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De Raposão a Lulu da Pomerânia: discursos homofóbicos do/no futebol

No dia 23 de março de 2023 o departamento de Marketing do Cruzeiro Esporte Clube anunciava a mudança visual do Raposão, o mascote oficial do clube. Segundo os idealizadores da nova versão, a ideia era exibir “um visual mais próximo das raposas e também abrir a possibilidade para ampliar ativações junto ao torcedor e às diversas marcas”. No entanto, não contavam com a incrível repercussão negativa, expressa em um duplo movimento: de revolta por parte dos cruzeirenses e de deboche por parte dos rivais atleticanos. Mas qual foi a verdadeira origem da avalanche de indignação/chacota que se revelou especialmente nas redes sociais logo após o anúncio? Qual fato causador de tamanho incômodo? Dentre tantos comentários captados, é inescapável a percepção de que quase a totalidade destes possuem alguma motivação homofóbica.

Ora, não nos surpreende tal constatação. O futebol brasileiro é a expressão viva de uma sociedade calcada nos ditames da heteronormatividade, que legitima e reforça comportamentos que rechaçam o escape dos códigos de masculinidade e virilidade tão densamente presentes neste esporte.

De acordo com Franzini (2005), “a virilidade virtuosa do esporte é frequentemente ressaltada pela sentença ‘futebol é coisa de macho’, bem como em tiradas jocosas reveladoras de vivo preconceito”. Assim, comumente percebemos que o lugar comum das ofensas entre adversários futebolísticos passa pelo questionamento da sexualidade masculina: bicha, viado, gay e boiola são expressões corriqueiras no vernáculo de insultos no universo futebolístico. A título de ilustração, os atleticanos se referem jocosamente aos cruzeirenses como “Maria” e os cruzeirenses elegeram “Gaylo” como adjetivação neologista para se dirigirem aos atleticanos. Ambos miram na frágil heterossexualidade masculina como forma de diminuir ou injuriar seu rival. 

Voltando ao caso do mascote cruzeirense, é importante fazermos a sua contextualização histórica. Os principais clubes mineiros têm os seus mascotes projetados pelo desenhista e jornalista belorizontino Fernando Pieruccetti, popularmente conhecido pelo seu pseudônimo de Mangabeira. Por sua vez, este usava como critério definidor para a determinação dos mascotes características ligadas aos seus torcedores e/ou dirigentes. No caso do Cruzeiro, a escolha pela Raposa se deu em razão da suposta esperteza dos dirigentes italianos do clube na realização dos negócios. Ou seja, em nenhum momento a sexualidade foi um parâmetro para a eleição da raposa (a não ser que admitamos que os homossexuais são mais espertos que os héteros). Da Raposa ao Raposão, o uso do mascote de Mangabeira se circunscrevia ao universo jornalístico (obviamente sendo apropriado por seus torcedores, que se instituíam de tal identidade). O nascedouro do Raposão (em 2003) já ocorre num claro cenário mercantilizado do futebol, que via na exploração do mascote mais que uma identidade torcedora, mas sobretudo uma possibilidade de lucro e retorno financeiro com a fixação de uma marca. Portanto, há uma ruptura de sentido quanto à finalidade de existência dos mascotes, que passam a assumir uma função de produto a ser consumido. 

Retornando à questão central do texto: porque tamanha comoção com a alteração visual do Raposão? Na verdade, porque tamanha comoção com esta alteração visual do Raposão (posto que outras mudanças já ocorreram anteriormente). Para tentarmos compreender tal situação, recorremos a alguns dos milhares de comentários postados nas redes sociais logo após o anúncio. Eis alguns:

 “Rapozete voltou”; “As unhas estão lindas”; “Raposa vaidosa”; “Que raposa bandida”; “Lulu da Pomerânia”; “Que fofinha”; “Não sei porque esse chilique todo das Marias, está a cara delas”; “Quem gostou da mudança foram as frangas, nós cruzeirenses não gostamos e reagimos à altura”; “Mascote de unha feita, que ridículo”; “Simboliza as Marias”; “Esse Ronaldo deve estar pensando que o gosto dos torcedores do Cruzeiro é igual o dele, que pegava travesti”; “Único mascote trans do Brasil só o Crucru tem”; “Ronaldo quer transformar o Raposão em mascote LGBT”.

Cruzeiro Raposão
Fonte: Cruzeiro/Divulgação

Um torcedor descreveu características de como o Raposão deve ser: “cabuloso, gigante, bolado, com raiva, com ódio no coração, sangue nos olhos…” Quem tem que ser assim?! Pensando em termos de representação social, a qual coletividade pertence um mascote com tais características? Como operam estas interações entre indivíduo e grupo, de que formas influenciam comportamentos – inclusive para além deste espaço de lazer? Ou ainda, como o discurso materializa a teoria das representações sociais? 

As mídias Instagram, Facebook e Twitter são difusoras de representações sociais possíveis, eletivas para ganharem adesão das torcidas. Nesse sentido, trata-se de um campo de disputa. A reação belicosa da torcida cruzeirense fez com que os trabalhos de reformulação visual do Raposão fossem interrompidos.

Sob a perspectiva de Moscovicci (2003), as representações sociais possuem caráter de produtor e de modificador de realidade social – simultaneamente. Note que não estamos falando do novo/antigo Raposão. Também não é sobre o trabalho da equipe de designers e marketing. Também não estamos falando da relação entre a diretoria e do sócio-torcedor. Tudo isso é pano de fundo para aquilo que realmente importa.

A naturalização da masculinidade doentia que escapa às suas farpas é o subtexto que emerge para a superfície aqui. Diluído nos comentários e reações dos torcedores e escancarado nas diversas insatisfações.

Nesse sentido, quais os elementos que compõem os desconfortos dos torcedores? Entende-se que muito do que é considerado como legítimo e aceitável está diluído nestes discursos que emergem das expectativas relacionadas às representações sociais. Eis que surge então a figura no macho: cabuloso, gigante e bolado! De acordo com o comentário deste torcedor, é assim que um bom representante da coletividade deve ser.

Diversos subtextos estão presentes nesta narrativa e representam o quanto o machismo compõe uma estrutura sofisticada e inquestionável de naturalizar comportamentos e práticas. Apontaremos três deles: 

Neste primeiro aspecto, enunciamos o problema que os torcedores assumem para si, ao abraçar a postura de sustentar este modelo de comportamento que é temido e odioso, no instante em que reivindicam com tanto fervor essa representação cabulosa e com ódio no coração

Segundo, a intensidade dos comentários revela a aversão com tudo o que se distancia deste imaginário de masculinidade. Não tem espaço em campo para aquilo que não performar virilidade e não provocar temor. O mais grave: figuras que representem este desajuste poderão ser rechaçadas, com a mesma intensidade.

Por fim, uma leitura possível consiste no fato de que o Raposão é um dispositivo de representação oficial do time: intocável, inquestionável e que precisa ser perpetuada, assim como a masculinidade cabulosa. Emerge então outro questionamento: Quais são os espaços destinados às torcidas dissidentes, uma vez que representam tudo aquilo que também foi rejeitado no Raposão?

Esta é uma reflexão necessária que emerge no desdobramento de nossas análises, a partir de algo aparentemente banal, como a mudança de visual de um mascote de um grande clube do futebol brasileiro. Daí, conclui-se que o mascote precisa reforçar a virilidade (e se opor a tudo que se distancia do universo masculinizante). Essa mesma masculinidade intocável ainda é um calo que aperta na cena esportiva, notadamente no futebol, seja de forma sorrateira ou escancarada. É ela quem conduz/mobiliza as manifestações dentro e fora de campo, utilizadas para ofender e reivindicar. 

O futebol é espaço de catarse coletiva (frase de lugar-comum entre os estudiosos deste fenômeno). Mas é urgente repensarmos se a catarse coletiva produzida pelo futebol não acaba reforçando e legitimando a naturalização perniciosa de preconceitos e discriminações, como os discursos homofóbicos. Não é mais possível escondermos a sujeira para debaixo do imenso tapete verde…

Referências

FRANCINI,  F.  Futebol  é  coisa  pra  macho. Revista  Brasileira  de  História,  São Paulo:  v.25,  n.50,  p.  315-328,  2005.

MOSCOVICI, S. O fenômeno das representações sociais. In: S. Moscovici (Ed.), Representações sociais: investigações em psicologia social (pp. 29-109). Petrópolis: Vozes, 2003.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Georgino Jorge Souza Neto

Mestre e Doutor em Lazer pela UFMG. Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas/GEFuT-UFMG. Membro do Laboratório de Estudo, Pesquisa e Extensão do Lazer/LUDENS-UNIMONTES. Membro do Observatório do Futebol e do Torcer/UNIMONTES. Torcedor do Galo...

Zeca Medrado

Viado, nortemineiro, das Ciências Sociais, interessado em pensar sobre as masculinidades no futebol, pesquisador das identidades dissidentes de sexo e gênero.

Como citar

SOUZA NETO, Georgino Jorge de; MEDRADO, Zeca. De Raposão a Lulu da Pomerânia: discursos homofóbicos do/no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 2, 2023.
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