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Argentina: três conquistas e o tempo que nos cabe viver

No final do ano passado, durante a Copa do Mundo disputada no Qatar, uma marca de cerveja argentina promovia seus produtos evocando coincidências entre 2022 e 1986, ano do até então último mundial de futebol conquistado pelos hermanos. É provável que a vitória não tenha sido fruto do consumo da popular bebida, mas do mérito dos jogadores e da equipe técnica. De qualquer forma, o movimento lembra as correspondências que se procura atualizar a cada quatro anos, supondo que há características comuns em um e outro (possível) êxito. O esporte é um dos grandes depositários do pensamento mágico e a publicidade é um setor que opera como nenhum outro esse movimento.

A primeira conquista da Albiceleste veio na Copa jogada em casa, em 1978. Controvérsias à parte, como o famoso 6 x 0 na seleção peruana, o time argentino era muito bom, atacava com ferocidade, ao mesmo tempo em que mantinha uma sólida defesa. Havia como que um eixo, que partia do goleiro Ubaldo Matildo Fillol, passava pelo zagueiro Daniel Passarela e pelo médio-volante Osvaldo Ardiles, chegando ao centroavante Mario Alberto Kempes. Eram todos excelentes, contando ainda com vários outros jogadores de destaque, a exemplo de Leopoldo Luque. A equipe era treinada por Cezar Luis Menotti – antes, um bom jogador que chegou a atuar no Santos de Pelé –, cujo estilo futebolístico ficou conhecido como mais livre e ofensivo. As comemorações pelo título foram intensas, com muito papel picado no campo e as ruas ocupadas, mas as recordações que ficaram guardam amargura. O país vivia sob ditadura e a frase de uma presa política dá o tom das coisas: “Se eles ganharam, nós perdemos”.

A segunda vitória, em 1986, no México, ficou marcada pela catártica atuação frente aos ingleses, pelas quartas-de-final, com vitória sul-americana por dois a zero. Mais que tudo, ficaram para a história os dois impossíveis gols de Diego Maradona, um com a mão, outro depois de driblar metade do time inglês, naquele que é certamente o tento mais bonito que já foi marcado em um Mundial. Tudo tão real e tão inverossímil, que fez o locutor Victor Hugo Morales perder o prumo, mas ganhar potência, na narração[1], assim como motivou o cineasta Emir Kusturica a reproduzi-lo em forma de animação em seu documentário sobre o craque[2].

Diego, como um bonequinho, aparece fintando adversários em sequência, entre eles Margareth Thatcher, a então primeira-ministra britânica. A vitória teve ares de vingança simbólica (e algo efêmera) frente à rendição nas Malvinas, quatro anos antes. Ao se encontrarem no mítico Estádio Asteca, os países representados pelas seleções de futebol estavam rompidos em suas relações diplomáticas. Fica na conta da ditadura argentina (1976-1983) ter levado à morte centenas de jovens no Atlântico Sul, mergulhando o país em um trauma tremendo.

O médico Carlos Bilardo atuou como treinador argentino em 1986, e o êxito fez com que se passasse a debater no país vizinho, por anos a fio, qual seria o melhor estilo para a vitória, o menotismo ou o bilardismo, este de matriz mais defensiva. Como costuma acontecer com esse tipo de discussão, nunca se chegou a conclusão alguma. E foi sorrindo que o capitão do time, exatamente El Diez, El Pibe, Diego Maradona, mostrou a Copa conquistada no balcão da Casa Rosada, sede do governo argentino, à multidão que se exprimia na Praça de Maio.

Eis que 36 anos depois, um novo gênio, melhor, mas não maior que Maradona, comandou o time de Lionel Scaloni no campo e fora dele, assumindo todo tipo de responsabilidade para chegar à épica vitória no Qatar. Foi outro Lionel, o Messi, o principal responsável pelo grito há tantos anos entalado na garganta. A comemoração foi intensa, tanto no país, quanto no campo e nas arquibancadas no Oriente Médio. Entre cantos que louvam Maradona e relembram os jovens caídos nas Malvinas, ouviu-se dos futebolistas argentinos, ofensas aos brasileiros e aos franceses. Houve quem dissesse que os platenses foram maus vencedores. As críticas foram dirigidas principalmente ao goleiro Emiliano Martínez, Luva de Ouro da Copa, que aproveitou o troféu para simular uma extensão do próprio pênis, em suposto ataque à torcida da França, que o teria importunado muito durante a partida final. Foi o desfecho perfeito, escreveu Milly Lacombe[3], para um Mundial tão “testosterônico” como o de 2022.

A comemoração do melhor arqueiro da Copa – e um dos três mais destacados do ano que passou, segundo indicação da FIFA, há poucos dias – reafirma, ao expor sua masculinidade tão partilhada com outros homens, o caráter bélico que o esporte dramatiza. Lembremos que na guerra costuma haver saque e destruição. Tolo e infantil, o gesto de Martínez mostra, no entanto, que nem tudo pode ser controlado quando se disputa um jogo. As coisas podem ser não tão assépticas como alguns gostariam. De mais a mais, em tempos com tanta perversidade, como os que hoje vivemos, toda celebração leva consigo um rastro de horror e iniquidade. Em cada júbilo de uma grande conquista, vai um tanto de indiferença – ou mesmo de gozo – em relação ao sofrimento alheio. Não é diferente no futebol.


[1] Maradona Goal of the Century – Víctor Hugo Morales commentary – Argentina-England 2-1 1986

[2] Trailer | Maradona (2008), an Emir Kusturica Documentary

[3] Gesto de goleiro argentino simulando pênis com troféu foi desfecho perfeito

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Argentina: três conquistas e o tempo que nos cabe viver. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 11, 2023.
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