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Nápoles entre a glória de um Scudetto e a inconveniência do turismo de massa

Mariana Vantine de Lara Villela 12 de outubro de 2023

O sucesso literário de Elena Ferrante, Julia Roberts protagonizando o prazer de comer uma autêntica pizza napolitana, o fenômeno da série televisiva Gomorra, entre outros sets ambientados na cidade partenopea[1], certamente vieram a despertar um interesse crescente em Nápoles. Durante a última temporada do campeonato italiano, assistimos a uma envolvente campanha do SSC Napoli, que veio a conquistar o título após 33 anos. Feito que, contribuiu para uma atenção ainda maior voltada a cidade, e trouxe uma enxurrada de fotos e vídeos nas redes sociais retratando a paixão pelo time e o futebol como identidade local, e consequentemente, aumentando o fluxo turístico. Apesar de partir de uma suposta premissa positiva, onde a economia se aquece gerando frutos ao local, existem questionamentos a serem feitos: Quem constrói a narrativa da cidade, que é vendida para o mundo? Quais os verdadeiros impactos de tal movimento para seus habitantes?

Quando o assunto diz respeito à Itália meridional, é impossível deixar de citar o conceito gramsciano de Hegemonia Cultural, que consiste, utilizando poucas palavras, em uma conciliação de forças entre os blocos sociais atuantes em um determinado contexto histórico, resultando em uma imposição cultural do grupo dominante. Tal hegemonia, se faz presente mesmo nos detalhes, que muitas vezes passam despercebidos. As mídias viralizadas no último ano, diversas vezes vem de um olhar vazio e colonizador. Não é que os napolitanos tenham quebrado todas as barreiras do preconceito, e agora estão tendo a oportunidade de contar sobre a sua história. Mais uma vez eles vêm sendo retratados sob a perspectiva de um grupo dominante.

Nápoles e Monte Vesúvio
Nápoles e Monte Vesúvio. Foto: valipatov/Depositphoto.

Existe uma linha tênue entre admiração por alguma cultura e diversão às custas daquilo que se pensa como exótico. O que pôde ser percebido nesse período recente, foi justamente a caracterização do napolitano como ser folclórico. Porque obviamente, diante da monotonia passional, imposta pelo avanço do capitalismo, com com muito sucesso nas grandes cidades do norte da Itália e norte da Europa, bem como na frenesi estadunidense, o comportamento encontrado em Nápoles é visto como algo fora do real, engraçado. E é a partir daí, que se transforma em falta de respeito. No fundo, a maioria  não leva a sério o quão importante vem a ser o futebol na vida dessas pessoas. Fato confirmado quando a festa do título, foi alvo de críticas como acusar a utilização de políticas sociais de auxílio de renda, em prol de “futilidades”. Eduardo Galeano em “O livro dos abraços”, escreve um texto “os ninguéns”, que se encaixa perfeitamente nesta situação:

 

“Que não são, embora sejam.

Que não falam idiomas, falam dialetos.

Que não praticam religião, praticam superstições.

Que não fazem arte, fazem artesanato.

Que não são seres humanos, são recursos humanos.

Que não tem cultura, têm folclore.

(…)

Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata”

E assim o napolitano transita entre o estereótipo de mafioso e bon vivant folclórico. Seguindo a lógica dessa ótica, assistimos a um boom turístico. Pessoas interessadas em conhecer a cultura local ou em visitar a cidade como se fosse um parque de diversões? Que tipo de turismo vem crescendo?

Em uma entrevista televisiva em 2014, o empreendedor Oscar Farinetti, fundador da cadeia Eataly, expôs a concepção do sul da Itália como um grande vilarejo de férias. Carmine Conelli em seu livro  “Il Rovescio della nazione”, explica a fala como <<um convite às multinacionais a investirem no local, através de um generoso incentivo fiscal, a fim de atrair turistas para um dos lugares mais lindos do mundo, em troca de mais empregos a jovens italianos e da utilização de produtos exclusivamente made in Italy>>.

A propaganda de um “turismo autêntico”, onde são oferecidos tours em bairros (ao menos originalmente) mais populares, acaba por trazer também uma transformação de moradias em hospedagem turística, além do perigo da descaracterização local para atender as necessidades dos novos frequentadores (por exemplo, a transformação do comércio local em basicamente bares e restaurantes). Toda política territorial deve ser pensada em conjunto a sua comunidade, o que inclui o turismo: deveria ser feito com o propósito de retorno ao local, e não com o intuito de expulsar quem mora ali a fim de favorecer uma atividade econômica e um grupo específico detentor dos meios.

O futebol não foge a esse raciocínio. Felizmente, os bilhetes para uma partida do Napoli ainda configuram entre os mais econômicos da primeira divisão italiana. É algo a se estar atento sempre, pois a tendência com o aumento dos holofotes sobre o clube é um aumento de demanda e consequentemente dos preços. O que acabaria por excluir aqueles que sempre estiveram verdadeiramente ali, nos momentos bons e ruins.

Se por um lado, o futebol poderia ajudar a promover uma imagem mais distante de estereótipos, por outro, uma vez pertencendo a estrutura hegemonista do norte, acaba por sempre atender aos interesses do grupo dominante, e dessa forma não consegue quebrar a barreira do preconceito de modo eficaz. Em um levantamento divulgado pela plataforma Semrush, os tópicos mais pesquisados sobre Napoli atualmente na internet, excluindo o futebol, são “vídeo trash napoli”, seguido por títulos relacionados a comidas baratas. Isso consta como evidência de que o imaginário do napolitano, representado como personagem que serve unicamente para entreter e fazer rir, persiste fortemente.

Napoli
Nápoles, Itália – 5 de maio de 2023: Os torcedores do time de futebol de Nápoles celebram a vitória do campeonato italiano na rua. Pessoas eufóricas se reúnem nos bairros espanhóis em frente ao mural de Maradona. Foto: Polifoto/Depositphoto

É uma pena que com o turismo de massa, a cidade receba um aumento de interesse, porém de forma superficial. O futebol é parte da identidade napolitana, de uma maneira muito especial. Me permito afirmar que Maradona é mais que um ídolo, é uma entidade protetora da cidade, junto a San Gennaro. Não à toa, era possível ver em todas as ruas decoradas em comemoração ao título, fotos e frases agradecendo ao argentino o feito da temporada 2022/2023. Muitos não entendem isso, veem como exagerado, enquanto se divertem fazendo selfies ou fotografando os devotos de “D10S”. Também acaba por passar despercebido, a grandeza que é uma festa de futebol reunir não apenas homens cis héteros, mas toda sua população nas ruas a celebrar uma conquista. Um triunfo que diz sobre coletividade.

Nápoles é mesmo uma cidade incrível e peculiar. Um pecado que esta identidade que resiste à mesmice imposta pela globalização, seja frequentemente vista através de um olhar colonizador. Que enxerga sua cultura sempre como algo de retrocesso. E que se apropria dela, quando é lucrativo.

O povo napolitano pode ser sinônimo de simpatia, mas também de pioneirismo na luta por moradia, bem como de formas de organização política de militância. Protagonistas de uma cidade que tem muito a oferecer e ensinar. São mil cores, como dizia Pino Daniele.


“Pedem aos napolitanos para serem italianos por uma noite, após chamá-los de terroni[2]por 364 dias no ano” – Diego Armando Maradona.

Notas

[1] partenopeo – termo utilizado para definir napolitano, fazendo referência a sereia Partenope da mitologia grega, que segundo a lenda local, teria fundado a cidade de Nápoles.

[2] terroni – termo pejorativo para definir o italiano do sul.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Vantine

Pesquisadora de Futebol e Políticas Econômicas.Membro do coletivo internacional Football Collective.

Como citar

VILLELA, Mariana Vantine de Lara. Nápoles entre a glória de um Scudetto e a inconveniência do turismo de massa. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 12, 2023.
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