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Estranha mania de ter fé na vida

Daniel Camargos 4 de agosto de 2019

Jogadores do União São Bento, time de Bento Rodrigues, distrito devastado pela lama da Samarco em Mariana (MG), perderam lar, empregos e até família, mas seguem fazendo do futebol um momento de congregação e alívio.

O União São Bento resistiu à lama. Ilustração de Henrique Pulz sobre fotos de Pedro Castro.

O lateral-direito Marcelo José Felício, 31 anos, abaixa a cabeça, joga a bola para frente e dispara em direção à área adversária. Quando o zagueiro se aproxima ele toca para o centroavante Gilberto, posicionado na meia-lua. Recebe de volta e fica cara a cara com goleiro, mas a perna pesa. Marcelo chuta para fora e perde a chance de fazer o quarto gol do União São Bento ante o Juventude.

A partida amistosa está 3 a 1 e aos 13 minutos do segundo tempo os jogadores não disfarçam o cansaço. A fadiga é tanta no campo do Marianense, no bairro Santana, em Mariana, na região central de Minas Gerais, que os dois tempos são de apenas 30 minutos.

Exausto após o fim do jogo, Marcelo senta à beira do gramado, tira a camisa verde escura do União São Bento e revela a tatuagem na nuca: “Mãe Saudades Eterna”. A frase é cercada pelos desenhos de uma coroa e uma estrela, mais as datas de nascimento e morte de Maria das Graças da Silva, a Gracita, 64 anos, soterrada pela lama de rejeitos de minério de ferro da mineradora Samarco, no dia 5 de novembro do ano passado.

Nas partidas do União São Bento, Marcelo e seus companheiros de time, de infância e de vida buscam forças para seguir adiante. É domingo, 5 de junho de 2016, sete meses após o rompimento da barragem.

“Sinto falta dela todo dia. Lembro mais quando eu como as comidas que ela gostava. Salada de alface e tomate, frango frito, macarronada”, lista Marcelo, auxiliar de topografia em uma firma que presta serviços para a Samarco. Macarronada era o prato típico de domingo, que a mãe preparava e ele comia, faminto, após os jogos do São Bento, onde atua desde os 14 anos.

A mãe de Marcelo foi uma das 19 vítimas do maior desastre sócio-ambiental da história do Brasil. Uma série de falhas da Samarco, controlada pelas gigantes Vale e BHP Billiton, somada à fiscalização frouxa dos órgãos governamentais — conforme apontam os inquéritos da Polícia Federal e dos ministérios públicos federal e estadual — provocou o rompimento da barragem de Fundão. A lama encerrou a vida de duas crianças, quinze adultos, duas senhoras e um senhor, aniquilou o ecossistema do rio Doce e levou estragos até o oceano Atlântico, interrompendo o abastecimento de água de dezenas de cidades e provocando o caos na vida de pescadores, agricultores e índios Krenak, todos dependentes do rio.

Foto: Pedro Castro.

São 12h27. O sol é abrasador em Mariana. Nas cidades mineiras cercadas de montanhas os dias de outono são quentes e secos. As noites e manhãs são frias. O campo do União São Bento não existe mais. Ficava na parte baixa do subdistrito de Bento Rodrigues, próximo ao curso d’água do Gualaxo do Norte. A lama de rejeitos de minério de ferro chegou a uma altura de até 15 metros, arrastou casas, soterrou a escola, a igreja, o posto de saúde e a história dos 600 habitantes do simpático lugarejo.

O campo do União São Bento Futebol Clube acabou, assim como o Bar da Sandra, onde os atletas bebiam cerveja e jogavam truco após as partidas, mas a alma do São Bento é imortal. As partidas da equipe são disputadas em local alugado pela Samarco e hoje ocorrem no campo do Marianense Futebol Clube, time tradicional de Mariana, fundado em 1912.

Um campo simples, sem arquibancadas, vestiários e nenhum tipo de conforto, mas propício ao amistoso entre São Bento e Juventude. O gramado exibe diferentes espécies de grama, que chegam a formar touceiras. Nada que atrapalhe as tabelas entre o centroavante Gilberto e o esperto Jardel, o craque do time.

Foto: Pedro Castro.

Aos 19 anos, brincos de esfera brilhante nas duas orelhas, boné azul disposto de forma preguiçosa na cabeça e chuteiras amarelas na mão, Jardel de Souza chega para a partida. Desde que a barragem rompeu ele não trabalhou mais. Antes, atuava como ajudante de pedreiro. “Está ruim demais para conseguir emprego”, lamenta.

A primeira chance surge aos 18 minutos, quando Jardel recebe um passe de Gilberto — um pivô clássico –, mas tenta driblar o goleiro e se enrosca com a bola. O repertório do camisa 21 é vasto. Passa o pé por cima da pelota, toca de letra, puxa para dentro e arrisca com as duas pernas. “Ele é bom de bola. Só que é mascarado demais”, afirma um dos dois técnicos do São Bento, Onézio Souza, 52 anos, que é pai de Jardel.

Onézio lembra com saudade do campo do São Bento bem próximo — cerca de 200 metros — da casa onde vivia. Recorda do gramado certinho, do alambrado e conta com orgulho que os adversários preferiam ir jogar em Bento (como todos se referem a Bento Rodrigues), por causa da qualidade da cancha. Além, é claro, de ser de graça. Ninguém precisava pagar aluguel para jogar. Era só levar a bola, reunir os jogadores e iniciar a partida.

O treinador trabalha como mecânico em uma empresa de ônibus que transporta funcionários para as mineradoras da região, Samarco e Vale. No dia do rompimento da barragem estava no trabalho, em Mariana — a sede do município fica distante 22 quilômetros de Bento Rodrigues –, quando soube da notícia. Subiu na moto e saiu em disparada. Quando chegou lá viu tudo coberto pela lama. “Pensei que todo mundo tinha morrido”. Minutos depois recebeu a notícia que a família havia escapado e estava na parte alta de Bento.

No dia seguinte, de madrugada, embrenhou mato adentro até chegar ao local onde estava a família. O primeiro que viu foi o filho, Jardel. “Foi uma felicidade imensa saber que minha família e o pessoal tinha escapado. Eu só chorava”, recorda Onézio.

Torcedor fanático do Atlético-MG, Onézio tinha uma coleção de mais 70 camisas oficiais do Galo. Todas foram perdidas na lama. Questionado sobre o que salvaria se pudesse chegar antes da lama não titubeia sobre as camisas, mas diz que não deixaria para trás o cachorro, o Jason, que morreu soterrado.

Com doações, Onézio já recuperou quase toda a coleção. Algumas, aliás, de maneira especial. Em novembro, ao saber do drama do atleticano, o lateral-direito Marcos Rocha foi até Mariana e o presenteou com uma camisa autografada. A ação teve direito a reportagem de uma emissora de televisão de Belo Horizonte.

Foto: Pedro Castro.

Onézio é o tipo de treinador que dá dura. Prega o tempo todo o toque de bola e fica uma fera quando algum jogador dá um chutão ou insiste em dribles desnecessários. Um adepto da escola de Pep Guardiola iniciada no Barcelona. O time catalão, aliás, inspira o escudo do São Bento. Para o treinador, que atuou com zagueiro “firme, sem firula”, o exemplo de jogador é o camisa 10 do time, José da Paixão, ou melhor: Dedeco. “Quem dera se todos jogassem igual o Dedeco”, conjectura.

Aos 44 anos, Dedeco é o mais velho em campo e titular absoluto. Não fica para trás dos novatos, tem um domínio de bola limpo e joga de cabeça em pé, distribuindo o jogo com consciência. Se o União São Bento tem o escudo e o estilo inspirado no Barcelona, provavelmente Iniesta imitou o estilo de jogo de Dedeco.

Pai de cinco filhos, ele trabalha como lavador de uma empresa terceirizada da Samarco e de outras mineradoras. Retira o pó abrasivo de minério de ferro dos caminhões, máquinas e carros das empresas. Faz sete meses que foi obrigado a morar em Mariana, em uma casa no bairro Colina, após o lar que construiu para a família ter sido soterrado. Não se adapta à rotina considerada por ele de “cidade grande”. Mariana tem quase 60 mil habitantes, 100 vezes a população de Bento Rodrigues. “Estou acostumado na roça. Aqui tem movimento demais. Toda hora é carro, ônibus, moto passando”, compara.

Dedeco sente falta da horta e do pomar, com pés de laranja, mexerica, amora e uva. “Mas sinto falta mesmo é da paz”, resume. Quase no fim do primeiro tempo ele recebe um lançamento forte. Domina com facilidade, faz duas embaixadinhas para acalmar a bola e rola para Rafael Douglas de Assis, o Russo, seu companheiro de meio-campo.

Russo, de 26 anos, é motorista de caminhão, mas com a paralisação das atividades da Samarco, as empreiteiras contratadas pela mineradora dispensaram os funcionários e ele perdeu o emprego. Após o rompimento da barragem chegou a trabalhar temporariamente como motorista transportando cascalho, contratado para as ações emergenciais da mineradora. Atualmente presta serviços para a Samarco construindo cercas. “Não é minha profissão, mas é o que tem para fazer”, resigna-se.

Russo marcou o segundo gol da partida, aos 20 minutos do primeiro tempo. A reportagem não viu o lance, pois estava entretida em uma conversa com o treinador Onézio sobre qual zagueiro jogou mais: Luizinho ou Caçapa. Onézio tende a defender Caçapa, no que é contestado pelo repórter.

Clayton Jacson de Souza é um zagueiro clássico, joga com a camisa 3 e pode ser comparado a Luizinho, porém a forma física não ajuda e ainda no primeiro tempo pede para ser substituído. “Ressaca. Tomei umas a mais ontem no aniversário de um colega”, explica. Russo, que contou ser polivalente para trabalhar, também é um curinga em campo e é deslocado para zaga.

Do lado de fora, depois de beber quase um litro de água, Clayton, 25 anos, conta que vivia com a esposa e as duas filhas, de cinco anos e de um ano e oito meses, em Bento Rodrigues. Trabalha na mineração da Samarco e quando soube do rompimento da barragem ficou apavorado. “Só fui ver minha família no dia seguinte”, recorda.

No segundo tempo ele retorna ao jogo e protagoniza uma belíssima jogada. Com a bola rente ao chão, dá um leve toquinho, levanta a pelota e aplica um chapéu perfeito no atacante do Juventude. Depois da jogada passa a bola e ainda debocha da vítima.

O companheiro de zaga de Clayton é Cristiano José Sales, de 33 anos, o capitão do time. Tiano, como é chamado por todos, trabalha na mesma empresa de ônibus do treinador Onézio. Cuida da logística, mas quando algum motorista falta ou folga ele transporta os funcionários das mineradoras.

Tiano é separado e lembra que o filho Lucas, de quatro anos, que mora com a mãe em Mariana, soube do rompimento da barragem pela televisão. “Ele viu um carro vermelho na lama e pensou que era meu carro. Falou com a mãe dele que eu tinha morrido”, recorda. “Liguei para ele, mas ele não acreditava que eu estivesse vivo. Só quando cheguei lá e abracei ele acreditou”, completa.

Bem articulado, Tiano toca em pontos que afligem os moradores de Bento Rodrigues que vivem em Mariana. O primeiro é o preconceito. “Nós aqui somos estrangeiros. As pessoas não tratam a gente como iguais e isso atinge muito”, revela. Segundo ele, os marianenses — moradores da sede do município — reclamam que “tudo agora é para o pessoal do Bento” e pior: atribuem a eles a culpa pelo fechamento da Samarco. São vítimas duas vezes: do rompimento da barragem e do preconceito.

A empresa é a principal fonte de arrecadação do município, que depende dos impostos advindos da exploração do minério de ferro. Sem a Samarco funcionar toda a rede de empregos indiretos também é afetada. O restaurante que fornece marmitas, os hotéis, as empreiteiras, enfim, o desemprego assola os marianenses e, assim, buscam-se culpados.

O capitão do São Bento quer que a nova Bento Rodrigues seja construída rapidamente para que a comunidade volte a se reunir e viver a vida que levava. Em maio, os moradores escolheram o local: um terreno pertencente à siderúrgica Arcelor Mittal, chamado Lavoura, recebeu o voto de 206 das 223 famílias. A área tem 100 hectares e fica distante 12 quilômetros do Centro de Mariana e a 10 de Bento Rodrigues.

Foto: Pedro Castro.

Quem também está ansioso para a construção da nova Bento Rodrigues é o centroavante Gilberto Pereira, 33 anos, o Beto. “Dia de domingo é o dia que pesa mais. Jogávamos bola e depois reuníamos no Bar da Sandra. Jogar até jogamos, mas não é a mesma coisa. Não tem aquela coisa de comunidade”, explica o atacante, que perdeu o emprego como operador de perfuratriz e também atua improvisado, como Russo, fazendo cercas para a Samarco.

Beto tomou um copo de Coca-Cola antes do jogo e no intervalo aproveitou para fumar. Esguio, é o típico pivô, que tabela com os meias e pontas e não desperdiça as oportunidades. O terceiro gol foi dele, ao cabecear uma bola dividida com o goleiro Breno.

O adversário no amistoso, o Juventude, chegou desfalcado, e o time foi enxertado pelos reservas do São Bento, o que atrasou o início da partida, marcada para as 10h e iniciada às 11h10. “O pessoal deve ter invernado na cachaça e não apareceu”, explicou o técnico do Juventude Adilson Antônio Domingues, 40 anos, mas que todos chamam de Burrinho. “Posso te chamar de Burrinho?”, questiona o repórter. “Fazer o quê? Todo mundo me chama assim”, resigna-se.

Foto: Pedro Castro.

Adilson, ou Burrinho, foi obrigado a jogar quase todo o tempo, o que deixou o time do Juventude sem orientação. Algumas vezes Onézio dava uns conselhos aos atletas adversários. O técnico também trocou de lado o goleiro titular, Breno Augusto Henrique, 19 anos. Jogou o primeiro tempo pelo São Bento e o segundo defendendo a meta do Juventude.

Breno está desempregado desde que a barragem rompeu. Trabalhava como auxiliar de serviços gerais e ainda não conseguiu um emprego. O goleiro deseja a volta das atividades da Samarco, pois acredita que assim novas oportunidades de emprego surgirão. “Como ela (a mineradora) vai conseguir pagar todo mundo se não está produzindo?”, pergunta. O goleiro mostrou que tem muita disposição. Quando a bola foi chutada para fora do campo não hesitou em pular o portão e fazer as vezes de gandula.

O lateral-esquerdo Ravane Augusto da Silva, 23 anos, também está desempregado. Ele ainda não conseguiu trabalho como pintor de parede e sobrevive com a esposa e com a filha, de um ano, graças à indenização mensal de um salário mínimo paga pela Samarco com acréscimo de 20% por dependente, valor pago para todas as famílias de Bento Rodrigues. “A vida aqui é meio perturbada. O custo de vida é caro, só consigo dormir tarde da noite por causa do barulho dos carros”, reclama Ravane, que também aguarda ansioso pelo início da construção da nova Bento.

A vida, porém, não é só tristeza e lamentações. Mesmo vítimas de um desastre, sem emprego, vivendo fora de casa e, pior, sem o senso de comunidade que cultivavam, os jogadores mantêm o sorriso. No Skina bar, em frente ao campo do Marianense, a alegria toma conta do ambiente, enquanto bebem cerveja, jogam truco e comentam os lances da partida.

O distrito de Bento Rodrigues foi fundado no século 18 pelo bandeirante português que dá nome ao local. Já o União São Bento existe desde maio de 1950 e no início da década de 2000 ficou alguns anos com as atividades paralisadas. “Este mês (julho) completa três anos que as atividades voltaram”, detalha o presidente do União São Bento Futebol Clube, Anderson Januário, 28 anos, que divide o comando técnico com Onézio, mas que atuou como árbitro no confronto contra o Juventude.

O objetivo atual do São Bento é se estruturar para chegar a disputar a Liga Esportiva de Mariana (Lema), o campeonato municipal formado por dez times. Anderson, ou Tião, como é conhecido, reclama da quantidade de gols perdidos e diz que essa é uma tradição do São Bento. “Todo jogo criamos um monte de oportunidades, mas não marcamos o gol”, reclama.

Foto: Pedro Castro.

A cerveja começa a fazer efeito e o ambiente fica descontraído. Do lado de fora, um Fuscão preto estacionado em frente ao bar confere um ar bucólico ao início da tarde de domingo. A música alta de Jorge e Mateus se mistura à conversa. O 5 de novembro — dia do rompimento da barragem — é deixado de lado. Os jogadores preferem lembrar de outra data: 28 de fevereiro. Nesse dia, o União São Bento disputou a preliminar do jogo Cruzeiro x América pelo Campeonato Mineiro, contra o time de Paracatu de Baixo (outro distrito de Mariana devastado pela lama). Venceu por 2 a 1. Nos celulares de cada um estão imagens e vídeos da viagem até o Mineirão, do estádio, do vestiário e das cenas alegres depois de um período de muita tristeza.

O capitão Cristiano mostra orgulhoso um vídeo do time rezando abraçado no vestiário do Gigante da Pampulha. Enquanto segura o celular é possível ler no antebraço esquerdo dele a tatuagem: “Deus é pai”.


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2016, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Camargos

Daniel Camargos é jornalista e atualmente trabalha como repórter investigativo na Repórter Brasil. Trabalhou nos jornais Folha de São Paulo, Estado de Minas e O Tempo. Publicou em veículos internacionais (The Guardian, BBC, Al Jazeera e Vice) e nacionais (Revista Piauí, Estado de São Paulo, Carta Capital, Caros Amigos, Brasil de Fato e Puntero Izquierdo).

Como citar

CAMARGOS, Daniel. Estranha mania de ter fé na vida. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 4, 2019.
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