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Esse coqueiro que dá coco I

Manuel Soriano 2 de abril de 2022

Não é só de lá pra cá. O Brasil, com sua música e ritmo, também influencia a forma como os outros sul-americanos torcem. Manuel Soriano, escritor argentino residente em Montevidéu, se dedicou a investigar origem e influência cultural brasileira na forma de… hinchar

 

Segundo diz a lenda, depois do Maracanazo, Obdulio Varela, o grande capitão uruguaio, escapou da festa para caminhar sozinho pelas ruas do Rio de Janeiro e se arrependeu por ter causado tanta tristeza.

“Passou essa noite bebendo cerveja, de bar em bar, abraçado aos vencidos. Os brasileiros choravam. Ninguém o reconheceu”, diz Eduardo Galeano em seu livro Fútbol a sol y sombra. Outra versão diz que essa noite Obdulio foi com um amigo a um bar, estava comendo um cachorro-quente quando alguns brasileiros o reconheceram e o convidaram para tomar algumas. Obdulio teria dito ao seu amigo: “Olha só, eu vou com eles para que não pensem que tenho medo, mas é provável que queiram jogar o meu corpo no rio”.

Essa é, supostamente, a versão que o próprio Obdulio contou a um jornal anos mais tarde. E para além de sua veracidade, me parece mais interessante como história, já que rompe com a simetria do relato de Galeano.

Sessenta e quatro anos depois, o Brasil voltou ser derrotado em uma Copa do Mundo que organizou, neste caso numa semifinal, 7 a 1 contra a Alemanha. Um programa da televisão argentina mostrava imagens de torcedores brasileiros chorando ou fazendo força para não chorar, enquanto as pessoas no programa riam e cantavam. A tela é dividida para que o telespectador argentino possa ver as duas coisas ao mesmo tempo: no lado direito os homens e mulheres brasileiros chorando ou fazendo força para segurar, e à esquerda a cara de êxtase de Oscar Alfredo Ruggeri assistindo as imagens em um monitor.

“Hoje, quando eles choravam, eu aplaudia… Das crianças não, mas dos adultos eu morro de rir… Se alguém morrer por isso eu não acho legal, não, mas a verdade é que eu sinto muito… Isso é futebol… Não sabem o quanto xinguei esse Oczil (sic), Özil, quando perdeu o oitavo… Se eles fazem a mesma coisa… Vamos ver amanhã o que cantaremos…” diz Ruggeri, entre outras coisas, neste fragmento do programa que pode ser encontrado no YouTube com o título: Ruggeri ve imágenes de los brasileiros llorando y lo disfruta.

O torcedor da seleção argentina é muito diferente do torcedor de um time, e essa diferença se nota nas canções.

O torcedor da seleção é mais ingênuo, amargo, de família, fofo, cordial (dependendo de quem for perguntado), e então temos musiquinhas de incentivo como “Mandarina, mandarina”, “Esta barra quilombera” ou o já um pouco triste “Volveremos a ser campeones como em el 86”.

Mas há um fator que aproxima um tipo de torcedor ao outro. Quando aparece o Brasil no cenário, o torcedor da seleção se parece mais, em suas misérias e virtudes, ao torcedor de todos os domingos. E por isso foi preciso esperar que o Brasil organizasse uma outra Copa para que os argentinos pudessem entrar em acordo e cantassem algo novo.

A canção é “Brasil decime qué se siente”: tem a melodia de Bad Moon Rising, da banda Creedence Clearwater Revival, e uma letra que copia em sua estrutura o “River decime qué se siente” que os torcedores do Boca cantam para zombar do rebaixamento. Stu Cook, o baixista do Creedence, disse: “Os torcedores da Argentina sabem que Bad Moon Rising mete medo nos corações dos rivais”.

A música foi um sucesso total. Os torcedores pouco se importaram com o fato de o letrista invocar um jogo do século passado para que pudéssemos tirar uma com o Brasil. Depois do golaço de Claudio Paul Caniggia, neste lapso em que supostamente estiveram chorando, os brasileiros ganharam duas Copas e quatro Copas América, e toda essa canção, a não ser pelo surgimento de Messi no oitavo verso, soa mais a um aposentado que se gaba do próprio passado enquanto alimenta as pombas.

Na verdade eu não quero falar desta música, mas de outras canções, que vêm do Brasil, e que são cantadas nas arquibancadas argentinas todos os domingos. Se me alonguei um pouco mais da conta nessa introdução, foi apenas para mostrar até que ponto temos incorporada a rivalidade futebolística com os brasileiros.

Entretanto…

1. Aquarela do Brasil

“Um dia estava em Port Talbot, um povoado mineiro em Gales que naquela época se encontrava à beira da quebra. A praia, assim como o resto do povoado, estava coberta por uma camada de pó de carvão. Tudo era frio, terrível e cinza, mas ao entardecer o sol se pôs sobre o mar e criou esse contraste maravilhoso. Imediatamente me ocorreu essa imagem: um homem sentado na areia escuta um rádio portátil, começa a tocar a canção Brazil, e esse homem se eleva sobre o cinza que o rodeia e consegue escapar”.

Isso foi o que disse Terry Gilliam quando perguntado como lhe ocorreu o filme Brazil. A canção que menciona, aquela que produziu essa faísca no seu cérebro, originalmente se chamou “Aquarela do Brasil” e foi escrita pelo compositor mineiro Ary Barroso em 1938. Devido a sua exaltação de tudo aquilo que é brasileiro, essa canção foi acusada de servir como propaganda do governo Getúlio Vargas; três anos depois a Disney utilizou em seu filme “Alô, amigos”, quando um papagaio chamado José Carioca leva o Pato Donald para conhecer os lugares mais emblemáticos do Brasil; mais tarde foi feita uma versão em inglês cantada por Frank Sinatra, Bing Crosby e Geoff Muldaur; e então foi tocada por quase todos os gênios da música brasileira.

A versão de Geoof Muldaur foi a que inspirou Gilliam em 1983. Não sei qual versão inspirou a torcida do Boca, e se foi antes ou depois; é provável que tenha sido uma versão em português (talvez aquela tocada no Disco Samba, de quem falarei no ponto quatro), mas o certo é que a melodia superou a rivalidade entre países, e essa letra que repete “Brasil, Brasil”, e que cita coisas exageradamente brasileiras como malandros, pandeiros, morenas sensuais de olhar indiscreto, ou coqueiros que dão coco, foi trocada por uma letra que de tão simples não vale a pena transcrever.

Basta dizer que repete “Oh, y dale dale dale Bo”, que no refrão diz “Campeón” quando a versão original diz “Brasil”, e que geralmente é acompanhada com trompetes, bumbos e pratos que certamente ingressam no estádio de maneira ilegal.

É errado pensar que todas as canções de estádio são canções de incentivo. Aquelas que tentam dar ânimo ao time são maioria, mas também existem canções com outros objetivos: festejar, ameaçar, insultar, celebrar a própria torcida, lembrar os jogadores que a camiseta é mais importante que eles, humilhar.

Muitas vezes as coisas se misturam e, então, vemos gente que diariamente trabalha em escritórios, engravatados, cantando com seus filhos coisas como sair na porrada ou matar alguém. Mas eu não quero entrar no aspecto social da questão, senão nas músicas e emoções que ela cria.

No filme de Gilliam, a melodia de Ary Barroso é um símbolo de fuga, uma forma de sonhar acordado, e a tela se ilumina cada vez que soam seus acordes. A versão da torcida é uma canção de alento, mas não há um pedido urgente, não há grandes exigências, soa mais como uma música de fundo quando não acontece nada de interessante no jogo; é um murmúrio agradável e constante, que ainda pode servir como ferramenta de evasão se a sua vida é o suficientemente miserável.

2. Cidade Maravilhosa

Assim como a adaptação anterior mantém o espírito da canção original, há outras que a rompem em pedaços. Talvez o melhor exemplo disso seja a versão de estádio de “Annie´s song” de John Denver, mas esse é um caso tão interessante que merece ter sua própria crônica (e além do mais agora estamos falando sobre o Brasil).

Acho que foi em 1997: Javier Castrilli estava terminando sua carreira como árbitro e naquela época já não sabia se era um justiceiro que se atrevia a encarar os poderosos e/ou uma pessoa que, assim como Marcelo Bielsa ou Björk, não pertence completamente a este mundo.

Neste momento eu tinha uma namorada brasileira e a levei ao estádio para ver um jogo do Boca. Não me lembro o rival, mas lembro que o Castrilli marcou um pênalti contra o Boca faltando vinte minutos. Também não me lembro se o pênalti foi bem marcado, mas a torcida cantou.

Catrilli hijo de puta

La puta que te parió

Castrilli hijo de puta

La puta que te parió

E quando o atacante rival (é provável que tenha sido o Walter Adrián Parodi, eu me lembro do volume de seus cachos) meteu a bola na trave, o público continuou cantando contra o Castrilli e minha namorada brasileira cantou baixinho no mesmo ritmo:

Cidade Maravilhosa

Cheia de encanto mil

Cidade Maravilhosa

Coração do meu Brasil

Versão da torcida do River Plate, o que só prova que Castrilli sempre foi uma unanimidade (?)

Essa marchinha foi composta por André Filho para o carnaval de 1935. A primeira versão gravada é de Aurora Miranda, a irmã mais nova de Carmen. Rapidamente foi adotada como hino do Rio de Janeiro e foi repetida até se tornar em um cartão postal.

Não sei quantas pessoas na Argentina sabem que quando insultam um árbitro (ou pelo menos insultam os árbitros cujos sobrenomes têm duas ou três sílabas) fazem em ritmo de samba.

Uma vez, num carnaval no Rio, vi um grupo de argentinos misturar as duas versões. Uma banda tocava a marchinha na rua e os argentinos (um deles tinha uma camiseta do Huracán assinada por Fernando Quiroz) cantaram usando os versos um e três da original, e os versos dois e quatro da adaptação.

Não tinham intenção de insultar, acho. Neste momento todos nós concordávamos que o Rio era mesmo a melhor cidade do mundo.

Cidade Maravilhosa

La puta que te parió

Cidade Maravilhosa

La puta que te parió

3. Meu amigo Charlie

No primeiro quadradinho, o Charlie Brown está sentado sozinho em um banco onde caberiam três ou quatro crianças. Em seu colo, uma sacola dessas de papel pardo. O lugar se parece ao pátio de uma escola. Ele diz: “Por que não posso almoçar com essa garota ruiva? Assim seria feliz”. No segundo quadradinho, ele está em pé, ainda mais triste. Diz: “Nunca ninguém vai gostar de mim”. No terceiro e último quadradinho, começa a caminhar e diz: “A hora do almoço é a mais desoladora do dia”.

No começo dos anos setenta, Benito di Paula (Nova Friburgo, 1941) morava em Santos, em uma pensão de italianos que recebia todos os meses, diretamente da Itália, a revista Peanuts de Charles Schulz.

Ele ganhava a vida cantando canções de outros artistas em bares noturnos. Imagino a seguinte cena: Benito está almoçando na pensão e lê em italiano o quadrinho que acabei de contar (ou algum outro em que Charlie se sente muito sozinho e até seu cachorro Snoopy tira uma com sua cara); então Benito percebe que Charlie Brown precisa de um amigo, ou ao menos uma canção:

Eh, meu amigo Charlie

Eh, meu amigo

Charlie Brown, Charlie Brown

O que Benito propõe a Charlie para mitigar seu dilema existencial é algo parecido ao que José Carioca fez com o Pato Donald: mostrar as grandes maravilhas do Brasil.

Ele diz na canção: Charlie, se você quiser, eu poderia te mostrar a Bahia do Caetano, nossa boa gente, o som de Jorge Ben, nossa São Paulo, terra da garoa, Vinicius de Moraes, nosso carnaval, etc.

E o que o Charlie respondeu? A canção deixa em aberto, mas talvez não deveria ter mencionado o lance da garoa. Acho que o Charlie poderia ter se apegado a isso para desistir do convite. De todas as formas, a canção foi um sucesso mundial: vendeu quatro milhões de cópias na Europa e fez com que o quadrinho Peanuts fosse traduzido para o português (A turma do Minduim), segundo conta o autor em uma entrevista.

Uma das maravilhas que a canção cita é “A torcida do Flamengo, coisa igual não tem”. Mas não foi essa torcida que adaptou para uma canção de arquibancada, acho, mas, sim, uma torcida argentina. É difícil saber qual porque essa é uma dessas músicas que cantam quase todas.

Oh, vamos X, vamos

Oh, vamos X, vamos

Ponga huevos, que ganamos

Pode existir algumas variações nos primeiros versos: River repete “Oh, vamos Millonarios”, Boca repete “Oh, nosotros alentamos”, para a seleção se repete “Oh, Argentina vamos”. Em todos os casos se trata de uma das canções de alento mais efetivas que existe. Ela sabe se fazer sentir, empurra. É uma mensagem franca e direta que daria ânimo ao próprio Charlie Brown no seu horário de almoço.

Esta música também pode ser usada contra o rival e inclusive contra os jogadores do próprio time: o famoso “Que se vayan todos / Que no quede uno solo”, também utilizado de maneira política durante a crise de 2001.

Acabo de mandar uma mensagem ao endereço de contato que aparece na página oficial de Benito di Paula e lhe conto sobre essa crônica. Compartilho alguns links com vídeos de torcidas argentinas cantando suas versões de “Meu amigo Charlie”.

Não acho que o Benito vai me responder.

4. Ô-lê-lê, ô-lá-lá

“Aquarela do Brasil”, “Meu amigo Charlie” e a canção que eu vou citar agora estão incluídas em um remix (contém vinte e uma canções brasileiras em seis minutos e meio) chamado Disco Samba.

Costuma (ou costumava) ser utilizado nas festas de casamento no momento do trenzinho e das fantasias. Nessa hora, quando é conveniente já estar anestesiado, o argentino se permite brincar com a ideia de que tem algo de brasileiro. Então, coloca colares coloridos e máscaras com brilhantina, sacode maracas, bananas de plástico e tenta mexer os quadris de uma forma que não lhe é natural.

Este remix, chamado de “carnaval carioca”, e que para nós representa uma síntese do Brasil, é na verdade criação de um grupo belga chamado Two Man Sound. A versão completa no YouTube tem 5.406.989 visualizações, e 1.257 comentários* (nota: números que correspondem à época em que o texto foi escrito), na maioria comentários escritos por argentinos.

Na primeira música é possível ver um dos belgas (paletó branco, chapéu e bigodinho) em pé numa terraça com os braços abertos enquanto sua imagem se funde com a do Cristo Redentor.

A décima oitava canção do disco diz em seu refrão:

Ô-lê-lê, ô-lá-lá,

Pega no ganzê

Pega no ganzá

A partir de 6:15″

Ganzá é um instrumento de percussão. Ganzê não é nada, mas tinha que rimar. A mensagem é algo do tipo: pegue algum instrumento aí e comece a sambar. Originalmente foi composta por Zuzuca em 1971 para sua Festa para um rei negro, depois foi adaptada pela Salgueiro, pelos belgas e então pelas torcidas de futebol.

O Barcelona, por exemplo, usa para afirmar que são os melhores. Na Argentina tem vários usos, uma vez que a simplicidade de sua estrutura permite passar qualquer mensagem desde que se respeite a rima.

Vou citar dois empregos futebolísticos (o segundo é um futebolístico meio entre aspas, mas vou tratar disso na crônica seguinte):

O-le-le, o-la-la

X es de Racing

de Racing no se va

O-le-le, o-la-la

X se la come

Y se la da

O-le-le, o-la-la

si esto no es el pueblo

el pueblo donde está

Essa crônica é parte do livro “Canten, puntos! Historia incompleta de los cantitos de cancha” que foi publicado, na Argentina, pela editora Gourmet Musical.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2020. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SORIANO, Manuel. Esse coqueiro que dá coco I. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 3, 2022.
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