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Futebol na Literatura de Língua Alemã – Parte XI: “Não como vocês”, de Tonio Schachinger

No dia 21 de novembro de 2023, a Áustria humilhou uma Seleção Alemã desorientada e desalmada num amistoso em Viena, com o placar final de 2 a 0. Foi a segunda derrota alemã seguida contra os austríacos, uma derrota que talvez marque uma profunda transformação na histórica rivalidade entre os dois países vizinhos.[1] No total, a Alemanha lidera com folga o balanço dos confrontos (25 vitórias, 6 empates, 10 derrotas desde 1908), mas desde a perspectiva “hegemônica” alemã no futebol, essas poucas derrotas possuem um significado especialmente dolorido.

Vale lembrar – neste contexto – que a mais famosa e importante derrota alemã contra a Áustria já virou mito moderno, pelo menos no país alpino: o 2 a 3 em Córdoba – na Alemanha conhecida como “a vergonha de Córdoba” –, em 21 de junho de 1978, durante a Copa do Mundo na Argentina, que teve como consequência a eliminação da Seleção Alemã, campeã de 1974.[2]

Na literatura, a rivalidade entre os dois países que compartilham a mesma língua não é tão acentuada – sem querer afirmar que não exista! -, também o balanço se apresenta muito mais a favor do vizinho “menor”, que origina um número proporcionalmente mais elevado de autoras e autores de importância e impacto na literatura em língua alemã. Foi nesse contexto que, também em 2023, um jovem autor austríaco voltou a ganhar um dos mais prestigiosos prêmios literários da língua alemã, o Deutscher Buchpreis (Prêmio Alemão do Livro), outorgado pela associação das editoras, distribuidoras e livrarias nos países de língua alemã: o vienense Tonio Schachinger, com o seu segundo romance Echtzeitalter (em alemão com significado ambíguo: “Idade / Época em tempo real”, ou até “Época verdadeira”), sobre a vida de um jovem protagonista num colégio de elite nos arredores de Viena.

Tonio Schachinger
Tonio Schachinger em 2019 (Foto: C.Stadler/Bwag)

O fato decisivo que liga as duas esferas aqui – a do futebol e a da literatura – é que em 2019, Schachinger já fora finalista do mesmo prêmio, com a sua estreia Nicht wie ihr (“Não como vocês”), um romance sobre a vida e a carreira de um jogador de futebol austríaco. O próprio Schachinger afirma que não queria escrever um “romance de futebol”, que a sua intenção fora explorar o lado íntimo e pessoal da personagem do jogador de futebol, tão pouco conhecida pelo público, apesar da sua contínua e cada vez mais intensa exposição midiática.

No início desse romance, o protagonista Ivo Trifunović tem 26 anos, é lateral direito e joga pelo Everton FC, na Premier League inglesa. É possível reconstruir – ao longo do texto – a sua trajetória profissional na qual falta – num silêncio significativo – a presença de ou referência a qualquer clube austríaco, mesmo no início da sua carreira. Em vez disso, Ivo entra no futebol profissional com 17 anos na Suíça, mais concretamente no FC Basel, e depois segue a lógica da jovem promessa de craque que não chega a se cumprir por completo: Com somente 19 anos, ele é transferido para o Real Madrid onde, entretanto, não consegue se impor e se vai embora depois de somente um ano, para se incorporar ao FC Chelsea, com quem ele ganha a Champions League de 2010/22, mas sem ser titular ou jogar uma partida inteira.

Também em Londres ele só permanece um ano e é vendido, por oito milhões de euros, para o Hamburger SV, na época ainda na primeira divisão da Bundesliga alemã. Depois de alguns anos complicados no HSV, Ivo consegue voltar para a Premier League e passa a jogar pelo Everton, o que marca o momento na sua vida em que se inicia a narrativa do romance.

É um momento crítico para o protagonista, pouco antes de fazer 27 anos, pois não sabe para onde a sua carreira ainda poderia levá-lo. O seu empresário quer transferi-lo por um valor bem elevado para um clube chinês, mas Ivo não quer, pois isto significaria o fim das suas ambições em termos futebolísticos.[3]

Die Vereine, zu denen Ivo möchte, wollen ihn nicht, und zu den Vereinen, die sich Ivo leisten können, will er nicht, also wird er bleiben, wo er ist, und versuchen, die vage Möglichkeit, von der Milo gesprochen hat, dass die neuen chinesischen Eigentümer der AS Roma vielleicht einen Freund von ihm zu neuen Sportdirektor machen könnten, und dass dieser Sportdirektor eine Schwäche für unangepasste Spieler wie Ivo hat, die gut im 1 gegen 1 sind, und dass er also Ivos Qualitäten zu schätzen weiß und vielleicht genug Geld haben könnte, um ihn zu verpflichten, nicht größer machen, als sie ist. (Schachinger 2019, S. 131)[4]

Vários elementos surgem na vida do protagonista, se entrelaçam numa trama limitada a poucos meses na vida de Ivo Trifunović e lançam luz sobre diferentes aspetos interessantes em sua fusão entre futebol e literatura.

Uma temática representada e refletida no livro é o contexto multiétnico da Áustria contemporânea, espelhada na sua Seleção nacional, composta por jogadores originados de diferentes países, entre eles o próprio protagonista Ivo. Durante os preparativos para um jogo contra a Bósnia, ficam evidentes as preocupações “culturais” na comissão técnica da Seleção. O gerente de comunicação tenta preparar os dois jogadores com raízes na Bósnia, entre eles Ivo, numa conversa aparte, mas também parece se preocupar com a temática das origens estrangeiras e das identificações nacionais múltiplas em geral:

Und es geht ja gar nicht um Bosnien, das wird spätestens klar, als die anderen erzählen, dass sie auch einen Termin beim Günther hatten, die Nicht-Bosnier und Nicht-Österreicher, David, Rajko, Veli, Bojan, Deniz und Tori, damit sie wissen, was sie antworten sollen, falls jemand sie fragt, ob sie je überlegt haben, für ihr anderes Herkunftsland zu spielen oder als was sie sich mehr fühlen. Und deshalb fühlt sich Ivo nicht mehr wie ein Bosnier am Abend vor dem Spiel, sondern nur mehr wie ein Ausländer. (Schachinger 2019, S. 56)[5]

O que o romance esboça assim é um retrato da importância e do simbolismo do futebol no contexto da nação austríaca, inserindo o protagonista como jogador numa Seleção representativa da realidade nacional dos anos 2010. Ao mesmo tempo mostra de maneira discreta mas convincente a contradição que reside na expectativa do público em geral e da mídia em particular de que os jogadores de futebol deveriam atuar como representantes, exemplos e modelos nas mais variadas e complexas problemáticas sociais.[6] 

Outro momento interessante é a convergência entre a própria narrativa literária do romance e a projeção interna do protagonista que se imagina como personagem de um filme biográfico:

Wenn man Ivos Leben verfilmen würde, dann müsste der Höhepunkt ein Fußballgroßereignis sein, die Champions League oder eine Endrunde mit dem Nationalteam, etwas, das für immer bleibt. Und seit die EM vorbei ist, hat er so ein Gefühl – nein, es ist mehr als ein Gefühl. Seit der EM weiß Ivo, dass er in seinem Leben keinen großen Titel mehr gewinnen wird. (Schachinger 2019, S. 119)[7]

É o próprio protagonista que – na voz do narrador participativo – reflete a sua trajetória como roteiro biográfico, com dramatismo e final feliz, com uma finalidade que a vida real não costuma evidenciar sempre.

Das ist es, was Ivos Leben zu einem Film machen könnte: das Supertalent, das mit 19 zu Real geht und mit 20 die Champions League gewinnt, dann zum Bad Boy wird, sich mit jedem anlegt, der ihn provoziert, schwierige Zeiten durchmacht und sich wieder nach oben arbeitet, bis er am Höhepunkt des Films endlich das einlöst, was sein Leben versprochen hat. (Schachinger 2019, 122–123)[8]

Essa visão dramatúrgica sobre a própria vida é que torna o personagem de Ivo e a escrita do romance numa reflexão crítica da percepção midiática e midiatizada da figura do craque futebolístico. Ivo faz o levantamento não somente dos seus logros e das suas falhas factuais, mas também em relação às reações acontecidas ou possíveis do público nas redes sociais. Um detalhe interessante na trama é, nesse contexto, que o romance não mostra os momentos em que Ivo ou seus assistentes criam o conteúdo para suas contas, nem narra o que acontece com ou ao redor uma postagem sua ou uma notícia relacionada com ele. Ao contrário, o texto se limita às conversas de Ivo por whatsapp com seus parentes, amigos e, principalmente, com Mirna.

Com Ivo, Schachinger cria um personagem que se quer diferente (sofrendo racismo na Áustria, não passando pelas academias padronizadas de futebol, pensando diferente da maioria dos outros, não cumprindo as expectativas sociais), mas acaba se adaptando às exigências para garantir a carreira e os ingressos financeiros.

Vieles von dem, was das Leben dieses Menschen so schlimm macht, hat zu tun mit der Professionalisierung, mit dem Kapitalismus. Und der ist halt im Fußball noch ein bisschen augenscheinlicher als woanders“, sagt Schachinger. „Und wenn man dann ein Beispiel nimmt von jemandem, der in so einer turbokapitalistischen Subkultur lebt wie dem Fußball, fällt es vielleicht stärker auf. Aber das betrifft alle Bereiche des Lebens. (Porombka)[9]

Através dessa representação, articula também uma crítica do futebol contemporâneo, padronizado e clonado, como fica evidente num momento em que Ivo reflexiona sobre a sua própria maneira de jogar e conceber o futebol, oposta à filosofia mecânica dos jogadores que ele chama de “gaivotas”:

[…] Möwen sind wie die seelenlosen Maschinen, die jedes Jahr aus den deutschen Akademien strömen, ohne eine Ahnung von der Welt oder von sich selbst, die 500 Pässe spielen können mit einer Quote von 94%, aber keinen einzigen, der ihnen selbst einfällt. Max Meyer ist eine Möwe oder Leon Goretzka oder Timo Werner. […] Möwen sind purer Zweck, wie die Passquotenroboter, die das deutsche U21-Team füllen, für die Fußball nur ein Vehikel ist, die genauso gut Unternehmensberater oder Marktforscher sein könnten, während Ivo nichts anderes auf der Welt machen könnte, als Fußball zu spielen. (Schachinger 2019, S. 17)[10]

Nicht wie ihr
Capa de “Nicht wie ihr”, ed. de bolso. Fonte: Editora Rowohlt/divulgação

É preciso levar em conta que esse momento difícil na carreira do jogador Ivo interage, na trama do romance, com a sua situação privada: um casamento bastante acomodado com Jessy e com dois filhos pequenos e o reencontro com Mirna, a paixão da sua adolescência. Essa dimensão emocional é intensificada pela integração de referência à música popular. Conforme o clichê do jogador de futebol, Ivo escuta hip-hop, e Mirna compila uma lista de faixas para ele, que no romance é denominada de mixtape, apesar de se tratar de uma playlist virtual. Nela consta o título que condensa a situação emocional de Ivo na sua vida profissional e privada, no seu matrimônio e na sua paixão reacendida por Mirna: a música “crime life”, da cantora e rapeira alemã Haiyti (2016), cujo refrão inspirou o título do romance e é citado no romance, quando Ivo escuta a faixa no carro:

Ich war früher nicht wie ihr, ey

Ihr habt mich so gemacht wie ihr, ey

Und jetzt mach ich Cash wie Gs, hey

Ich hab die Taschen voller Kies, ey

Ich bin geworden so wie ihr, ja, ihr (Schachinger 2019, p. 147-148)[11]

Outra música da mesma artista, na fita de Mirna e clave para as dúvidas e os conflitos internos de Ivo, „Globus“ (2016)

Wohin soll’n wir fahr’n, wohin soll’n wir fahr’n?

Ich drehe den Globus und du hälst ihn an

Wohin soll’n wir fahr’n, wohin soll’n wir fahr’n?

Schließe deine Augen und gib mir die Hand

Wohin soll’n wir fahr’n?

Ich drehe den Globus und du hälst ihn an

Gib mir deine Hand

Wir wachen auf und wir liegen im Sand[12]

Além de usar essas referências e citações para construir o mundo sociocultural do protagonista, o narrador do romance reflete explicitamente sobre o espaço compartido pelos jogadores de futebol e os artistas de hip-hop na cultura popular contemporânea, fazendo Ivo formular uma diferença fundamental no estilo de vida dos dois grupos:

Das ist der Unterschied zwischen Rappern und Fußballern: dass die Rapper Zeit haben, das Geld, von dem sie die ganze Zeit reden, schon in ihren 20ern zu verballern, dass sie es sogar müssen, um cool zu sein, obwohl sie im Vergleich ja arme Schlucker sind. Ivo verdient in drei Wochen so viel wie der reichste deutsche Rapper in einem Jahr, Ivo könnte sich 500 Jahre lang im Four Seasons einquartieren. Er hat nur nicht die Zeit. (Schachinger 2019, S. 134)[13]

Assim, o romance acompanha o personagem principal durante alguns meses através de um momento de crise dupla – uma futebolística, outra amorosa – sem a pretensão de inserir esse trecho de vida dentro de uma linearidade biográfica (com um antes e um depois significativos) ou de uma representatividade sociocultural. Mesmo assim ou justamente por isso, o romance consegue esboçar, a partir de uma perspectiva individual, um quadro mais abrangente que permite uma variedade de reflexões a respeito do futebol contemporâneo em geral, do futebol austríaco em particular, o papel e significado dos jogadores de futebol no mundo de hoje, da contradição fundamental entre a forca integrativa do futebol e a sua comercialização cada vez mai completa.

No final do romance, no curto capítulo final, ficamos sabendo que Ivo acabou ser transferido para a AS Roma, por um valor não especificado, mas mencionado como o maior pago jamais pelo clube por um jogador. Resumindo o simbolismo da sua vida retratada ao longo do romance, o capítulo relata somente que Ivo perdeu os primeiros dois jogos com a Roma, durante o terceiro ele acredita sofrer uma falta na grande área e receber um pênalti, em vez disso é expulso por catimba e reclamação. Com isso, a trajetória futura de Ivo Trifunović fica em suspense, bem em concordância com a representação da sua vida de jogador de futebol centrada em alguns poucos meses que este romance propõe de maneira muito instigante.

Bibliografia

Adrian, Stefan; Schächtele, Kai (2017): Schwierige Beziehung zweier ungleicher Nachbarn – Die Piefkes und die Ösis, in: idem (orgs.): Immer wieder nimmer wieder. Vom Schicksal des österreichischen Fußballs. Köln: Kiepenheuer & Witsch

Porombka, Wiebke: Fußball als turbokapitalistische Subkultur. Tonio Schachinger über „Nicht wie ihr“. Podcast Lesart. Deutschlandfunk.

Schachinger, Tonio (2019): Nicht wie ihr. Wien: Kremayr & Scheriau.

____ (2023): Echtzeitalter. Hamburg: Rowohlt.

Wassermair, Michael; Wieselberg, Lukas (1998): 3:2 Österreich – Deutschland. 20 Jahre Córdoba. Unter Mitarbeit von Lukas Wieselberg. Wien: Döcker.

Notas

[1] Esta rivalidade futebolística também já foi objetivo de estudos históricos, cf. Adrian / Schächtele (2017).

[2] Não é de se estranhar que esse jogo em particular tenha recebido detida atenção por parte dos estudiosos austríacos, destaque-se o livro de Wassermair / Wieselberg (1998) que reúne uma cobertura e reconstrução completa da partida e de seus significados socioculturais.

[3] O romance reproduz aqui a década dos anos 2010, marcada pela ida de numerosos jogadores – craques no fim da carreira, medianos sem muita perspectiva na Europa – para a China, atraídos por salários exagerados. Este boom não foi duradouro nem sustentável e viveu uma decadência acelerada com a pandemia do Covid a partir de 2020. É interessante perceber que a representação dessa evolução artificialmente mantida pelo regime chinês, articulada no romance a partir da perspectiva de um jogador, pode muito bem ser transferida para o presente com as tentativas – e tentações – análogas originadas na Arábia Saudita e o Qatar.

[4] „Os clubes para os que Ivo quer ir, não o querem, e os clubes que tem dinheiro suficiente para ele, não o interessam, por isso ele vai ficar onde está e com isso não aumentar, para além da sua verdadeira dimensão, a vaga possibilidade de que o Milo [o empresário] mencionou, de que os novos donos chineses da AS Roma talvez instalem um amigo dele como diretor esportivo e que esse diretor esportivo gosta de jogadores inconformistas como Ivo, que são bons no confronto um a um, e que por isso saberia reconhecer as qualidades de Ivo e talvez tenha dinheiro suficiente para contratá-lo.“

[5] „E, na verdade, não se trata da Bósnia, isso fica evidente quando os outros contam que também foram chamadas para uma conversa com o Günther, os não-bosníacos e os não-austríacos, David, Rajko, Veli, Bojan, Deniz e Tori, para que saibam o que devem responder se alguém perguntar se em algum momento consideraram jogar pelo outro país de origem ou com qual país eles se identificam mais. O por isso Ivo já não se sente como um bosníaco na véspera do jogo, e sim como um estrangeiro.“

[6] Na perspectiva alemã, a leitura dos respectivos trechos no romance faz lembrar, imediatamente, as discussões em torno da obrigação ou não dos jogadores da Seleção Alemã de se posicionarem explicitamente contra a situação política no país anfitrião durante a Copa do Mundo no Qatar em 2022. Outra associação muito atual surge com a publicação, no início de junho de 2024, de uma enquete realizada pela televisão pública alemã à qual 21% dos entrevistados responderam que gostariam que a Seleção Alemã tivesse “mais jogadores brancos”. A enquete faz parte do documentário “Einigkeit und Recht und Vielfalt” – Die Nationalmannschaft zwischen Rassismus und Identifikation” (União e justiça e diversidade – A Seleção Alemã entre racismo e identificação), produzido por Philipp Awounou, que apresenta um balanco diferenciado em relação aos progressos e retrocessos que o futebol alemão enquanto espelho da sociedade viveu desde 2006, quando durante a Copa do Mundo na Alemanha fez surgir o mito do “conto-de-fadas de verão” e da diversidade do país (https://www.ardmediathek.de/video/sportschau/einigkeit-und-recht-und-vielfalt-die-nationalmannschaft-zwischen-rassismus-und-identifikation/das-erste/Y3JpZDovL2Rhc2Vyc3RlLmRlL3Nwb3J0c2NoYXUvMjAyNC0wNi0wNV8yMS0zMC1NRVNa). A DFB e os representantes oficiais da Seleção Alemã não gostaram nada do resultado negativo da enquete nem do momento em que foi publicada, na véspera da Eurocopa, quando os organizadores do torneio estão tentando restabelecer a imagem de um país aberto, pluralista e progressista no palco internacional.

[7] “Se se fizesse um filme sobre a vida de Ivo, então o clímax deveria ser um grande evento futebolístico, a Champions League ou um torneio internacional com a Seleção, algo que fica para sempre. E desde que terminou a Eurocopa, ele tem essa sensação – não, é mais do que uma mera sensação. Desde a Eurocopa Ivo sabe que ele não irá ganhar outro grande título na sua vida.” Pela cronologia do romance se pode deduzir que o narrador se refere aqui ao Campeonato Europeu de 2016 na Franca em que a Áustria jogou no grupo F, junto com Portugal, a Islândia e a Hungria, acabando em último lugar e eliminada depois de duas derrotas e um empate.

[8] „É isso o que poderia transformar a vida de Ivo em filme: o talento extraordinário que com 19 nos vai para o Real e ganha a Champions League com 20, depois vira bad boy, briga com qualquer um que o provoca, passa por períodos difíceis e volta pro tope com grande esforço, para finalmente cumprir, no clímax do filme, a promessa que ficara aberta durante toda a sua vida.“

[9] „Muito daquilo que faz a vida tão ruim, tem a ver com o profissionalismo cada vez maior, com o capitalismo. E este fica mais evidente no futebol do que em outras áreas,“ explica Schachinger. „E se a gente toma o exemplo de alquém que vice numa subcultura turbocapitalista como o futebol, isso talvez chame mais atenção. Mas afinal afeta a todos as aspetos da vida.”

[10] „Gaivotas são como aquelas máquinas desalmadas que cada ano saem das academias alemãs, sem ter nenhuma noção do mundo ou de si próprios, que conseguem fazer 500 passes com uma quota de 94%, mas nenhum passe que tivessem inventado eles mesmos. Max Meyer é uma gaivota, também Leon Goretzka ou Timo Werner. […] Gaivotas são pura utilidade, como os robôs da quota de passes que enchem a Seleção Alemã sub-21, para os quais o futebol é somente uma ferramenta e que poderiam ser muito bem consultores de empresas ou analistas de mercado, enquanto Ivo não quer fazer outra coisa no mundo que jogar futebol.”

[11] „Antes eu não era como vocês / Vocês é que me fizeram assim / E agora ganho muito dinheiro / O bolsos cheios de dinheiro / Virei como vocês, sim, como vocês.

[12] „Onde quer que vamos, para onde quer que vamos? / Eu faço girar o globo e você o para / Onde quer que vamos, para onde quer que vamos? / Feche os olhos e me dá a mão / Onde quer que vamos? / Eu faço girar o globo e você o para / Me / Acordamos e estamos deitados na areia.“

[13] „Essa é a diferença entre rapeiros e jogadores de futebol: que os rapeiros tem tempo para gastar o dinheiro do qual estão falando o tempo todo antes de fazerem 30 anos, que até precisam gastá-lo para serem cool, mesmo que em comparação sejam pobres coitados. Em três semanas Ivo ganha tanto como o mais rico rapeiro alemão em um ano, Ivo poderia se hospedar durante 500 anos no Four Seasons. Só que ele não tem tempo para isso.”

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Marcel Vejmelka

Professor do Departamento de Espanhol e Português na Faculdade 06 "Tradução, Linguística e Estudos Culturais" (FTSK), da Universidade Johannes Gutenberg de Mainz, em Germersheim, Alemanha. Doutorado em Estudos Latino-americanos/Brasileiros - Freie Universität Berlin (2004); graduação em Tradução Português/Espanhol - Humboldt-Universität zu Berlin (2000). Tem experiência na área de Literatura, Cultura e Tradução, com ênfase em Literatura brasileira e hispano-americana, atuando principalmente nos seguintes temas: tradução literária, literatura brasileira e hispanoamericana, tópicos da cultura popular (futebol, música e hq).

Como citar

VEJMELKA, Marcel. Futebol na Literatura de Língua Alemã – Parte XI: “Não como vocês”, de Tonio Schachinger. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 19, 2024.
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