-comunidades/

[3] Prefeitura de Belo Horizonte.

Referências

ABRANTES, Felipe Vinícius de Paula. A bola no “pé do morro”: O futebol como campo de possibilidades de lazer no Morro do Papagaio em Belo Horizonte – MG. Tese (Doutorado em Estudos do Lazer) – Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG, 2021. 202p.

MARCELLINO, Nelson Carvalho; BARBOSA, Felipe Soligo; MARIANO, Stéphanie Helena. As cidades e o acesso aos espaços e equipamentos de lazer. Revista Impulso, Piracicaba – SP. n. 17 v.44. 55-66p. 2006.

RECHIA, Simone; BETRÁN, Javier Olivera. Parques urbanos de Barcelona: relação entre usos principais e combinados, a diversidade nas formas de apropriação e a segurança. Revista Movimento. Porto Alegre, v. 16, n. 03, p. 181- 202, julho/setembro de 2010.

RIBEIRO, Raphael Rajão. A várzea e a metrópole: Futebol amador, transformação urbana e política local em Belo Horizonte (1947-1989). Tese (doutorado). Fundação Getúlio Vargas. Escola de Ciências Sociais. Programa de Pós-graduação em História, política e bens culturais. Rio de Janeiro – RJ. 2021. 484p.

SANTOS, Jefferson Sabino dos. Do terrão ao society: campos de várzea em São Paulo sofrem transformação (entrevista). Portal Terra. Guilherme Amaro. Portal Terra/ Esportes; Futebol. dez. 2019. Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/futebol/do-terrao-ao-society-campos-de-varzeaem-sao-paulo-sofrem-transformacao,6a0ef530df53b67ee31c2bde2f766486751otk0d.html

 

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Felipe Abrantes

Graduado em Educação Física, modalidade licenciatura, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre e doutor em Estudos do Lazer no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer - PPGIEL/EEFFTO/UFMG. Atua e tem interesse na área dos estudos do futebol e do torcer, do lazer e da Educação Física escolar. Atualmente é professor do ensino básico na Prefeitura de Santa Luzia - MG.

Como citar

ABRANTES, Felipe Vinícius de Paula. Comunidades da várzea, os campos e a autogestão. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 6, 2023.
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