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Estádio, memória e direito à cidade: anotações em torno de um projeto de pesquisa

Ao longo da difusão e popularização do futebol no país, os estádios desempenharam um papel crucial, configurando-se como fenômeno socioespacial de múltiplas dimensões. Fenômeno esse que transborda as estruturas de concreto, se expandindo pelas vias de acesso, pelo entorno, interagindo com os atores sociais que por ali se movem, não apenas em dias de jogos (Mascarenhas, 2019), desencadeando diversas práticas socioculturais nas localidades nas quais se situam.

Nesse sentido, o projeto “Memória e cidade: estádios de futebol no Rio de Janeiro, Niterói e São Paulo (1937-1950)”, contemplado pelo edital Universal Cnpq, em execução desde março de 2022[1], vem se dedicando a reconstruir as trajetórias biográficas de praças esportivas no âmbito de uma história social e cultural. O conjunto de ações desenvolvidas tem como pressuposto que através da recuperação das memórias, narrativas e documentos sobre os estádios será possível lançar novos olhares sobre a sua inserção em um espaço-tempo futebolístico, contribuindo para uma melhor compreensão da complexa relação entre bairro-clube-cidade.

Quanto à delimitação cronológica, o período de 1937 a 1950 nos permite pensar da ditadura do Estado Novo até 1950, ano de inauguração do Estádio Mário Filho, o Maracanã, simbolizando novos projetos nacionais e internacionais no pós-ditadura brasileira. Do ponto de vista do recorte geográfico selecionamos as cidades de Niterói e São Paulo, capitais estaduais naquele período, e a do Rio de Janeiro, então capital federal. O universo de análise é composto dos seguintes estádios: no Rio de Janeiro,  José Bastos Padilha, também conhecido como estádio da  Gávea” (1938) do Clube de Regatas do Flamengo; Aniceto Moscoso ou Estádio da Rua Conselheiro Galvão do Madureira Esporte Clube (1941);  Antônio Mourão Vieira Filho, conhecido popularmente como Estádio da Rua Bariri do Olaria Atlético Club (1947);  Teixeira de Castro/ Leônidas da Silva (1947) pertencente ao Bonsucesso Futebol Clube;  Guilherme da Silveira Filho ou “Moça Bonita” do Bangu Atlético Clube (1947) e o Estádio Jornalista Mário Filho – Maracanã (1950). Em Niterói, o Caio Martins (1941) e, em São Paulo, o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido como Pacaembu (1940).

Maracanã
Foto: SimplyADLC/Depositphoto

Tendo em vista a privatização do Maracanã no Rio de Janeiro, as disputas entre o governo estadual e municipal pelo Caio Martins, em Niterói, assim como as discussões em torno da privatização do Pacaembu, em São Paulo, esperamos que a investigação em curso possa contribuir com os debates sobre os estádios como patrimônio cultural material e imaterial das cidades. Ainda que a materialidade arquitetônica se imponha como uma evidência simbólica incontestável, não se perde de vista aqui que o estádio se constitui, sobretudo, como “uma entidade que articula um conjunto extenso de relações estéticas e políticas, com variações de época e de propósitos” (Damo, 2021, p.2014).

Nessa trilha, nos importa identificar o papel dessas entidades nas respectivas localidades, em busca da trama identitária tecida nessa relação bairro-clube-cidade, e em que medida, certas referências, características e símbolos são reciprocamente acionados, valorizados, evitados ou silenciados.

Gilmar Mascarenhas, um dos grandes expoentes da Geografia dos Esportes no Brasil, cujos escritos inspiraram a elaboração desse projeto de pesquisa e a quem dedicamos esse texto, assinalou com muita sagacidade, a importância de se reconhecer o estádio de futebol como espaço-tempo da vida coletiva, microcosmo da reprodução social da cidade, “momento e lugar da realização de parcela da vida urbana” (Mascarenhas, 2013. p. 145).

No processo de popularização do futebol no Brasil, o Pacaembu, em São Paulo, inaugurado em 1940, superou em público o São Januário, de propriedade do Vasco da Gama, construído no Rio de Janeiro, em 1927.  Como maior estádio do país, com capacidade para acolher 70 mil pessoas, o Pacaembu inaugurou uma longa tradição de estádios estatais (na qual o Caio Martins e o Maracanã se inserem). Essa peculiaridade revela uma estratégia de regulação social e de controle das massas urbanas (Mascarenhas, 2017) que se intensificou durante o regime militar pós-1964 com a proliferação de grandes estádios pelo país, particularmente no período de 1970 a 1978 (Malaia; Fortes, 2021).

Pacaembu
Fachada clássica do Estádio do Pacaembu. Fonte: Piqsels

 

Contudo, em um contexto de controle e cerceamento dos direitos político-partidários, as classes populares encontraram nesses espaços rústicos de cimento autonomia para expressar emoções, inventar e experienciar práticas corporais e ritualizações, constituindo e desfrutando de redes de sociabilidade em torno do clube do futebol.  Desse modo, o estádio popular emerge como espaço de festa, de encontro, uma forma de fazer a cidade, e de ter direito à mesma (Mascarenhas, 2013), ao mobilizar paixões e utopias de uma cidade menos segregada. Trata-se de um lugar de aprendizagens coletivamente partilhadas, e no qual são encenadas e tensionadas relações de gênero, geracionais, padrões de masculinidade e de feminilidade, visões de mundo e ideologias (Teixeira, 2004). Espaço no qual “o jogar e o torcer se encontram, razão pela qual pressupõem cosmologias, suscitam emoções e geram disputas”. (Damo, 2021, p.214-215). Se o estádio é o espaço da festa, é também o da rivalidade torcedora, de disputas de significados e pertencimentos. A cultura material fornece, assim, um poderoso enquadramento para a experiência, organizando as lembranças, conferindo sentido aos acontecimentos vividos pessoalmente, e aqueles “vividos por tabela”, ou seja, dos quais se ouviu falar através dos relatos da coletividade da qual se sente parte (Pollak, 1992, p.201).

 O estádio-entidade, nessa acepção, não é neutro, nem passivo, mas dotado de agência, na sua capacidade de produzir subjetividades, configurando-se como uma estrutura material-simbólica importante na construção de diversos momentos da vida individual e coletiva, no modo como percebemos nossas relações com os outros, tendo poder de evocar memórias (Teixeira, 2004). Fala, portanto, de transitoriedade e permanência, se situando em meio a batalhas de narrativas sobre episódios e a atuação de certos personagens.

Sem dúvida, uma face do chamado processo de elitização, com a reforma de antigos estádios e a construção de arenas multiuso, que se desencadeou a partir dos anos 2000, e se intensificou nos anos que antecederam a Copa do Mundo de 2014, marca uma brutal transformação física, funcional e simbólica, conforme atestam os casos do Pacaembu e do Maracanã.  Por isso mesmo, conhecer as biografias das arquibancadas que ficaram à margem da chamada arenização, guardando, assim, marcas e características de um outro modelo de praça esportiva impulsiona a presente pesquisa, tanto quanto esquadrinhar motivações e condições que levaram à construção/destruição de certos estádios. Compreender os significados de certos eventos e episódios que ali se desenrolaram, para além daqueles propriamente esportivos, usos e funções assumidos em certas conjunturas são questões que também mobilizam esta jornada de investigações. 

Podemos citar como exemplos o Caio Martins, transformado em cárcere durante a ditadura militar (Knauss e Maia, 2014), ou ainda o Pacaembu e o Maracanã, dentre outros, que funcionaram como hospitais de campanha na luta contra o coronavírus. Nas nossas peregrinações pelas cidades, por arquibancadas de cimento, ou estádios reformados (e, em alguns casos, melhor dizer, mutilados) em nome da modernização e segurança, as ideias de Gilmar Mascarenhas continuam reverberando com força: “lugar do vivido, preenchido por paixões e locuções, o estádio não se cala. E assim o jogo continua, na disputa pelo sentido do estádio, que sinaliza, de alguma forma, a luta pelo sentido da cidade”. (Mascarenhas, 2013, p.166).

Referências

DAMO, Arlei S. “Dos grounds às arenas – as quatro gerações de estádios brasileiros em perspectiva antropológica”. Museologia e Patrimônio – Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – Unirio | MAST – vol.14, no1, 2021.p.212-246.

KNAUS, P.; MAIA, E. “Niterói, 1964 – Memórias da prisão esquecida: A operação limpeza e o cárcere político do Caio Martins”.  Acervo. Rio de Janeiro, v. 27, Nº 1, p. 99-120, jan./jun. 2014. p.99-120.

MALAIA, João Manuel Casquinha; FORTES, Rafael. ‘Brasil-grande, estádios gigantescos’: toponímia dos estádios públicos da ditadura civil-militar brasileira e os discursos de reconciliação, 1964-1985. Dossiê – Lugares de memória e de consciência na América Latina. Tempo 27 (1) • Jan-Apr 2021. p. 166-183.

MASCARENHAS, Gilmar. “O direito ao estádio”. Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 12, 2019.

MASCARENHAS, Gilmar. “Um jogo decisivo, mas que não termina: a disputa pelo sentido da cidade nos estádios de futebol”. Cidades, vo. 10. n.17. 2013. p.142-170.

POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

TEIXEIRA, Rosana da Câmara. Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas. São Paulo: Annablume, 2004.


Notas

[1] Coordenado por Lívia Gonçalves Magalhães (UFF), o projeto conta com a participação dos pesquisadores: Leda Maria da Costa (UERJ); Felipe Tavares Paes Lopes (Unicamp), Jimmy Medeiros (FGV); Renato Coutinho (UFF); Rosana da Câmara Teixeira (UFF) e Sérgio Settani Giglio (Unicamp).

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Lívia Gonçalves Magalhães

Vascaína, parte da imensa torcida bem feliz. Professora de História no Instituto de História da UFF. Autora dos livros História do Futebol (Apesp) e Com a taça nas mãos (Lamparina/Faperj); organizadora de Lugar de Mulher (Oficina Raquel) e com Rosana da Câmera Teixeira Futebol na sala de aula (Eduff). Apaixonada por literatura, futebol e cultura popular latino-americana.

Rosana da Camara Teixeira

Antropóloga. Mestrado e Doutorado PPGSA-UFRJ. Pós-doutorado no Museu Nacional-UFRJ. Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora da Laboratório de Educação e Patrimônio Cultural (Laboep-UFF). Editora da Revista Esporte e Sociedade (UFF). Autora do livro: “Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas” (Annablume, 2004). Coorganizadora do “Futebol na sala de aula: jogadas, dribles, passes, esquemas táticos e atuações para o ensino de Ciências Sociais e de História” (EDUFF, 2021) e do “Nada do Flamengo, tudo pelo Flamengo. Memórias da Torcida Jovem do Flamengo” (1960-1990). (UFRJ-Faperj, 2022).

Como citar

MAGALHãES, Lívia Gonçalves; TEIXEIRA, Rosana da Câmara. Estádio, memória e direito à cidade: anotações em torno de um projeto de pesquisa. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 24, 2024.
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