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1974/2024: a solitária revolução portuguesa e lampejos sobre o futebol

Fabio Perina 24 de abril de 2024

Esse texto emerge à luz da comemoração dos 50 anos da histórica Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 como um bom “pretexto” para tratar de um tema que habitualmente não pesquiso nem tampouco escrevo: o futebol português e questões sociais a ele relacionadas. Isso como breves menções a outros países e até outros continentes relacionados.

Revolução dos Cravos
Revolução dos Cravos, em Lisboa. Fonte: Wikipedia

Em linhas muito gerais sobre esse grande acontecimento, Valerio Arcary fornece uma síntese taxativa que as revoluções tardias tendem a ser justamente as revoluções mais radicais. Pois a onda revolucionária que em 1968 irradiou de Paris e contagiou os dois lados do Atlântico acabou tendo um efeito inócuo sob um país que padecia por décadas de uma ditadura salazarista. Ao se apoiar numa chave de leitura que vincula a dimensão interna à externa, o historiador marxista aponta que somente em 1974 as lutas anticoloniais irradiaram na África e finalmente abalaram a metrópole Lisboa com cerca de duas décadas de atraso ocorreu com as metrópoles Londres e Paris. Justamente pela revolta de militares abrir um ciclo de jornadas populares cada vez mais intensas durante um ano e meio de setores sociais cada vez mais amplo. Como lampejos conceituais, o pesquisador avalia que essa rápida revolução liberal-democrática derrubou o regime salazarista, mas se tornou incompleta ao não conseguir evoluir a revolução socialista que derrubasse a propriedade privada, devido ao isolamento dos demais marxistas europeus e sobretudo dos vizinhos espanhóis (quem também padeciam por décadas de uma ditadura análoga pelo regime franquista). O que ele conclui por ter se tornado uma revolução solitária em seus quase dois anos cheios de esperança.

O futebol português também foi marcado por conquistas solitárias de seus clubes com pouco fôlego a evoluir para conquistas da seleção. Vide o lendário Benfica do moçambicano Eusébio, bi-campeão europeu de 61 e 62, quem depois deu a base para a histórica semifinal mundialista de 66 na Inglaterra. De lá para cá sequer conseguir repetir semifinais em competições europeias foi algo raro aos clubes europeus. Sendo que os títulos do Porto entre 87 e 2004, respectivamente com os brasileiros Casagrande e Deco (assim como o ídolo Jardel no final dos anos 90), representam bem que o novo ciclo de evolução da seleção portuguesa também foi não apenas tardio, mas sobretudo a passos solitários. Chegando ao ponto de maior maturidade entre 2004 e 2006 sob a liderança do treinador brasileiro Luis Felipe Scolari, recém penta-campeão pela seleção brasileira em 2002. Contando com ótima geração forjada em vitórias épicas contra os ingleses (nos pênaltis) e os holandeses nas respectivas Eurocopa e Copa do Mundo de cada ano. Além do jovem Cristiano Ronaldo, contava com o decisivo goleiro Ricardo, os veteranos meias Deco e Figo e centroavante Pauleta. Porém, a surpreendente campanha como sede da Euro em 2004 acabou interrompida pela derrota para a ainda mais surpreendente Grécia. Ainda com a derrota, o legado que ficou para o país foi de fortalecimento do mercado de futebol em geral com várias sedes de finais europeias entre clubes nos últimos anos e para os clubes portugueses foi de diversas finais de Europa League como prova de consolidação de um mercado de transferências de talentos sul-americanos e africanos como passagem para ligas europeias mais sólidas.

euro 2004
Portugal x Grécia, final da Euro 2004. Fonte: Wikipedia

A história geral de Portugal na Eurocopa colocaria como seu maior rival não a Espanha como esperado, mas a França. Pois nas primeiras participações em semifinais em 1984 e 2000 os portugueses foram derrotados pelos franceses (que depois seriam campeões), respectivamente, por Platini e Zidane. Enquanto por ironia do destino somente em 2016 que Portugal finalmente encontrou sua redenção ao derrotar o adversário “tricolor” em pleno Parque dos Príncipes de Paris com gol histórico de Eder na prorrogação após lesão de Cristiano Ronaldo (aliás o maior artilheiro da história do torneio) nos minutos iniciais. Felizmente um acontecimento que marcou uma outra conquista muito significativa de um atacante negro marcar um gol decisivo justamente entre as duas seleções finalistas das que mais possuem jogadores descendentes de imigrantes, justamente na contra-corrente da tendência geral de ascensão da extrema-direita xenofóbica nos principais países europeus.

Conquista que representa o primeiro e único título profissional de sua seleção, ele também emerge como “pretexto” para uma breve menção dos vínculos sociedade e política de uma década e meia para cá. Após a brutal crise econômica mundial de 2008 e seus brutais impactos políticos e sociais nas frágeis economias mediterrâneas como Grécia, Espanha e, claro, Portugal. Casos específicos que tiveram como movimento geral em comum insurreições populares em massa nesses países (bastante influenciadas por países do norte da África a partir de 2011) como profunda crítica à democracia liberal representativa bi-partidária entre centro-direita e centro-esquerda. (Obs: na mesma época da folclórica equipe da Portuguesa conhecida como “barcelusa” que fez sucesso no acesso da série B para a A e lá permaneceu dois anos). O legado político imediato foi nos países ibéricos foi de sólidos movimentos de renovação da esquerda, respectivamente Podemos e Geração à Rasca, como bastiões temporários e solidários contra a ascensão de extrema-direita tão notória em economias centrais como França e Alemanha com notória xenofobia. Contudo, o legado político mais recente dos últimos meses nas últimas eleições legislativas inverteu a situação: agora é o progressismo espanhol de Pedro Sanchez que resiste como bastião solitário (embora os casos de racismo no futebol espanhol persistam endêmicos vide o brasileiro Vini Jr. como recorrente vítima), enquanto um escândalo de corrupção levou à renúncia do português Antonio Costa e rapidamente essa brecha de fraqueza da esquerda foi aproveitada pela extrema direita nas últimas semanas. Como profunda ironia, foi descrito que a xenofobia contra a migração em massa de brasileiros para lá nos últimos anos foi capitalizada politicamente por tal movimento, inclusive por próprios brasileiros! Fenômeno que nos últimos meses vem recebendo bastante repercussão na mídia brasileira através de frequentes casos de discriminação, racismo e xenofobia tão visíveis na sociedade dos dois lados do Atlântico que não poderiam deixar de estar também visíveis no futebol.

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. 1974/2024: a solitária revolução portuguesa e lampejos sobre o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 26, 2024.
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