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É possível ser um torcedor sem se importar com o rival?

Em nossa cultura machista e extremamente desigual na distribuição dos trabalhos domésticos e dos cuidados com os filhos e filhas, o professor do Departamento de História aqui da nossa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o colorado César Augusto Barcellos Guazzelli ilustra, talvez mais constatando do que corroborando essa cultura, que a única obrigação de um pai é definir o time de futebol para o qual sua filha ou, especialmente (permanecendo nessa lógica machista), seu filho torcerá. Se por um lado me esforço bastante para diminuir a desigualdade de trabalho doméstico e de cuidados com o Martin (diminuir porque reconheço que igualar ainda seria uma utopia), assumi para mim a responsabilidade da vinculação clubística do Martin. Com pouco mais de 6 meses de vida ele já era sócio do Grêmio.

Carteirinha grêmio

Pensar o futebol aqui no Rio Grande do Sul é pensar Gre-Nal. As identidades de suas torcidas são produzidas com a alteridade colocada nos torcedores do outro clube. É bastante comum entender que “gremistas e colorados são contrários, contraditórios e complementares” (DAMO, 2002, p. 85). Parece difícil fazer-se gremista sem pensar nos dois clubes. Aparentemente para um gremista, tal qual para um colorado, Grêmio e Internacional teriam quase a mesma importância. Mesmo que apenas um dos clubes participe de determinada competição, ambos são chamados a se interessar pelos confrontos[1]. Essa rivalidade, muitas vezes naturalizada, é constantemente alimentada pelos diferentes atores que compõem o futebol de espetáculo.

Ser torcedor de uma equipe específica significa, no contexto futebolístico em que fomos alfabetizados para o torcer, não torcer pelas outras (inclusive pega mal ser um torcedor misto, apesar de que os torcedores mistos existem…): “Dizer-se gremista é (…) dizer-se anticolorado e não-flamenguista, palmeirense, santista e assim por diante” (Damo, 2002, p. 54). Nessa relação o rival, acaba sendo a principal alteridade construída. Em seu trabalho sobra a identidade dos torcedores do Grêmio, Arlei Damo reforça o entendimento normativo: “A paixão pelo Grêmio implica também na aversão ao Internacional” (2002, p. 54).

Aqui em nosso estado os efeitos da rivalidade são tão fortes que atravessa até mesmo nossas torcidas antifascistas. Em 2019 promovemos um evento acadêmico no museu da UFRGS, em julho. Após confirmar sua participação, a antifa do Internacional não apareceu. Nos relatos recebidos eles reclamaram de uma desigualdade em evento anterior que tinha mais representantes gremistas do que colorados. Em novembro, um grande evento coordenado pelo Movimento Clube do Povo reuniu torcidas antifascistas de todo o Brasil. No ônibus que veio do Rio de Janeiro e de São Paulo, torcedores rivais dividiram o espaço sem nenhuma dificuldade. O único gremista que participou daquele evento fui eu a convite do meu amigo Marcelo Carvalho para representar o Observatório da Discriminação Racial porque ele tinha um compromisso fora do Rio Grande do Sul na mesma data. Nos movimentos de rua contra os ajustes neoliberais do governo Temer, cada antifa saía para o lado oposto. Eles chegaram a dividir uma coluna no Repórter Popular[2] que acabou suspensa por limites identitários. Mesmo dentre os “progressistas” aparentemente alguns acreditam que um clube/time de futebol possua qualidades intrínsecas que faz com que seus torcedores sejam melhores que os torcedores do rival. Aparentemente as antifas da dupla Gre-Nal são contra todos os preconceitos, menos o clubístico…

O confronto entre Grêmio e Internacional é um duelo entre o que se aprendeu a chamar no Brasil de “grandes clubes”. Esses grandes clubes são os das capitais que concentraram as principais conquistas no país nos primeiros torneios nacionais. Se na Argentina somente cinco são os grandes clubes, inclusive excluindo o tetracampeão da Libertadores, Estudiantes, no Brasil em que Sul e Sudeste ainda dominam as representações (felizmente um pouco menos que em outros períodos) somos doze. Ou éramos ou não seremos mais dadas as diferenças econômicas maiores que outrora. Mas hoje, nenhum gremista ou colorado permite entender-se como não pertencente da elite do futebol nacional. Independentemente dessa grandiosidade nacional, no Rio Grande do Sul, Gre-Nal é uma forma de pensar.

Grenal
Torcida mista no GreNal 404. Foto: Divulgação/SC Internacional/Grêmio FBPA.

Ter uma grande torcida, grandes títulos, ter aceitado atletas negros antes do outro hierarquiza os clubes entre si e produz representações sobre seus torcedores.

Completamente alheios ao que nos mostra a história, torcedores de Internacional e Grêmio procuram demonstrar até mesmo qual dos dois clubes é popular desde sua origem quando a resposta exata seria nenhum. Sobre isso, lembro nosso saudoso botafoguense Gilmar Mascarenhas:

O Internacional de Porto Alegre surgiu em 1909, como iniciativa de indivíduos de classe média para desafiar o Grêmio, então principal força do nascente futebol gaúcho e representante das elites alemães que então controlavam importantes setores da economia. (…) . Na década de 1930, esse clube investiu no processo de popularização de sua imagem, com êxito peculiar.

Mascarenhas, 2014, p. 128

O Internacional foi o primeiro clube da dupla Gre-Nal a admitir atletas negros. Essa aceitação permitiu a consolidação da imagem do Internacional como “clube do povo”. Nos últimos anos o Grêmio procurou abraçar a alcunha de “clube de todos” exaltando, inclusive, o protagonismo da Coligay[3], torcida homossexual que frequentou o antigo estádio Olímpico entre o final da década de 1970 e início da década de 1980. Apesar desse esforço, ainda persistem diferentes representações que vinculam o Internacional como uma torcida popular e negra, enquanto a torcida do Grêmio ainda é representada como elitista e racista. Novamente recorro ao Gilmar Mascarenhas que me parece bastante lúcido ao mostrar os movimentos dessas representações:

Retomando as estratégias e os contornos simbólicos da rivalidade Gre-Nal, mantendo-se fiel a seus estatutos, o Grêmio persiste em recusar a inclusão de atletas negros até 1952, quando já não mais suporta o acúmulo de vitórias do inimigo direto. Nesse ínterim, o Internacional redimensionara no plano simbólico o confronto com seu rival, que passa a ser visto como um clube branco de elite e sobretudo racista, encastelado na área nobre da cidade, contra o adversário popular e negro, o carnavalesco “clube das massas” democraticamente instalado no subúrbio Menino Deus. Essa redefinição do confronto chega, nesse momento, a esboçar contornos de luta de classes. Com a reestruturação do Grêmio, entretanto, essa conotação classista vai gradativamente se esvaindo. Na atualidade, ambos os clubes possuem, igualmente, adeptos nas camadas sociais desfavorecidas.

Mascarenhas, 2014, p. 131-132.

Para além das representações e das disputas por seus significados, o Gre-Nal é, indubitavelmente, o jogo mais representativo na relação entre gremistas e colorados. “Clássico” é o nome dado para este tipo confronto, o embate direto entre clubes tradicionais ou rivais. Os clássicos garantem um grande envolvimento de suas torcidas, mesmo que, eventualmente, não apresentem boa qualidade técnica. Na realidade, esse elemento é totalmente dispensável e não são incomuns os clássicos de sangrar os olhos, sem nenhum gol e com uma briga generalizada entre os jogadores que parecem ter aprendido que jogar na dupla como se tivesse se feito torcedores desde suas infâncias.

Em Porto Alegre, ao pensar em gostar de futebol, uma criança precisa fazer sua “escolha” pretensamente definitiva. É preciso definir-se gremista ou colorada. Uma das estratégias para a associação a um dos clubes da cidade se dá nos enfeites dos berçários. Sabemos que esses enfeites ajudam a marcar a construção social do gênero pelas cores associadas a meninas (rosa) e meninos (azul). Em Porto Alegre, os enfeites dos meninos e meninas também podem ser diferenciados entre si. Aqui, além de azuis, os enfeites dos meninos podem ser vermelhos. Um enfeite azul do Grêmio para uma menina não chega a colocar as normas de gênero em tensão. Os símbolos de Grêmio e Internacional estão presentes nas maternidades e nos berçários para “confirmarem” a herança “genética” do clube. 

Todas essas linhas foram para dizer que como pai que precisa (e quer) garantir o “clube do coração” do filho, gostaria que fosse possível fazer um gremista de outro modo. Quero o Martin um gremista melhor do que eu. Quero que ele torça para o Grêmio, mas gostaria que ele se importasse muito menos com o Internacional do que eu. Será isso possível? Mais que adversário, o Internacional não poderia ser um parceiro para fazer os jogos acontecerem? Não sou tão revolucionário de imaginar que ele torceria por vitórias do Internacional, mas será que ele precisa torcer tanto pelas derrotas coloradas como eu? Assim como eu ele terá grandes amigos colorados. Por que é necessário despender tanta energia torcendo contra o fracasso do clube rival e, em alguma medida, dos meus amigos?

Falando nos meus amigos, o panamenho radicado em Porto Alegre desde a adolescência, Rodrigo Pareja tem um pouco mais de dificuldade de entender a necessidade dessa aversão. Tendo chegado na cidade depois da infância sua equivocada escolha pelo Internacional (me desculpem, eu não resisto) não contou com a mesma aversão pelo rival que a minha escolha pelo Grêmio. Ao comentar com ele sobre as possibilidades de o Martin ser um gremista que não seja anticolorado ele demonstrou bastante otimismo, bem maior que de dois outros grandes amigos, Cassio e Zé Paulo que acham que não é possível que isso aconteça e em nossa conversa aparentaram, inclusive, não entender o propósito disso. O Martin que, com dois anos e três meses, já me ensinou tanto poderá me ajudar a ver a viabilidade dessa hipótese de fazer um torcedor que não se importa com o rival.

Grêmio

Referências

Damo, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Editora da Universidade (UFRGS), 2002.

Mascarenhas, Gilmar. Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.


[1] Enquanto escrevo essas linhas estou com muito medo que o Internacional conquiste sua terceira Copa Libertadores da América. Espero que quando o texto seja publicado o Fluminense já tenha resolvido o “meu” problema ou serei mais um torcedor apaixonado do Palmeiras ou do Boca Juniors.

[2] Agradeço a minha colega Soraya Bertoncello por me lembrar do nome do jornal.

[3] Sobre a Coligay, ver Anjos, Luiza Aguiar dos. Plumas, arquibancadas e paetês: Uma história da Coligay. Santos: Dolores Editora, 2022.

 

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

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Gustavo Andrada Bandeira

Possui graduação em Pedagogia (2006), especialização em Jornalismo Esportivo (2012), mestrado em Educação (2009) e doutorado em Educação (2017) todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é técnico em assuntos educacionais da UFRGS. Foi professor nos cursos de Especialização em Jornalismo Esportivo na UFRGS (2012-2013), Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar na Escola de Gestores (2012-2016), Autor do livro Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (Geerge), do Seminário Permanente de Estudios Sociales del Deporte e do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Como citar

BANDEIRA, Gustavo Andrada. É possível ser um torcedor sem se importar com o rival?. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 12, 2023.
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