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Disputa de poder nas cidades: onde foram parar os campos de futebol de várzea?

A urbanização do mundo trouxe modificações profundas em praticamente todas as fases da vida social. As transformações, que antes podiam ser acompanhadas durante um período de cinquenta anos, manifestam-se aos nossos olhos em alguns anos, talvez em alguns meses. Assim é possível destacar a influência dos grupos sociais na dinâmica dos movimentos urbanos. E tanto nas evoluções quanto nas particularidades desses movimentos urbanos no Brasil, há a necessidade de realizar uma percepção do recorte racial, assim, para uma análise mais condizente da organização social brasileira.

É necessário esclarecer que as regiões periféricas no Brasil, em boa medida criadas após a abolição da escravatura, também têm em sua maioria a população negra como moradores. O sistema escravocrata atingiu diversas áreas das relações sociais. Isso se estendeu em diversos aspectos sociais e também na própria urbanização (SOUZA, 2003).

O surgimento das favelas é uma alternativa de subsistência, face à total falta de programa de inclusão social às pessoas escravizadas pós abolição da escravatura. Assim as favelas, ao longo do século XX, se tornaram a resistência de permanência nos locais escolhidos para moradia, por vezes em razão da proximidade com a seu trabalho, desta forma, favela foi defendida como território que se funda numa relação de força. (VITALINO, 2012).

Cabe destacar que as áreas urbanizáveis são dominadas pela especulação imobiliária, e neste ambiente a população de baixa renda não é considerada. Fato que essa população se organiza para ter um espaço de moradia. Uma pesquisa publicada no livro “Um País Chamado Favela” (ÁTHAIDE e MEIRELES, 2014) revela que 72% dos moradores se declararam negros. Tal acontecimento se dá pela formação e origem das favelas – a suposta libertação das pessoas escravizadas e a falta de condições para que pudessem de fato ter uma vida livre e terras para moradia.

Comunidades informais, assim, crescem de forma silenciosa, gradual e orgânica, sendo difícil estabelecer o dia exato em que um conjunto de barracos realmente se torna uma comunidade. (LING, 2014). A favela enquanto um lar é relevante, uma vez que assim seus moradores a veem. O fato de ter de abandonar a comunidade e os barracos, por mais pobre que fossem, os inquieta, pois é ali, naquele espaço humilde, esquecido e que era desvalorizado até o momento, que se encontram seus laços afetivos, as relações sociais, as histórias de vida compartilhadas.

Por outro lado, ressalta-se que essa concepção contrasta com a da população hegemônica, moradores e especuladores imobiliários da área que circunda a favela, para os quais esta não passa de lugar insalubre e desorganizado, cujos moradores são entraves ao progresso e lucro. (LANGA, 2015).

Embora desprovidas de qualquer ajuda governamental e saneamento básico, a opção por residir nos centros urbanos era, para seus habitantes, uma questão de subsistência. Excluída das vagas de trabalho pelo fato de estar se importando mão-de-obra, a população negra procurava mercado de trabalho nos portos e residia nos lugares mais próximos de seus serviços. (LANGA, 2015). Nesse ambiente, em razão da possibilidade de desapropriação do poder público e da especulação imobiliária, diversas favelas foram removidas, o que também demonstra a organização social em sentido amplo de convivência entre as classes sociais no Brasil.

Campo de várzea em Guaianases, São Paulo
Campo de várzea em Guaianases, São Paulo. Foto: Enrico Spaggiari

Ressalta-se que nesse ambiente de disputa, exclusão e de naturalização da desigualdade social, em que há um sentimento de pertencimento na periferia, também há o crescimento do futebol em igual tempo a essa organização social pós escravagismo. O futebol e a favela têm seu surgimento em conjunto com a fim do escravagismo no Brasil, sendo o esporte uma forma de alento à marginalização que a população negra sofria nos grandes centros urbanos (MEIRELLES, 2014).

A prática do futebol amador ou futebol de várzea é uma atividade de grande importância nas periferias, pois torna-se um ambiente de pertencimento, laços afetivos, senso comunitário e de organização social autônoma, uma vez que o Estado deixa essa população totalmente a margem das cidades e principalmente nos grandes centros urbanos. (PASTERNAK, 2016)

O processo de urbanização diminui cada vez mais os locais de prática esportiva nas periferias. O futebol de várzea tenta resistir à expansão urbana, uma vez que as equipes de periferia acabam jogando em locais de classe alta, ou com grande apelo da especulação imobiliária, fato que nos processos de urbanizações dos centros urbanos fica cada vez mais raro encontrar um campo de futebol de várzea.

É necessário estabelecer que o futebol foi uma válvula de escape para essa população marginalizada e dominada por uma elite branca, mas nos campos de futebol da várzea o esporte no Brasil cresceu em larga escala, e há uma relação muito peculiar das equipes de futebol de várzea com a sua comunidade. Ainda, isso acaba se dando pela própria forma como o futebol se popularizou no Brasil desde sua chegada até os dias de hoje, pois o futebol alimenta o sonho de uma parcela da população que vê nele uma forma de ascensão social, bem como uma maneira de ter momentos de lazer.

Esses aspectos criaram e reforçam como se deu o processo urbanização dos centros urbanos e como as periferia foram estabelecidas tanto no tocante à classe quando à raça, uma vez que para pensar a periferia no Brasil não é possível se descolar da temática racial. Mesmo com esses problemas sociais, e com uma blindagem da prática esportiva para uma exclusividade da elite branca e reforçando o aspecto segregador, o futebol teve o condão de romper essa lógica elitista (SOARES 1998, p. 1)

Percebe-se que a popularização do futebol acaba por ganhar uma face diferente nas periferias, pois, diante da gentrificação dos espaços urbanos, o futebol de várzea possibilita lazer a um grupo de pessoas que não recebem qualquer tipo de possibilidade de acesso a esse serviço publico. E diante desse cenário, tem-se um agravamento que é o desaparecimentos dos campos de futebol de várzea, assim impactando nos espaços de lazer da periferia.

Favela do Jardim Jaqueline - SP - Brasil.
Favela do Jardim Jaqueline – SP – Brasil. Foto: Cassimano

Essa forma de organização social denota um apagamento da cultura de futebol de várzea, pois nesse espaço é que surgiram vários jogadores e jogadoras, entretanto como a especulação imobiliária fica mais latente a perda de locais informais de pratica do futebol. Fato que muda a própria forma como se pratica futebol no Brasil, e isso tem reflexo até mesmo na revelação de atletas de futebol, além de diminuir locais de lazer nas periferias brasileiras.

Sendo assim, de alguma medida  se buscou demonstrar que há uma disputa entre o futebol de várzea e a cidade, pois há a reivindicação locais de pratica esportiva, porém ela é realizada através da resistência dos times de futebol de várzea que ainda disputam seus campeonatos mesmo sem o apoio do poder público. E acaba sendo uma queda de braço com a especulação imobiliária e o descaso do poder público, porém os times de várzea tentam garantir o seu acesso ao esporte, mas principalmente em garantir que seja mantida a cultura esportiva nacional, e não entregar esses espaços urbanos à especulação imobiliária ou para a expansão do centro urbano. Estamos vendo ao longos dos anos um apagamento cultural do futebol, onde o poder público e o privado estão cooptando os espaços urbanos da prática de futebol, e assim cada vez mais anulando e ceifando os ambientes de lazer da periferia.

 

Referências

GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2009.

LANGA, Angela de Fátima. A RESSIGNIFICAÇÃO DEFAVELA EM BECOS DA MEMÓRIA: DA FAVELAFOBIA AO BECO-LAR. Revista Literatura em Debate, v. 9, n. 17, p. 80-95, dez. 2015

MEIRELLES, R. Um país chamado favelas: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo, Gente, 2014

PASTERNAK, Suzana; D’OTTAVIANO, Camila. Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a partir da Leitura Territorial do Censo de 2010 *. Cafajeste. Metrop. , São Paulo, v. 18, n. 35, pág. 75-100, abril de 2016. Acesso em 15 de dezembro de 2020. http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3504.

SOARES, Antônio Jorge. Futebol, raça e nacionalidade no Brasil: releitura da  história  oficial. Rio de Janeiro, UFG, PPGEF. tese de doutorado.1998

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003

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Regis Fernando Freitas da Silva

Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2013) e pós-graduação em Direito Desportivo e Gestão no Esporte pela FBT/Ineje (2019). Mestre em Direito pela Universidade La Salle(2021). Professor, pesquisador e advogado de Direito Desportivo.

Como citar

SILVA, Regis Fernando Freitas da. Disputa de poder nas cidades: onde foram parar os campos de futebol de várzea?. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 29, 2021.
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