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Conflito de horários: o impacto dos jogos do Maracanã na acessibilidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Paula Barreiro Moutinho dos Santos 17 de janeiro de 2024
UERJ
Fonte: reprodução

O maior campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e o Estádio Jornalista Mário Filho (popularmente conhecido como Maracanã) convivem há mais de 70 anos, desde 1950, quando os dois foram respectivamente inaugurados. Existe uma ligação quase que inerente entre a universidade e o estádio, pois os dois são fortes referências no estado do Rio de Janeiro (a UERJ em educação, e o Maracanã como palco esportivo) e nunca existiram sem a presença um do outro. Essa ligação é notada principalmente por causa da proximidade geográfica, pois eles se localizam a aproximadamente 500 metros de distância, e tanto quem frequenta a universidade quanto quem frequenta o estádio tem como opções de transportes públicos o MetrôRio (metrô), a SuperVia (trem) e diversas linhas de ônibus que circulam nos arredores, além de utilizar as mesmas vias para acessar os dois espaços. Entretanto, talvez essa convivência não seja tão harmoniosa quanto deveria.

O estádio teve em média mais de 46 mil torcedores presentes por jogo em 2022, e o responsável por sua gestão atualmente é o Consórcio Maracanã, formado pela dupla Flamengo e Fluminense, cujas equipes não possuem estádios próprios que atendam às demandas dos torcedores, e assim realizam partidas no Maracanã quase todas as semanas. Por sua vez, a UERJ tem mais de 30 mil alunos matriculados, e uma oferta de 44 cursos de graduação no período noturno no Campus Maracanã, portanto é plausível imaginar que os alunos frequentemente tenham dificuldades em acessar a universidade devido aos transtornos causados pela presença de um evento de grande porte bem ao lado, como trânsito, interdição de vias, superlotação dos transportes públicos, além do receio relacionado a violência nos entornos do Maracanã em dias de clássico ou jogos decisivos.

Durante o ano de 2023, o Maracanã sediou 30 jogos em dias úteis em meio aos períodos letivos da UERJ. Destes 30 jogos, em 28 o mando de campo pertencia ao Fluminense ou ao Flamengo, 14 ocorreram às quartas-feiras, 8 às quintas, 7 às terças e 1 em uma segunda-feira. Dez dessas partidas foram pela disputa da Copa Libertadores da América, a maior disputa continental da América Latina, um deles sendo inclusive a semifinal da competição, em uma quarta-feira. Nove desses jogos pertenciam ao Campeonato Brasileiro, seis à Copa do Brasil (com a semifinal também sendo disputada em uma quarta-feira), quatro ao Campeonato Estadual do Rio de Janeiro, e um às Eliminatórias da Copa do Mundo. No mês de novembro, especificamente, houve três jogos em dias consecutivos, 21 (Brasil x Argentina), 22 (Fluminense x São Paulo) e 23 (Flamengo x Bragantino), prejudicando três dias de aula seguidos, e na semana seguinte houve jogo no dia 29 (Flamengo x Atlético Mineiro), prejudicando o andamento do período eleitoral da universidade, que estava passando pelo segundo turno da disputa pela reitoria do próximo triênio.

Perante a frequência com a qual os jogos ocorrem em dias letivos, supõe-se que a UERJ teria medidas institucionais para atender as demandas dos alunos nesses períodos, mas a realidade é que a universidade se isenta dessa responsabilidade e atribui essas decisões aos institutos de cada curso, fornecendo a eles autonomia para decidir se irão ou não se posicionar. Por um lado, a Faculdade de Educação (EDU/UERJ) rotineiramente cancela as aulas em dias de jogo, por outro, o Instituto de Ciências Sociais (ICS) se ausenta de uma atitude, e designa essa responsabilidade aos departamentos de Antropologia, Ciência Política e Sociologia, que por sua vez se ausentam também e atribuem essas decisões aos professores de cada disciplina. Os professores, constantemente prejudicados por essa dinâmica, são forçados a escolher entre manter as aulas, cancelar as aulas ou ministrar as aulas remotamente. Manter as aulas é considerado um risco à integridade física, tanto dos professores, quanto dos alunos. Cancelar as aulas todo dia de jogo prejudicaria o cronograma acadêmico, comprometendo o aprendizado dos alunos em disciplinas que constantemente coincidem com dias de jogo (como as que são ofertadas às quartas-feiras). 

Embora a aula remota pareça a melhor alternativa para contornar esses problemas, não é apropriado que os alunos tenham quase metade das aulas sendo ministradas de maneira online em cursos que não são ofertados como híbridos e sim, presenciais. Também é necessário considerar que uma grande parte da comunidade acadêmica possui baixa renda e pode não dispor de condições propícias para o ensino remoto, situação essa que pôde ser contornada durante o período pandêmico, quando a universidade adotou uma medida emergencial e ofereceu tablets e chips com acesso à internet para que esses alunos pudessem se adaptar ao ensino a distância (medida esta que não é mais válida desde a volta das aulas presenciais). Todo esse contexto ainda desfavorece os alunos do período noturno perante os alunos do período diurno, pois esses não têm suas aulas canceladas, conteúdo atrasado, aulas ministradas remotamente, e não são submetidos às mesmas condições de acesso à universidade que os alunos do período noturno em dias de jogo no Maracanã.

Além disso, as vagas no estacionamento da UERJ que deveriam ser destinadas a servidores e alunos e já não abrangem toda a comunidade acadêmica, são oferecidas para aqueles que vão ao estádio nos dias de jogo, pelo valor de R$50 reais, valor este que só pode ser pago em dinheiro, não é registrado em nenhum portal de transparência e não é destinado para melhorias no campus. Em uma breve pesquisa na internet, diversos sites indicam o estacionamento da universidade como a melhor opção para quem vai de carro assistir as partidas.

Considerando esse contexto, foi feita uma pesquisa com os alunos do período noturno em junho de 2023, durante a disciplina de Fundamentos Quantitativos das Ciências Sociais, com o objetivo de descrever as dificuldades enfrentadas pela comunidade acadêmica em dias de jogo no Maracanã. O formulário foi aplicado através do Google Forms, com sua divulgação feita nas redes sociais e em salas da universidade, e teve no total 203 participantes.

Mais da metade dos alunos que responderam moram na Zona Norte (57%), onde a universidade fica localizada. 49,3% dos alunos acessam a UERJ através de ônibus, seguido de 16,3% que chegam de trem e 12,8% que chegam de metrô. Apenas uma pequena parcela dos alunos acessa a universidade através de transporte particular, carro, moto, bicicleta ou a pé.

Dos 203 alunos que responderam a pesquisa, 177 relataram já ter faltado aula em dia de jogo, o que corresponde a 87% dos entrevistados. 84% dizem se sentir prejudicados em dias de jogo.

Após a coleta dos dados, uma comparação significativa e talvez a mais importante da pesquisa foi a do tempo de deslocamento que os alunos levavam em dias normais e o tempo de deslocamento em dias de jogo.

Ao analisar os gráficos se torna evidente a disparidade de tempo de deslocamento em dias regulares e em dias de jogo no Maracanã. O número de pessoas que normalmente demora até 40 minutos diminui em mais de 50%, enquanto a quantidade de alunos que levam mais de 2h20 aumenta em mais de 400%. Esses números denunciam o aumento significativo do tempo de deslocamento dos alunos em dias de jogo, condizente com os 85 alunos que relataram por diversas vezes não terem conseguido acessar a universidade a tempo de conseguir acompanhar as aulas.

Entre as opções disponíveis no formulário, as dificuldades relatadas com maior reincidência foram o trânsito devido a interdição de vias nas imediações da UERJ (77,8%), a superlotação de transportes públicos (76,8%), e os tumultos nos arredores da universidade (68%), como na rampa que liga a faculdade e o estádio à estação de trem e metrô. Também houveram relatos de alunos que tiveram dificuldade em estacionar o carro no estacionamento da UERJ (8,9%), alunos que sofreram com a alteração das rotas dos ônibus, e um número significativo de relatos de violência.

Ao serem questionados sobre segurança, 72% dos alunos responderam se sentir menos seguros ao andar nos arredores da universidade em dias de jogo no Maracanã. 138 alunos relataram já ter passado por tumultos nas imediações da UERJ em dias de jogo, 37 disseram já ter sido roubados ou furtados, 73 denunciaram já ter sofrido com assédio, agressão ou discriminação por parte de torcedores, e 27 relataram ter sofrido com assédio, agressão ou discriminação por parte de agentes da segurança pública que atuavam em função das partidas.

A dificuldade de acesso à universidade em dias de jogo no Maracanã é atualmente um dos maiores obstáculos que os alunos e servidores da UERJ enfrentam, mesmo que o estádio e a universidade tenham convivido harmoniosamente por décadas. Considerando os últimos 14 anos, há alguns fatores que influenciam na manifestação dessa demanda. Entre 2010 e 2014, o Maracanã estava fechado para reforma a fim de atender aos padrões exigidos para sediar a Copa do Mundo de 2014. Nos anos posteriores, a UERJ enfrentou uma série de greves e paralisações devido a questões financeiras, como atrasos salariais e falta de investimento na universidade. Entre 2020 e 2021, não houveram aulas presenciais devido a pandemia do coronavírus. Portanto, durante todos esses anos, por mais que já fosse uma questão, era pouco percebida a influência desses jogos na acessibilidade da UERJ, pois em alguns momentos não havia jogos, e em outros não havia aulas.

No ano de 2023, a universidade passou por um período de estabilidade, e também já estava com o ensino presencial restabelecido. E para o Estádio do Maracanã foi um ano atípico, pois tanto Flamengo quanto Fluminense estavam competindo para além do Campeonato Brasileiro, chegando respectivamente às finais da Copa do Brasil e da Copa Libertadores, fazendo com que a quantidade de jogos fosse excedente ao comum (foram 74 partidas oficiais registradas no ano de 2023, enquanto no ano de 2022 houveram 59). A ascensão de ambos os clubes fez com que a demanda pela utilização do estádio aumentasse, aumentando consequentemente a quantidade de jogos em dias letivos e prejudicando o andamento do cronograma acadêmico previsto para o ano de 2023.

São diversos os problemas que rodeiam a UERJ em dias de jogo no Maracanã, e portanto não há uma solução simples ou apenas uma entidade para responsabilizar. Não há como interromper os jogos, pois o Maracanã e o futebol são importantes marcos socioculturais do Rio de Janeiro que movimentam a economia tanto do estado quanto dos comerciantes locais. Assim como não há como renunciar às aulas do período noturno e prejudicar gerações de alunos que já sofrem tanto com o constante sucateamento da educação pública. Além disso, as dificuldades ultrapassam os portões da universidade e do estádio, e se tornam também questões de mobilidade e segurança pública. Mas definitivamente é uma demanda que não pode mais “ficar de escanteio”. O objetivo dessa pesquisa foi reunir todas as informações possíveis e produzir algo que evidenciasse a complexidade da relação entre os jogos no Maracanã e as aulas do período noturno da UERJ, e assim trazer visibilidade à uma discussão que até então só existia informalmente dentro dos portões da universidade. 

Referências

Lima, Fernanda  Confira as opções e preços de estacionamento nos arredores do estádio do Maracanã. Guia dos Estádios. 06/2019. Disponível em: https://guiadosestadios.com/estacionamento-maracana/#:~:text=Sem%20o%20estacionamento%20Maracan%C3%A3%2C%20a,a%20800%20m%20do%20est%C3%A1dio. Acesso em 11/12/2023

Marques, Leticia. Maracanã fará recuperação do gramado e reabertura está prevista para Vasco x Flamengo em fevereiro. Globo Esporte. Rio de Janeiro. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2023/12/28/maracana-fara-recuperacao-do-gramado-e-reabertura-esta-prevista-para-vasco-x-flamengo-em-fevereiro.ghtml Acesso em 02/01/2024.

Público presente no Maracanã ultrapassa a marca de dois milhões em 2022. Site oficial do Estádio Maracanã. Publicado em 05/09/2022. Disponível em: https://estadiomaracana.com.br/imprensa/noticias/publico-presente-no-maracana-ultrapassa-a-marca-de-dois-milhoes-em-2022.  Acesso em: 24/04/2023.

Uerj amplia inclusão digital com oferta de tablets aos estudantes, além de chips e auxílio a cotistas. Site Oficial da UERJ. Publicado em 24/08/2020. Disponível em: https://www.uerj.br/noticia/uerj-amplia-inclusao-digital-com-oferta-de-tablets-aos-estudantes-alem-de-chips-e-auxilio-a-cotistas/ Acesso em 02/01/2024.

UERJ em números. Site oficial da UERJ. https://www.uerj.br/a-uerj/a-universidade/ Acesso em 24/04/2023.

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Como citar

SANTOS, Paula Barreiro Moutinho dos. Conflito de horários: o impacto dos jogos do Maracanã na acessibilidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 17, 2024.
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