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Eu não vi Maradona jogar

Crisneive Silveira 3 de dezembro de 2020
Foto: Reprodução Twitter

Minha primeira lembrança futebolística é da Copa de 1994, nos Estados Unidos. A vitória suada contra a Holanda, a final emocionante diante da Itália… Quase consigo sentir outra vez o coração acelerado de menina. Eu não vi Maradona jogar, mesmo ele estando naquele Mundial. Ou talvez a memória infantil tenha arrancado de mim esse pedaço do enredo. Já o conheci lenda, pelas histórias e dribles multiplicados pela televisão e, depois, na internet. Por isso, lamentar a morte do eterno camisa 10 argentino, ocorrida na última quarta-feira (25).

Diego Armando Maradona era um jogador divino e um homem comum. Aos 60 anos, uma parada cardiorrespiratória o fez deixar o baile na terra gramada para cumprimentar Deus no céu. O velório na Casa Rosada, palácio presidencial em Buenos Aires, recebeu o meia-atacante vitorioso. O sepultamento, no cemitério de Bella Vista, na periferia, acolheu o descanso do homem ao lado dos pais, Don Diego e Dona Tota. A dor mobilizou quase um milhão de hermanos: torcedores, rivais, gente comum. Apaixonados e gratos por tantas alegrias em campo. O choro, a devoção, as declarações passionais marcam o tango mais triste do país.

Na última semana, noticiários e programas esportivos repercutiram o clamor que se repetiu país afora. O Rei Pelé escreveu: “Já se passaram sete dias desde que você partiu. Muitas pessoas adoravam nos comparar durante toda a vida. Você foi um gênio que encantou o mundo. Um mágico com a bola nos pés. Uma verdadeira lenda. Mas acima disso tudo, para mim, você sempre será um grande amigo, com um coração maior ainda.” O Napoli, clube italiano onde o canhoto foi multicampeão, rebatizou o estádio com o nome do craque. Seleção de rugby da Nova Zelândia, os All Blacks fizeram homenagem com haka e entregaram uma blusa com o nome dele aos adversários latinos, em torneio na Austrália. Na Síria, muros arruinados pela guerra ganharam os contornos do rosto e dos longos cabelos de quem carregava esperança no toque de bola.

No La Bombonera, casa do Boca Juniors, clube de coração e onde o meia-atacante ganhou projeção rumo a Europa, apenas a luz do camarote dele acesa, no intervalo da partida contra o Newell’s Old Boys. Lá, estava Dalma, uma das filhas dele. Após um gol na vitória por 2 a 0, atletas do Azul y Oro foram em direção a ela, estenderam a camisa do pai e aplaudiram. No Espanhol, ao marcar o quarto tento da goleada contra o Osasuna, Messi sacou o uniforme do Barcelona revelando o manto preto e vermelho do NOB, time pelo qual torce e onde o ídolo também atuou. Aliás, logo vestiu as cores do clube catalão. Por lá, além das glórias e lesões, o contato com a fama, álcool e drogas.

Vestindo a albiceleste, conquistou o Mundial de 1986, no México. Mas o desafio mais importante foi diante da Inglaterra, no Estádio Azteca, nas quartas de final. Por causa da Guerra das Malvinas, a rivalidade histórica entre os países tornaram o duelo um marco. Especialmente aos sul-americanos, ansiosos pela chance de experimentar uma revanche da batalha sangrenta, mesmo dentro das quatro linhas. E, outra vez, o 10 assumiu o protagonismo. Dieguito marcou os dois gols da vitória da Seleção Argentina, que se tornaram também os mais emblemáticos da carreira. Ali, nasceu o conhecido A Mão de Deus, o “milagroso” gol de mão. Minutos depois, num serpenteio poético, o baixinho ultrapassou cinco ingleses, rasgou as redes e ampliou o marcador. Tal vitória por 2 a 1 já valia como título. Carregou a taça nas costas, mas aquele mundo era pesado.

Talvez por tantas polêmicas, “El Pibe de Oro” temia não ser amado. Longe de ser exemplo como pessoa, o futebol era a catarse de reconciliação consigo e com quem amava. O jogador, o torcedor, o técnico, o pai, o filho, o marido, o apresentador, o argentino se completavam nas contradições, fraquezas, alegrias e sentimentos. De longe, através das telas – da tv e da internet, testemunhei esse humano à sombra da estrela do futebol, já distante dos gramados. A agilidade nos dribles se repetia nas declarações sobre a vida, política, família, futebol… Companhia inseparável, a bola se reivindicava parte do corpo, responsável por dar forma a criatividade dos pés. Numa entrevista a si mesmo, revelou querer na lápide os dizeres: “Gracias a la pelota”.

Eufórico e vibrante em campo, há uma semana D10S atravessou as ruas da terra natal em silêncio. Descansou da vida, das dores sofridas e causadas, ciente das alegrias intermináveis deixadas a seu povo e aos fãs espalhados pelo globo. Crianças, jovens, adultos, mulheres, homens, idosos lotaram as ruas e, mais uma vez, foram vê-lo passar. É como se todas as gerações tivessem visto Diego jogar. E vimos. E assim seguiremos. O talento dele atravessa gerações, como chegou a minha. Está presente nas memórias dos antigos, nos arquivos de jornais, e vai continuar em cada futuro esportista e admirador do esporte.

A narrativa do talento é infinita. Até quem nunca o viu, sabe: Maradona não morreu. Ele é o fio da história que constrói o futebol atrevido, imprevisível e até milagroso… É a personalidade forte no imaginário de cada drible visto ontem, hoje e para sempre.

Veja abaixo outras homenagens a Maradona: 

 

 

 

SYRIA-CONFLICT-ARGENTINA-FBL-MARADONA.. Syrian painter Aziz Asmar stands by a drawing on the wall of a destroyed home…

Publicado por Muhammad Najdat Haj Kadour em Quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 

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Crisneive Silveira

Gosto do futebol jogado e do futebol vivido. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Como citar

SILVEIRA, Crisneive. Eu não vi Maradona jogar. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 7, 2020.
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