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Flávio de Carvalho: de entusiasta modernista a estilista futebolístico

Wagner Xavier de Camargo 20 de novembro de 2022

A vida tem surpresas que a gente, de fato, desconhece. Numa das tardes de tempestades destes tempos primaveris, acabei isolado pelo vento e pela chuva no hall da Biblioteca Central César Lattes, dentro da Universidade Estadual de Campinas. Eu passava ali despretensiosamente, quando àquela situação me colocou de frente à exposição “Na semana que vem”, que exaltava a Semana de Arte Moderna de 1922 e apresentava um material interessante sobre Flávio de Carvalho.

Como o próprio panfleto de abertura anunciava, a proposta da exposição era uma extensão da comemoração dos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. E para isso trazia ali algo do incrível material do Centro de Documentação Cultural “Alexandro Eulálio” (CEDAE), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), localizado na mesma universidade.

Na rica multiplicidade de documentos apareciam vozes, manifestos, obras de inúmeros artistas, mecenas e apoiadores da tal Semana. Ali estava, especificamente, Flávio de Carvalho, um engenheiro de formação, que se permitiu ser influenciado pelas artes e também desenvolveu dotes de pintor, performista, artista. Ele não fez parte da Semana de 1922, mas é tido como um entusiasta da mesma e propagador de seus efeitos.

Segundo a exposição, sua atuação artística vai se intensificar nos anos 1930, com a fundação do Clube dos Artistas Modernos (em 1932), do Teatro Experiência (em 1933) e da organização do Salão de Maio, nos idos de 1939. Estas e outras ações vinham na esteira de várias iniciativas que buscavam consolidar as pesquisas artísticas modernas no país depois de uma década de experimentações estéticas.

Flávio de Carvalho vai estar envolvido intensamente em reuniões de artistas para conferências, debates e exposições. Segundo frisado, ele é uma personalidade ímpar e será um dos grandes construtores do modernismo nas décadas seguintes.

Num dos cartazes da exposição estava a famosa Experiência n. 3, na qual estava vestido com um saiote feminino, uma blusa de manga curta e bufante, sandálias e meia arrastão, e saiu pelas ruas da capital paulista, anunciando seu “traje tropical” (ou traje de verão). A reportagem que comentou o ato se intitulou “Saiote para eles, mini para elas” e o classificou como “O pai do happening no Brasil”.

Flávio era dado a experimentações, que hoje são entendidas e classificadas como performances, que atuavam no sentido de provocar as pessoas a refletir acerca das convenções sociais. Foi assim também na Experiências n. 2, em que ele atravessa uma procissão de Corpus Christi em sentido contrário, vestindo um boné na cabeça, algo desrespeitoso à época. Nesta ocasião ele chegou a ser bastante hostilizado pela multidão.

Indagado, chegou a comentar: “O saiote é uma indumentária masculina e não só feminina (…) A ventilação e os movimentos são facilitados”.

Mas o que me chamou a atenção foi uma reportagem do Caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, de 28 de fevereiro de 1972, em que Flávio foi convidado a desenhar novos uniformes para o futebol brasileiro, numa era de televisão a cores. Desde os anos 1950/60, o artista já se dedicava ao desenho, à pintura, à gravura e à aquarela. E os uniformes apresentados para as posições de jogador, goleiro, bandeirinha e juiz são excepcionalmente coloridos e diferenciais.

Enquanto o goleiro usaria uma maquiagem no rosto para jogos noturnos e contaria com um círculo rosa demarcatório no peito (devido sua posição), a figura do jogador adotaria no visual um saiote com plissê, camisa multicolorida com manga plissê e pernas pintadas de branco, também para serem visíveis em jogos à noite.

Goleiro por Flávio de Carvalho
Goleiro por Flávio de Carvalho. Foto: Wagner Xavier de Camargo.

A arbitragem, por sua vez, teria modelitos distintos: o juiz vestiria uma roupa preta, com babados de cor branca na parte superior da gola, e maquiagem azul na testa. Já o bandeirinha usaria um traje mais colante, com desenhos de bandeirinhas em várias direções e uma maquiagem bicolor em todo o rosto.

Juiz
Juiz por Flávio de Carvalho. Foto: Wagner Xavier de Camargo.

As roupas desenhadas e apresentadas pelo artista ao jornal foram as que “mais se adequariam à televisão colorida”. E, segundo ele, seria indispensável a maquiagem de todos os envolvidos (cada um em sua especificidade), sem a qual não se identificaria com boa definição tais personagens em jogos noturnos. Quanto ao saiote e a camisa com plissê, o autor justifica na matéria: “são para dar maior liberdade aos movimentos” dos jogadores.

Bandeirinha por Flávio de Carvalho
Bandeirinha por Flávio de Carvalho. Foto: Wagner Xavier de Camargo.
Jogador por Flávio de Carvalho
Jogador por Flávio de Carvalho. Foto: Wagner Xavier de Camargo.

O país não só via a introdução do televisor em cores, que começava a se popularizar, mas também vivia ainda a euforia do tricampeonato de futebol, conquistado no ano de 1970. Todas as pessoas, de todas os espectros, profissões e afins, queriam pensar e propor coisas para o futebol. Queriam, no limite, se apropriarem dele em alguma instância. E isso não passou despercebido por artistas como Flávio de Carvalho.

Na atualidade em que grassa homofobia generalizada e preconceitos contra vestimentas, adereços e estilos corporais no futebol, necessitaríamos olhar para as considerações estilísticas e artísticas de Flávio de Carvalho, que nos permitiriam questionar as convenções sociais, notadamente as relativas a gênero e à sexualidade dentro do campo futebolístico.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Flávio de Carvalho: de entusiasta modernista a estilista futebolístico. Ludopédio, São Paulo, v. 161, n. 20, 2022.
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