174.22

Equipamentos municipais e espaços de sociabilidade: pontos nodais (parte 2)

Este texto integra a série especial Santa Marina, o circuito varzeano de SP e a preservação dos clubes esportivos populares, publicada na coluna Em defesa da várzea do portal Ludopédio. O principal objetivo é colocar em debate a urgência de garantir a reprodução e continuidade das práticas populares esportivas e culturais nas cidades brasileiras. Os textos, que serão publicados quinzenalmente ao longo de 2023 e 2024, apresentarão as atividades, etapas, metodologias, resultados e principais reflexões do “Mapeamento do Futebol Varzeano em São Paulo”, realizado em 2021, sob encomenda do Núcleo de Identificação e Tombamento (NIT) do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura do Município de São Paulo, a fim de reunir subsídios para identificar práticas culturais relacionadas ao futebol de várzea e para analisar processos administrativos de proteção do patrimônio cultural. Além disso, diante de um contexto marcado por reiteradas ameaças aos espaços urbanos onde se pratica o futebol popular, esta série busca colocar em discussão o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), clube amador centenário cujo espaço de atuação vem sendo ameaçado por um pedido de reintegração de posse pela multinacional Saint-Gobain.


Retomando algumas questões já tratadas nos textos anteriores desta série, destacamos que os campos varzeanos em São Paulo (SP) foram construídos e potencializados, originalmente, a partir de sociabilidades locais (apropriação do espaço, associativismo, agenciamentos, negociações políticas, formas de arrecadação de fundos, etc.). Nesse sentido, embora a maioria destes campos tenha a marca de uma equipe/agremiação principal, eles expressam vínculos regionais e de bairro que transcendem tal protagonismo. 

Ademais, no espraiamento do futebol varzeano de São Paulo, também foram numerosos os casos em que campos foram construídos/organizados próximos uns aos outros, praticamente justapostos, formando verdadeiras praças esportivas auto-organizadas. Após a década de 1970 e, sobretudo, após os anos 1990, intensificaram-se os processos de incorporação de parte desses espaços às instâncias de administração pública municipal (Clubes Desportivos Municipais – que posteriormente se tornaram os Clubes da Comunidade, Centros Esportivos, Centros Educacionais Unificados, Parques, etc.). 

Embora existam muitos casos em que foram mantidos, como protagonistas, um time/agremiação, tais equipamentos tendem a acolher maior diversidade de usos, projetos e eventos, representando amplamente diversos times/agremiações e suas respectivas quebradas. Assim, são pontos nodais que podem ser entendidos como “pontos-espaços”, de ampla conexão no circuito varzeano, aos quais milhares de pessoas se sentem “em casa”. Certamente há muitos deles em São Paulo (SP), sendo que os caminhos da pesquisa apresentada por esta série conduziram aos três apresentados a seguir, cuja localização foi apresentada no mapa disponível no terceiro texto desta série. 

CDC Agostinho Vieira
Festival Liga Rosas de Ouro no antigo campo do Fazendinha “de cima”, CDC Agostinho Vieira, em 2011. Fonte: Acervo Museu do Futebol.

Centro Esportivo Oswaldo Brandão 1

Na década de 1960, a organização coletiva mobilizada pelo futebol varzeano se apropriou de mais um terreno alagadiço. Nos limites entre Freguesia do Ó e Brasilândia, na várzea do Córrego Guaimim, a obra coletiva popular, somada às parcerias por financiamentos e negociações locais, deu origem ao Campo do Fazendinha, uma referência de confrontos e encontros varzeanos da região. 

Subindo um fragmento da vertente,  a margem direita do Guaimim, adjacente à Estrada do Sabão, o sítio de outro campo, a poucos minutos do Fazendinha. Pelo mesmo processo do primeiro, ele seria posteriormente incorporado ao modelo dos Clubes da Comunidade, com a criação do CDC Agostinho Vieira. Em determinado intervalo temporal, nos anos 2000, o calendário da várzea foi simultâneo nos dois campos. Agregadores, os “campos do Fazenda” configuraram, inclusive, um trânsito de equipes e torcedores, entre um jogo “lá em cima” e outro, no campo antigo. 

As atividades do CDC Agostinho Vieira, encerraram-se em 2014, quando do início das obras do Hospital Municipal da Brasilândia, que seria finalizado apenas em 2020. As obras do Metrô, também foram determinantes para a mudança na estrutura esportiva local. Já o campo original seria parcialmente deslocado, reformado e situado, então, no conjunto das infraestruturas do Centro Esportivo Oswaldo Brandão (ginásio, piscina, salões, etc.), vigente até os dias atuais. 

CDC Oswaldo Brandão
Roda de Conversa entre varzeanos nas dependências do CE Oswaldo Brandão em 2019. Autoria: Severino Augusto “Guto” – Fonte: Santos (2021, p.243)

Os Centros Esportivos (CEs) são equipamentos municipais que diferem dos CDC’s em aspectos importantes, uma vez que não são organizados por diretorias de representantes dos times e clubes e, assim sendo, as estruturas e práticas varzeanas atreladas ao arranjo dos clubes de bairro – como o uso econômico dos bares, os salões, festas, bailes e demais modalidades de jogos -, não são realizadas a partir da auto-organização varzeana. Elas são decorrentes da infraestrutura do equipamento, viabilizada pela Secretaria Municipal de Esportes. No CE Oswaldo Brandão, além de campo de futebol com arquibancada, há academia de judô, auditório, ginásio esportivo, pista de caminhada, quadras de futsal, quadra poliesportiva coberta, sala de ginástica geral, sala de ginástica artística, salas multiuso, teatro, sala de avaliação médica, vestiários, banheiros, sala de administração, recepção, cozinha/copa, e estacionamento.

A despeito dessa ampla estrutura, que transcende o circuito varzeano, são marcantes os processos de readequações e ressignificações que perpassam as identidades e memórias da várzea no CE Oswaldo Brandão. Pois, como foi mencionado, a efervescência varzeana neste lugar vem de longa data. 

Em termos dos jogos e da inserção no calendário de festivais e campeonatos várzea, o campo do CE Oswaldo Brandão tem uso intenso. Atualmente, muitas equipes de base e esporte jogam regularmente no campo, sendo o Vida Loka FC e o The Wailers FC os principais “mandantes”. Nesse âmbito, destaque para a 1ª Copa Vida Loka, realizada em 2019, reunindo grandes times da várzea paulistana, sobretudo das regiões norte e leste (mapa 1). 

Origem das equipes participantes da Copa Vida Loka (2019)
Origem das equipes participantes da Copa Vida Loka (2019). Fontes: Geosampa (2021); MyMaps (Google); Informações cedidas pelos clubes.

Foram 40 equipes mobilizadas pelo evento do “Vida” que, fundado em 2003, tornou-se o clube com maior adesão torcedora na região, tendo sido campeão da Copa Kaiser 2009. É um grande mobilizador de encontros da várzea, podendo ser destacado, entre diversas dinâmicas, a Torcida Terror da Norte, que ocupa as arquibancadas e beiras de campo de onde o “Vida” atua, com arranjos alusivos aos das torcidas organizadas do futebol profissional, como é recorrente na várzea. 

O “CE” é também lugar para os encontros semanais de varzeanos e varzeanas: das conversas mais triviais, passando pela resenha e pelo torcer em si, trata-se daquela convergência mais descompromissada, permeando crianças, jovens, adultos e idosos do bairro. Uma expressão cultural significativa, nesse arranjo, é a Bateria Pegada Monstro, vinculada ao The Wailers FC, cujos arranjos rítmicos e repertório são voltados aos clássicos do samba-enredo dos carnavais paulistanos, um entrecruzamento de memórias, saberes e fazeres musicais de diversos bambas do “mundo do samba”, que transcorre em meio às partidas. 

Para além dos jogos (amistosos, festivais e copas), dos encontros, das práticas musicais e torcedoras que permeiam o cotidiano do CE Oswaldo Brandão, (amistosos, festivais, copas), no campo deste CE também ocorrem usos livres verificados nos intervalos dos jogos e contra-turnos escolares, majoritariamente protagonizados por crianças e jovens.

Também se destacam os projetos de formação de base (masculino e feminino), com destaque ao Grêmio Independente do Jardim Iracema. Waldemar Oliveira Andrade, principal responsável pelo time, remonta o surgimento do Grêmio à sua chegada no bairro, com envolvimento junto aos organizadores do time Ameropa, equipe forte de disputas na várzea, amparada por recursos financeiros da empresa. Em torno de 1995, pelo falecimento de alguns membros e desestruturação dos recursos, o time deixou de existir. Waldemar destaca a figura de Kilão e Seu Paulo (Paulo Carioca), sempre envolvidos com a organização de projetos de futebol no bairro, o que foi motivando uma nova formação, a partir de 1997. 

Iniciando na quadra e partindo para o campo, com o surgimento do The Wailers FC, esse novo projeto de base foi formado. Pouco tempo depois houve uma divisão, sendo parte do grupo ficando responsável pelo Esporte do The Wailers e Waldemar responsável pela base. Em 2005, ocorre uma mudança de nome do projeto de base, surgindo então o Grêmio Independente Jardim Iracema, projeto de formação que vem até hoje, envolvendo jovens de 6 a 20 anos, dando seguimento a um conjunto de categorias diferentes e parcerias para viabilizar o projeto.

Dinâmica importante do CE, também, é o conjunto de parcerias voltadas ao futebol feminino de base, junto ao time Manchester. Além desta, outras equipes femininas da várzea de São Paulo atuam no campo do Oswaldo Brandão, destacando-se a copa de futebol feminino realizado em 2020, que numa versão inicial contou com 4 equipes, sendo dificultado pelas condições da pandemia. 

Para além desse conjunto de atividades citadas, as centenas de frequentadores semanais do Oswaldo Brandão têm a possibilidade de, num dos salões do Centro Esportivo, entrecruzar memórias a partir do acervo do Museu da Várzea Paulo Carioca, organizado por Waldemar (supracitado), onde se mantém um conjunto significativo de fardamentos, notícias de jornal e, principalmente, fotografias mobilizadas por varzeanos e entusiastas locais, expressando as dezenas de times/agremiações que tiveram o Fazendinha (atual CE Oswaldo Brandão) como sua casa ao longo de décadas. 

A despeito das recorrências, rupturas e singularidades que envolvem as sociabilidades varzeanas, pode ser entendido que a várzea cultivou seu lugar no interior deste equipamento esportivo-cultural administrado pela municipalidade. Há uma dimensão organizativa e de responsabilidades compartilhadas por um conjunto de pessoas que fazem do campo situado no CE Oswaldo Brandão um legado do “Fazendinha”. Ou, mais precisamente, sua permanência. São processos significativos à identidade e memórias dos varzeanos e varzeanas, da Brasilândia e outros bairros, principalmente da Zona Norte de São Paulo. 

Festival Liga Rosas de Ouro no antigo campo do Fazendinha “de cima”,  CDC Agostinho Vieira, em 2011. (Acervo Museu do Futebol).
Festival Liga Rosas de Ouro no antigo campo do Fazendinha “de cima”, CDC Agostinho Vieira, em 2011. Fonte: Acervo Museu do Futebol.

Campo da Xurupita e CDC Parque Taipas2

Assim como no caso anterior, mobilizações coletivas que levaram à constituição desses campos varzeanos, bem como a manutenção destes espaços por décadas. O campo da “Xurupita” e o “Parque Taipas” são espaços de referência para o lazer e o encontro na região Noroeste (mobilizando, sobretudo, fluxos de pessoas dos distritos do Jaraguá, Brasilândia, Perus e Pirituba), regiões carentes de equipamentos públicos de lazer, como são as periferias. Um varzeano participante da pesquisa enunciada nesta série, assim relata o surgimento de um deles: 

O campo foi construído na primeira metade dos anos 80. Era uma área de brejo. Foi um mutirão das pessoas mais ligadas ao futebol. Eles pegaram as ferramentas, capinaram essa área de brejo e fizeram o campo. (…) Nesse campo passa um córrego embaixo, é um córrego canalizado. Passa bem embaixo do campo e da escola e sai lá na frente. Esse era um dos motivos pelo qual esse campo, quando era terrão, ele alagava e demorava para ele secar totalmente.” (Rogério de Sousa Silva – “Xuxão”, sobre o campo do atual CDC Parque Taipas, com base em relatos de Seu “Boizinho”, morador e participante da construção, 2021)

O relato expressa a dinâmica recorrente que envolveu o surgimento, espraiamento e consolidação do futebol de várzea paulistano, ou seja, a auto construção coletiva a partir do mutirão. Se no início do século XX, até os seus meados, tal processo ocorreu principalmente nos bairros populares em formação, nas adjacências das várzeas e meandros dos rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros, tal dinâmica seguiu pujante, no segundo quartel do século XX, nos extremos da metrópole, como ocorreu nos casos da Xurupita e do CDC Parque Taipas. 

O campo da Xurupita foi construído em 1984, sendo um dentre tantos exemplos em que a autoconstrução do espaço de jogo se deu em simultaneidade à autoconstrução do morar. Com a intensificação do padrão periférico de expansão urbana (RAIMUNDO, 2017), a população pobre e predominantemente negra, diante da especulação imobiliária, teve na aquisição de terrenos periféricos e na construção de suas casas aos fins de semana a única alternativa para viver em São Paulo. Nessa dinâmica, a compra de terrenos em loteamentos ainda não regularizados e a apropriação direta – as ocupações -, foram e seguem sendo recorrentes, tendo em vista a ineficácia das políticas públicas de moradia. 

Nos meandros desse território periférico apropriado, descontínuo e fragmentado, passaram a surgir campos de futebol “recentes”, muitas vezes consolidados como principal instância de encontro e sociabilidade das quebradas. São os clubes de bairro, em sua versão periférica, auto-organizada e, muitas vezes, alheia às instâncias organizativas do poder público. Tal autonomia, ou seja, a existência de campos de futebol e clubes locais independente dos equipamentos públicos municipais sempre teve duração variável, a depender de cada caso. 

No Xurupita, por exemplo, isso perdurou até 2021, anos em que a regularização como CDC foi encaminhada, sendo as obras iniciadas em 2022. Na ocasião da pesquisa inicialmente feita nessa comunidade, em 2018, o então Presidente da Diretoria, informou que o campo estava em fase de regularização junto à Secretaria Municipal de Esportes em vias de tornar-se um CDC. Foi montada uma Diretoria com diversos membros dos times que atuam na Xurupita e, segundo Juquinha, estavam gradativamente atendendo às exigências da PMSP para se tornar CDC, como a execução de um croqui e a construção de um playground.

Campo da Xurupita em 2018. Fonte: Santos (2021, p. 106)
Campo da Xurupita em 2018. Fonte: Santos (2021, p. 106)
Campo da Xurupita em 2018. Fonte: Santos (2021, p. 114)
Campo da Xurupita em 2018. Fonte: Santos (2021, p. 114)

Considerando o ano de 2018, de realização da pesquisa publicada em Santos (2021), o campo possuía um uso intenso, com 16 times atuando entre o sábado e o domingo. “Só Muleque”, “Favela Chic”, “Copo Cheio”, “Social”, “Luso”, “Unidos”, “Real BNH” e “Só Resenha” foram alguns dos times mencionados. Além das atividades varzeanas, que se iniciam às 6h30 da manhã do sábado, indo até o final do domingo, também recebe aproximadamente 200 crianças por fim de semana, com Escolinha de Futebol. 

Em geral, os finais de semana são marcados por disputas de campeonatos e não apenas de amistosos, como a própria Copa Xurupita. Trata-se de um lugar onde se desdobram, com grande intensidade, os diversos modos de torcer, as sonoridades varzeanas, as “batucadas torcedoras” e batucadas de beira de campo, as resenhas e festas, adensando o cotidiano, como nos demais pontos nodais. 

A partir desse fragmento da metrópole, pode-se dimensionar a relevância de políticas públicas pela consolidação de outros campos na mesma situação no território das periferias: aqueles onde os fazeres coletivos pretéritos e auto-organizados permanecem como principal instância, da construção do campo aos usos atuais. Tal potência não significa que esses lugares não demandem incrementos infraestruturais e de capitalização, que podem ser auferidos pelo modelo dos CDCs. É difícil precisar quantitativamente os campos nessa situação, por razões óbvias de dimensão territorial da metrópole. Contudo, o caso da Xurupita sinaliza uma agenda importante em vias, inclusive, de se pensar políticas de proteção ao patrimônio cultural, como ocorreu com o Santa Marina, que protagoniza a coluna “Em Defesa da Várzea”. 

No mesmo sentido, pode-se tratar do CDC Parque Taipas, também situado na região, cujo surgimento foi descrito no relato supracitado. O processo não contou inicialmente com envolvimento do poder público, contudo, já nos anos posteriores, o campo inicial se tornaria um Centro Desportivo Municipal (CDM). As especificidades dos CDMs e a transição para os CDCs, no âmbito da Secretaria Municipal de Esportes, serão abordadas em seção específica desta série, sendo destacável, por ora, que o antigo campo do Parque Taipas passou a organizar-se como CDC, com as formas de direção e hierarquia previstas em seu regulamento. 

As atividades do CDC são principalmente amistosos, festivais e campeonatos, distribuídos em 8 times mandantes aos sábados e 8 aos domingos. Na tabela, organizada com informações cedidas por Rodrigo Benevenuto, frequentador do CDC e do Arvão FC, os times são distribuídos temporalmente. 

Tabela 1 – Distribuição dos times atuantes no CDC Taipas (2021)

Times mais antigos que já não existem mais

Vila nova
Santos Taipas
Pinheirinho Taipas
Conexão do Morro Parque Taipas (predecessor do Arvão FC)
Real Parque Taipas

Antigos e ativos

Fragata Parque Taipas
Gana Parque Taipas
Unidos do Jardim Brasilia
Pinga na Veia Parque Taipas
Tan Tan Jardim Marilu

Times da segunda metade dos anos 90 e início dos anos 2000

Arvão Parque Taipas
Arsenal Jardim Brasília
Paratudo Parque Taipas

Times mais novos

R6 Inquebráveis
Unidos da 13 Parque Taipas
Cdc Taipas Parque Taipas
Família Jardim Brasília
Pistão Cohab Brasilândia
Amigos Jardim Paulistano
Carnabronks Cohab Taipas

(Elaboração: Rodrigo Benevenuto).

Considerando a data da pesquisa publicada nesta série (2021), o último campeonato realizado no CDC havia sido a Copa CDC Parque Taipas, contando com 48 equipes da região, cujos bairros de origem, as “quebradas” (vilas, jardins) estão representadas no mapa 2. Ademais, destacam-se os frequentes festivais organizados, especificamente, por uma das equipes acima listadas na tabela, envolvendo situações comemorativas, principalmente seus respectivos aniversários. 

Em 2021, dois projetos de de base (“escolinhas de futebol”) ocorriam no CDC: o Tan Tan e o Real Mirim,  ambos gratuitos. Ocorrem três vezes por semana, alternando períodos matutino e vespertino. Destaca-se a trajetória organizativa de Formigão, originário do Rio de Janeiro (assim como o próprio Tan Tan), que passou a incentivar e mobilizar as atividades da equipe, originalmente carioca, no Jardim Marilu, próximo ao CDC. Para além da equipe principal, o Tan Tan articula formações de base no masculino e feminino. Em relação à escolinha do Real Mirim, destaca-se a trajetória de dedicação ao futebol do treinador Márcio e sua equipe. Márcio, deficiente visual desde a infância, é uma referência na articulação do futebol de base nessa quebrada, desde o início dos anos 2000. Assim como o Tan Tan, desenvolvem as atividades nas categorias masculino e feminino. 

Origem das equipes participantes da Copa Vida Loka (2019). Fontes: Geosampa (2021); MyMaps (Google); Informações cedidas pelos clubes.
Subprefeituras de origem das equipes participantes da IV Copa CDC Parque Taipas (2019) no mapa de São Paulo. Fontes: Geosampa (2021); MyMaps (Google); Informações cedidas pelos clubes.

Segundo os relatos obtidos, ainda que incipiente, há mobilização de equipes de futebol feminino para além das categorias de base. Destacam-se, ainda, os encontros semanais de amigos e familiares no CDC, a reunião de torcidas, baterias e batucadas de beira de campo, rodas de samba, festas (principalmente no Dia das Crianças), entre outros eventos e práticas culturais que serão abordados, posteriormente nesta série. Durante a pesquisa foi estimado que, em finais de semana de amistosos, cerca de 500 pessoas frequentam o CDC Parque Taipas, ao passo que quando ocorrem festivais, o número avança para cerca de 2000 pessoas. 

Complexo de Campos de Futebol do Campo de Marte3

A denominação complexo de campos, de uso corrente entre os/as varzeanos/as que frequentam esse espaço, bem como na luta política pela sua preservação, é reveladora da potência deste ponto nodal para a várzea paulistana. Localizado na Casa Verde, zona norte do município, não muito distante do centro antigo de São Paulo, é o último reduto varzeano a abrigar seis campos de futebol de várzea contíguos, cada um deles administrado por uma agremiação diferente. O Complexo fica a menos de quatro quilômetros do marco zero do centro de São Paulo, no número 320 da Rua Marambaia (uma travessa da Avenida Braz Leme, no bairro da Casa Verde), onde uma pequena guarita dá acesso a seis campos de futebol de várzea.

Além das atividades esportistas, os clubes realizam eventos e promovem atividades culturais (festas, bailes, rodas de samba, projetos de formação, ações solidárias, etc.), reunindo semanalmente cerca de 5 mil pessoas. São dezenas de amistosos, copas e festivais que perpassam o cotidiano do Campo de Marte, destacando-se o fato de ter sediado, em 2019 e 2021, o Maior Festival de Futebol de Várzea Feminino do mundo, organizado pela Liga Feminina de Futebol Amador, contando com 72 equipes e mais de 800 jogadoras na edição de 2019. 

Atualmente, os campos ocupam parte de um terreno que pertence à Aeronáutica e abriga diversos outros equipamentos ligados à instituição. Contudo, essa assertiva não encerra a também complexa relação de propriedades e usos deste espaço historicamente. Trata-se de uma área motivadora de conflitos entre diferentes agentes públicos e privados envolvidos numa disputa fundiária entre a União e a Prefeitura de São Paulo, que perdura desde a década de 1930. Um imbróglio de dezenas de momentos marcantes, decisões, recuos e modificações, em meio ao qual as articulações dos varzeanos, envolvendo desde apropriação dos terrenos às negociações políticas e com empresas locais, foram consolidando um lugar articulador de referências culturais varzeanas. 

Para elucidar esse histórico, citando alguns marcadores temporais, cumpre destacar que o lugar marca o trajeto que ligava os moradores da Casa Verde e Parque Peruche até a beira do rio Tietê na década de 1940 e 1950, fato que gerou familiaridade entre os habitantes da região com os terrenos em desuso, e também categorizados como de “brejo”, “vacaria” e varzeanos (FAVERO, 2019). Com ocupações que datam desde a década de 1960, conhecidas equipes varzeanas como o Grêmio Esportivo Cruz da Esperança; Grêmio Recreativo SADE; Veteranos Unidos Paulista (VUP); Grêmio Esportivo Aliança da Casa Verde; Baruel Futebol Clube e Pitangueiras Futebol Clube representam as organizações que promovem há anos as atividades esportivas e culturais no Complexo de Campos de Futebol do Campo de Marte.

Campo de Marte
Campo do Baruel, representante de um dos seis campos do Complexo do Campo de Marte. Fonte: Acervo Museu do Futebol

A área de dois quilômetros quadrados abriga um aeroporto, um hospital militar e demais dependências da Aeronáutica e é objeto de disputa desde que o governo do presidente Getúlio Vargas tomou posse do local durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1972 foi expedido pelo Comando de Apoio Militar, uma documentação que oficializou a concessão de uma parte dos terrenos do que viria a ser o Complexo de Campos do Campo de Marte. Os termos assinados e sob a posse da equipe do SADE indicavam, de acordo com Favero (2019), a “autorização do uso do futebol na área e expressam características centrais ao padrão de ocupação dos clubes nesse terreno, marcado pela negociação incerta e sempre situacional com agentes do Estado”.

Diante do interesse dos trabalhadores da SADE, a Aeronáutica vislumbrou no acordo uma oportunidade para obter mais controle sobre a área dos terrenos já em disputa na década de 1970. Ao ceder o uso dos terrenos para a prática do futebol como maneira de protegê-lo do risco de ocupação por moradia, longe de ser uma particularidade, foi uma estratégia comumente adotada por proprietários para assegurar suas terras (HIRATA, 2005).

No ano de 2021, após décadas de continuidade do futebol varzeano e de indefinição no cenário de disputa judicial, a Prefeitura de São Paulo e o Governo Federal, por meio da Procuradoria-Geral do Município, da Advocacia-Geral da União, da Secretaria Municipal da Fazenda e do Ministério da Economia, chegam a uma solução que visava quitar a dívida de R$ 25 bilhões que a União atribuía à Prefeitura, a partir de indenização pelo uso do Campo de Marte.

Poucos anos antes, foi anunciada a construção de um parque público para os habitantes da região da Casa Verde durante a gestão do político João Dória (PSDB) como prefeito. O projeto anunciado em 2019 não contava com a participação de nenhum dos dirigentes e agremiações presentes no local e previa espaços de uso comum que reduziria o complexo de seis campos para apenas um, tendo como enfoque a prática esportiva de caminhadas e corridas, minimizando o futebol popular, bem como as demais práticas culturais já pujantes no complexo. O processo gerou articulações de varzeanos/as e movimentos organizados, que conduziram a atuação coletiva, bem como da interdependência de suas agremiações esportivas. Consensualmente o grupo compactuou com o desejo de que a área fosse transformada num futuro próximo em um Clube Desportivo da Comunidade (CDC), revelando uma parceria dos varzeanos do Campo de Marte com o poder público municipal e salvaguardando as atividades dos campos. Frente à rarefação e reprodução do espaço em São Paulo (SP), a partir da qual diversos campos foram suprimidos na cidade, os movimentos organizados destacam que o tombamento enquanto patrimônio seria um dispositivo fundamental para garantir a salvaguarda das atividades dos campos do Complexo do Campo de Marte. Destaca-se, ademais, a fruição de patrimônios imateriais já registrados no âmbito das normativas municipais – o samba paulistano e o samba-rock -, ambos realizados recorrentemente nas áreas de sociabilidade do Complexo Esportivo Campo de Marte, desde eventos periódicos de amplas divulgação, como os Bailes do EC Cruz da Esperança, àqueles mais espontâneos, como as rodas de samba. 

*****

A elucidação sobre os pontos nodais, realizada neste texto e no anterior, apresenta um panorama sobre os mesmos em face ao escopo da pesquisa. Conteúdos que serão retomados nas publicações posteriores da série. Conforme elucidado, eles foram elencados pela representatividade na várzea paulistana e pela intensa trama que os perpassa, vinculando bairros e regiões da metrópole. A história de todos eles precede de um processo bastante mencionado: a apropriação do espaço, sobretudo dos chamados vazios urbanos, nas primeiras décadas do século XX. Tal dinâmica será o enfoque do próximo texto. 

Notas

1 As principais referências para este levantamento foram os relatos cedidos pelo varzeano Waldemar Oliveira, as páginas oficiais do Centro Esportivo e, também, informações obtidas pelas redes sociais das equipes atuantes.

2 As principais referências para este levantamento são: contatos com interlocutores da região entre novembro e dezembro de 2021 (Rodrigo Benevenuto; Rogério Souza Silva e Julio César Pugliesi Bastos); e a pesquisa de doutorado de Santos (2021), principalmente na seção 1.5 e capítulo 3, em que são trabalhadas etnografias e entrevistas, com menção nominal a todos os interlocutores.

3 As principais referências para este levantamento são: contatos com interlocutores do clube entre novembro e dezembro de 2021 (Edson Rodrigues de Sena; José Humberto Paiva; Soraia Marques Trindade; Otacílio Ribeiro; Walmir Oliveira de Mello; José Rocha Zinho do Baruel e Júnior do Pitangueira); os dados coletados pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (https://dados.museudofutebol.org.br/2d#/tipo:eventos/672094,Hist%C3%B3rias%20da%20V%C3%A1rzea:%20Campo%20de%20Marte) e a pesquisa de mestrado de Raphael Piva Favalli Favero (2019).

Referências

FAVERO, R. P. F. A várzea é imortal: abnegação, memórias, disputas e sentidos em uma prática esportiva urbana. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

RAIMUNDO, S. L. Território, cultura e política: Movimento cultural das periferias, resistência e cidade desejada. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

SANTOS, A. L. O samba como patrimônio cultural em São Paulo (SP): As batucadas de beira de campo e o futebol de várzea. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alberto Luiz dos Santos

Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP) e do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Espaço e Memória, vinculado ao Labur/FFLCH/USP (CNPq). Possui produção acadêmica voltada às área de Geografia Urbana e Patrimônio Cultural, desde 2012, com enfoque nas referências culturais vinculadas ao futebol de várzea, após 2016. 

Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte... 

Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SANTOS, Alberto Luiz dos; BONFIM, Aira F.; SPAGGIARI, Enrico. Equipamentos municipais e espaços de sociabilidade: pontos nodais (parte 2). Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 22, 2023.
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