Para o Renato, amigo tricolor.

Em memória de Carlos Heitor Cony.

 

No último domingo Fluminense e Corinthians protagonizaram um péssimo espetáculo de futebol. Foi tudo mais ou menos decepcionante, e o pior não foi o resultado desfavorável para meu time de devoção. Gramado ruim, poucos espectadores, partida disputada em mais um dos elefantes brancos da Copa, o Estádio Mané Garrincha, em Brasília. O mando era do tricolor, que o vendeu, preferindo atuar longe da torcida, mas ganhar uns caraminguás a mais.

O único gol da partida foi ainda no primeiro tempo, em chute de pouca pretensão de Paulo Henrique Ganso, talvez o mais decepcionante jogador de futebol da última década. Quando o meia-atacante surgiu no time do Santos Futebol Clube, com Neymar e outros tantos, parecia que o grande craque seria ele. Suas primeiras atuações avalizavam essa impressão. Como na final do Paulista de 2009, quando o time da Baixada jogava com dois a menos contra o Santo André. PH Ganso não só se recusou a deixar o campo na prorrogação – Dorival Júnior queria colocar um zagueiro em seu lugar –, como fez de tudo para segurar a bola no ataque, já que o resultado, ainda que de derrota frente ao Santo André, beneficiava seu time. Chegou a cobrar um escanteio apenas tocando a bola e deixando-a na marca do corner para logo, ele mesmo, compor a defesa. Os beques adversários, que esperavam a cobrança regular do tiro de canto, ficaram atônitos e sem saber o que fazer, demorando a perceber que a bola estava em jogo, mas que teriam que buscá-la para seguir a partida.

No jogo contra o alvinegro paulistano, o camisa 10 do Flu chegou ao gol com a contribuição da incrível falha técnica do goleiro Cássio. O equívoco daquele que é provavelmente o arqueiro mais importante da história do Corinthians, ao menos depois de Gilmar dos Santos Neves, correspondeu ao desastroso jogo. Os esforçados cariocas, vivendo da habilidade de João Pedro e da experiência de Nenê, pouco fizeram, mas o Timão foi ainda pior.

Na impossibilidade de admirar o que acontecia em campo, meu pensamento vagou pelas recordações que tenho do Fluminense, um clube que, no longo movimento de afetos em relação ao futebol, me chamou a atenção. As primeiras lembranças são as da comemoração do título carioca de 1975, Rivelino sendo carregado nos ombros, ainda no gramado do Maracanã. Foi bom vê-lo feliz ao alcançar seu primeiro título por clubes, ele que amargara tantos anos de frustração no Corinthians, onde fora, ainda por cima, responsabilizado pela derrota na final do Paulista de 1974, contra o Palmeiras. Logo depois conheci um menino que recém chegara do Rio de Janeiro, ele pertencia a uma das muitas famílias que migraram para Florianópolis em um dos surtos modernizadores da cidade, o dos anos 1970. Na primeira vez em que o vi, na casa de um vizinho em comum, estava vestido com a bonita camiseta das Laranjeiras. Isso já foi em 1976, ano que viveu uma das mais épicas partidas entre corintianos e tricolores, a da semifinal do Campeonato Brasileiro daquele ano[1].

Uma das fases do Corinthians que mais me trouxe contentamento foi aquela em que o treinador da equipe era Carlos Alberto Parreira, em 2002. Campeão da Copa do Brasil, do Torneio Rio-São Paulo e ainda vice do Campeonato Brasileiro, sempre com a “melhor ala esquerda do mundo”, segundo dizia, a dos canhotos Kleber, Ricardinho e Gil. Mas Parreira sempre foi tricolor, onde fosse que estivesse. Levou o Flu ao Campeonato Brasileiro de 1984, logo depois de uma breve e frustrante passagem pela seleção brasileira, com um timaço em que despontava a dupla de ataque com Assis e Washington – o Casal 20, referência a um seriado televisivo –, mas também o paraguaio Romerito, que veio do New York Cosmos, e os defensores Ricardo Gomes e Branco.

No Fluminense, assim como no Flamengo e no Botafogo, entre os times do Rio, reinou Renato Portaluppi, primeiro como atacante, autor do gol de barriga do título carioca de 1995, mas também como treinador, em seu primeiro excelente trabalho, o do vice-campeonato da Libertadores em 2008. Mas, já em 1996 atuara como técnico interino do time, ele que ainda era jogador profissional. Lesionado, assumiu o cargo vago por algumas partidas, mas sua ascendência sobre o elenco não salvaria o Flu do rebaixamento para a Série B do Brasileiro, não fosse uma virada de mesa que manteve o clube na A. No ano seguinte não teve jeito, o time ficou entre os últimos colocados e a segunda divisão foi o destino para 1998. O calvário seguiu, com novo descenso. A chegada à Série C fez Parreira voltar a seu time de coração em 1999 para novamente ser campeão brasileiro. Lembro-me do treinador narrando o enfrentamento de todo tipo de estádio, Brasil afora, para fazer o Fluminense sair da inédita situação.

Renato Portaluppi, também conhecido por Renato Gaúcho, marca de barriga o gol histórico que garantiu a vitória e o título do Fluminense sobre o Flamengo no Campeonato Carioca de 1995. Foto: Reprodução/Facebook.

Naquele mesmo ano de sua estreia como treinador, em 1996, Renato recebeu Telê Santana, já adoentado, para uma palestra ao elenco. O time, como dito acima, periclitava na zona de rebaixamento. Já estavam ambos em paz, depois do encontro, no ano anterior, em que o primeiro se dirigiu ao segundo para um beijo. Foi no Morumbi, antes de partida contra o Tricolor Paulista, então dirigido pelo treinador mineiro. Telê cortara Renato, por indisciplina, da seleção brasileira que iria à Copa da Itália, em 1986.

Telê Santana posa com a camisa do Fluminense, em época cujo apelido era “Fio de Esperança”. Foto: Reprodução.

Telê foi jogador do Fluminense na década de 1950. Carlos Heitor Cony, tricolor de coração – e foi forte o coração do grande escritor, que viveu muito em seus quase noventa e dois anos –, assim escreveu sobre o atacante moderno que fez o Flu campeão carioca em 1951:

“Eu era moço, quase da mesma idade de Telê, que jogava na ponta-direita do Fluminense. No campeonato carioca de 1951, o ‘timinho’ de Zezé Moreira foi campeão e deu o primeiro título a Telê. Em muita coisa ele foi a ‘primeira vez’. O futebol adotava o [sistema de jogo] WM, adaptado por Flávio Costa com a diagonal. Telê foi o primeiro ponta a jogar recuado e, em certos jogos, atuava como centroavante. Foi nesta posição que decidiu a final do campeonato, fazendo os dois gols que deram o título ao meu time”[2].

A partida foi contra o Bangu, de Zizinho, já em janeiro de 1952.

Mas Cony também escreveu sobre si, reconhecendo-se em Telê, no Fluminense:

“No returno do campeonato, num jogo com o Madureira, fiz uma coisa que jamais imaginara fazer. Na geral do campo do tricolor, pulamos, uns 50 torcedores, e levamos Telê nos ombros. Foi a primeira e única vez que o entusiasmo venceu a apatia que eu trouxe do berço e levarei para o túmulo”[3].

A força, a técnica e a habilidade de Renato, a posse de bola de Parreira, o futebol-arte de Telê, as crônicas de Cony. O Fluminense já foi melhor do que hoje. O mundo também.

Florianópolis, em Coqueiros, setembro de 2019.

Notas

[1] Por ocasião da morte de Carlos Aberto Torres, escrevi algo sobre o jogo: https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/o-craque-que-nos-deixa-recordacoes-de-carlos-alberto-torres-1944-2016/.

[2] Folha de São Paulo, 24/04/2006, p. 2 (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2404200606.htm).

[3] Folha de São Paulo, 24/04/2006, p. 2 (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2404200606.htm).

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Fluminense – Boas recordações. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 23, 2019.
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