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Fim do Ministério dos Esportes | Parte 1: O Mistério do Esporte

Marco Lourenço 5 de novembro de 2018

“Enfim, o esporte não se trata, como nunca se tratou, de uma ingênua diversão, mas sim de uma prática social poderosa, influente, que envolve emocionalmente um grande número de pessoas, e que hoje se apresenta definitivamente como uma eficaz forma de negócios, capaz de mexer com sonhos e difundir ideias, comportamentos e atitudes”
(MELO, V. A. Dicionário do Esporte no Brasil: do século XIX ao início do XX).

A partir de 1º de janeiro de 2019 teremos um novo presidente da República: o capitão reformado do exército e parlamentar de quase 30 anos de exercício, Jair Messias Bolsonaro. Uma das diversas mudanças já anunciadas pelo candidato eleito é a reestruturação das pastas ministeriais – e o futebol, em particular, e o esporte, em geral, serão impactados.

Mas afinal, como esses temas serão tratados no novo governo?

Vamos do começo: o programa de governo do PSL. Embora a proposta mencione a redução do número de ministérios, não há nenhum detalhamento de como será feito, quais pastas serão excluídas ou reorganizadas e tampouco a apresentação dos critérios de escolha que rompam com o “toma lá-dá-cá” argumentado no texto registrado pelo Superior Tribunal Eleitoral.

Pouco mais de uma semana do fim do pleito eleitoral, os porta-vozes do novo presidente já apresentam o novo desenho ministerial, e o Ministério do Esporte, criado em 1995, deixará de existir, dando lugar a uma nova pasta, o Ministério da Educação, Esportes e Cultura.

Historicamente, o assunto ‘esporte’ no país sempre contou com a presença de militares em sua administração e foi inaugurado como pasta individual e governança civil no governo Fernando Henrique Cardoso, anunciando, ainda, Pelé como o primeiro Ministro do Esporte do Brasil. Durante os três anos de mandato, o ministro Edson Arantes do Nascimento levou adiante uma regulamentação que mudou drasticamente a realidade do futebol brasileiro: o fim da lei do passe. Conhecida como “Lei Pelé”, a nova diretriz legal desafiou o Clube dos 13 e até mesmo o ex-presidente da CDB e da FIFA, João Havelange, que chegou a ameaçar o Brasil de exclusão da Copa de 1998.

Sessão Plenária de Abertura do Fórum Econômico Mundial para América Latina
(São Paulo – SP, 14/03/2018) Senhor Edson Arantes do Nascimento (Pelé).
Foto: Beto Barata/PR.

Embora os efeitos da “Lei Pelé”, percebidos nos dias de hoje, tragam muitas controvérsias – em especial, pela viabilização do empresário como player inseparável do futebol atual -, é inegável que a antiga lei do passe precisava ser superada a fim de dar autonomia e liberdade aos inúmeros atletas impedidos de exercer sua profissão.

Quando Pelé pediu exoneração do cargo, FHC decidiu reestruturar a pasta, criando o Ministério do Esporte e Turismo. Somente com o governo Lula, a partir de 2003, o Ministério do Esporte voltou a existir e passou a ter protagonismo em diversos temas relevantes, criando vários programas de apoio como o “Bolsa Atleta”, que atende a quase 6 mil atletas de várias modalidades de todas as partes do Brasil, ou mesmo a “Lei de Incentivo ao Esporte”, que “permite que empresas e pessoas físicas invistam parte do que pagariam de Imposto de Renda em projetos esportivos aprovados pelo Ministério do Esporte”.

Foto: Ivo Lima/Ministério do Esporte
Foto: Ivo Lima/Ministério do Esporte.

Alvos de muitas críticas sobre esse tema, os governos do Partido dos Trabalhadores e o próprio Ministério do Esporte viabilizaram uma grande era esportiva no país sob constantes denúncias de desvios de recursos públicos, superfaturamentos, ataques à soberania jurídica brasileira com a “Lei Geral da Copa”, aterramento das culturas de estádio, arenização e elitização dos palcos esportivos, violência policial do Estado e gentrificação das áreas de obras ligadas aos megaeventos: em especial, os Jogos Panamericanos (2007), a Copa do Mundo (2014) e os Jogos Olímpicos (2016).

Sobre esse período, o Ludopédio já publicou artigos:
https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/cbf-cob/
https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/imagina-na-copa-megaeventos-esportivos-e-exclusao-social-no-brasil/
https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/tragedia-de-2014/
https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/imagina-na-copa-megaeventos-esportivos-e-exclusao-social-no-brasil/

Vale lembrar que, a despeito dos crimes mal investigados ou julgados referentes a este período, as atividades do Ministério do Esporte vão muito além do mercado esportivo mainstream. Ao longo dos anos, a pasta se dedicou ao oferecimento de recursos, ainda que insuficientes, para atletas e para-atletas de baixa renda; às mediações entre o setor público e o privado a fim de captação de recursos para fomentar modalidades que não gozam da mesma visibilidade que o futebol; à política pública social, abrindo uma janela de oportunidade para o jovem em situação de vulnerabilidade que é aliciado desde a infância para o exército do tráfico; ou mesmo às políticas de saúde pública, acatando recomendações da OMS (Organização Mundial de Saúde – ligada à ONU) para o investimento no esporte como medida preventiva – estudos apontam que a cada dólar investido no esporte gera a economia de 3 dólares em saúde.

Mudanças já estão em curso

Diante deste cenário, o que sabemos sobre o futuro do esporte é, na melhor das hipóteses, uma incógnita. O programa de governo eleito não menciona uma vez sequer a palavra “esporte”. Os recursos da pasta, que atingiam mais de 1,3 bilhões de reais em 2016, sofreram uma queda estimada em 87% em 2018, no último ano do governo de Michel Temer. Essa redução faz parte de um pacote de medidas de austeridade do governo que traz impactos significativos para as mais variadas áreas – e o esporte não ficaria fora dessa.

Brasileiro Keno Marley Machado é ouro na disputa de boxe, categoria até 75kg, nos Jogos Olímpicos da Juventude Buenos Aires 2018, na Argentina. Data: 17.10.2018. Foto: Pedro Ramos/rededoesporte.gov.br.

É inegável e urgente o estabelecimento de um ajuste das contas públicas, passando fundamentalmente por uma reforma fiscal (tributária e previdenciária), no entanto, além de ser um assunto complexo até mesmo para especialistas – e um emaranhado de achismos para o cidadão -, o ajuste revela uma agenda de reformas iniciada por Temer, a qual, ao que tudo indica, será aprofundada pelo próximo governo.

A política de austeridade, além de ineficaz – por render relativa baixa economia dos gastos totais -, ataca setores mais vulneráveis da sociedade que dependem da intervenção do poder público. Quando olhamos para o tema ‘esporte’, identificamos os alvos mais sensíveis. Dentro do orçamento do Ministério do Esporte, em 2017, foram gastos 90 milhões de reais para o bolsa-atleta, que, em sua maioria, não tem condições de custear sua carreira esportiva. Como comparativo, é válido lembrar que se somarmos os custos anuais de 45 deputados federais chegamos ao mesmo valor que complementa a renda – e, em muitos casos, torna-se a única fonte de recursos – de quase seis mil atletas.

Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil
Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil.

Ao transformar o Ministério do Esporte em uma secretaria, como será feito pelo novo presidente da República, as incertezas sobre o esporte do Brasil mais se parecem um trailer do sucateamento da incipiente, porém única, estrutura do poder público que fomenta o esporte em suas mais variadas instâncias. Os críticos fisiológicos da administração do PT, inspirados pela dupla Bolso-Dória, oportunamente constituída na eleição e forjada pelo antipetismo, acusam o partido de aparelhamento ideológico do Ministério.

É preciso respeitar a ciência e o conhecimento para debater tais assuntos, ou cairemos nos truísmos alienantes – em certos momentos, até distópicos. A presença de um Ministério do Esporte em uma estrutura de governo não o torna de esquerda, direita, comunista ou liberal. Países governados por grupos de orientações político-ideológicas diversas contam com uma pasta específica, como é o caso da França, China, Coreia do Sul e Rússia.

O esporte é uma prática social ligada às culturas nacionais, não por acaso, vários países ganham popularidade em todo o mundo por sua excelência em uma modalidade esportiva. Temos diversos exemplos: Brasil, com o futebol; EUA, com o futebol americano e o basquete; França, com o ciclismo; Índia, com o críquete; e tantos outros.

O poder de transformação do esporte

Para além da disputa típica da Guerra Fria que mobilizou competitividade esportiva entre EUA e URSS pelo pódio olímpico e sua hegemonia simbólica no globo, a busca por sucesso esportivo nos países desenvolvidos – e, no caso, este sucesso vai muito além dos atletas de alta performance – cada vez tem se constituído como um índice de civilidade, cidadania e desenvolvimento.

Em países que sofrem com a desigualdade, o esporte é uma alternativa para a inclusão social, ou, ao menos, mais uma ferramenta para romper o ciclo de marginalização do jovem na periferia, onde é tão assediado pelo tráfico. Nas fronteiras das modalidades esportivas praticadas quase exclusivamente por homens, uma política afirmativa do esporte contribui para que meninas também possam praticar.

Foto: Gabriel Jabur/ Agência Brasília
Foto: Gabriel Jabur/ Agência Brasí­lia.

Como saúde pública, é temerário o corte gastos, visto o bom desempenho dos índices que profilaxia associados à prática esportiva, e ainda mais grave ao constatarmos a ‘epidemia’ da obesidade crônica que assola os países abastecidos pela indústria alimentícia.

É impensável, portanto, que todas as atribuições e finalidades da pasta esportiva simplesmente desapareçam. Contudo, não há qualquer indicativo claro do que esperar com a nova conjuntura. Curiosamente, o novo presidente tem uma certa memória ligada ao esporte, elogiado em sua juventude pelo bom desempenho esportivo, em especial, ao pentatlo. E conjecturando a personalidade e ideais demonstradas pelo próximo presidente, tudo se encaixa: a vivência e ode à uma modalidade individual; desprestígio de práticas coletivas tidas mais populares; e a inspiração em conceitos militares sobre o esporte, valorizando mais aspectos da motricidade (força, velocidade, resistência, etc.) do que as dimensões lúdicas e pedagógicas decorrente da sociabilização no âmbito esportivo.

Diante de tamanha inquietação sobre o futuro do esporte no Brasil, é preciso ao menos fazer três perguntas cruciais neste momento inicial:

1. Qual será o orçamento disponível para o esporte?
2. Como esse governo entende a importância do esporte, considerando os efeitos diretos e indiretos das políticas públicas?
3. Quais programas do governo vigente serão mantidos ou reformulados?

Como já anunciou, o candidato eleito pretende fazer deste governo uma máquina do tempo, levando o Brasil de volta para o século XX, mais precisamente entre os anos 1960 e 1980. Os indícios divulgados por diversas frentes progressistas e democráticas, inclusive o Ludopédio, de que essa afirmação é procedente começam a se concretizar. Metade da cúpula do governo será ocupada por militares, e o Ministério do Esporte deixará de existir, iniciando a viagem no tempo até os anos de Ditadura Militar.

Portanto, o vazio temerário do futuro do esporte está posto. O cheque em branco assinado com essa vitória eleitoral também impactará a vida de milhares de atletas e poderá afetar diversos índices de desenvolvimento do país. Se a era dos militares inspira esse novo governo, o que o futebol, esporte mais popular do mundo, patrimônio cultural brasileiro, poderá esperar do capitão?

Na segunda parte: “O que o futebol poderá esperar do presidente capitão”.


Fontes:

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/objetivo-e-fazer-brasil-como-era-a-40-50-anos-atras-diz-bolsonaro.shtml

https://sportv.globo.com/site/blogs/blog-do-coach/post/2018/10/31/o-fim-do-ministerio-do-esporte.ghtml?fbclid=IwAR3eUoc9GdIPvUXhowS_uPUIUK4WaIxMPJRM11Co–OCg2wHTNE9gC30QAk

https://chuteirafc.com.br/mercado/major-olimpio-e-petraglia-dobradinha-de-bolsonaro-para-mexer-no-futebol-brasileiro/

http://www.esporte.gov.br/index.php/ultimas-noticias/209-ultimas-noticias/57827-comunidade-esportiva-defende-recursos-para-o-esporte-e-aprimoramento-do-bolsa-atleta

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9615consol.htm

https://esportes.estadao.com.br/noticias/geral,onu-aconselha-investimento-no-esporte,20030917p40311

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Marco Lourenço

Professor, Mestre em História (USP), Divulgador Científico (Ludopédio) e Produtor de Conteúdo (@gema.io). Desde 2011, um dos editores e criadores de conteúdo do Ludopédio. Atualmente, trabalha na comunicação dos canais digitais, ativando campanhas da Editora Ludopédio e do Ludopédio EDUCA, e produzindo conteúdos para as diferentes plataformas do Ludo.

Como citar

LOURENçO, Marco. Fim do Ministério dos Esportes | Parte 1: O Mistério do Esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 6, 2018.
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