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Garrincha, um craque em versos de cordel

Pelo menos, desde a década de 1950, o futebol passou a inspirar poetas populares na composição de seus versos. Certamente, os dois primeiros triunfos da Seleção Brasileira nas Copas de 1958 e, respectivamente, de 1962 marcam esse momento, bem como o surgimento de dois dos maiores craques do futebol brasileiro e mundial no século XX: Pelé e Garrincha. Não é por acaso que estes tenham se tornado personagens frequentes de folhetos de cordel.

Este breve artigo tem por objetivo enfocar o tratamento poético dado por cordelistas a Garrincha nos seguintes folhetos, publicados entre as décadas de 1960 e 1980: Peleja de Garrincha com Pelé (1965), de Antônio Téodoro dos Santos, Garrincha, a alegria do povo Ou a história do passarinho que jogava futebol (1977), de Barboza Leite, Mané Garrincha (1983), de Raimundo Santa Helena, A morte de Mané Garrincha (1983), de Jota Rodrigues, Faleceu Mané Garrincha, fabricante de Joãos (1983), de Gonçalo Ferreira da Silva, e O encontro de Garrincha com Coutinho no céu (1984), de Moacir da Silva Carmin. Este texto também é uma homenagem a Manoel Francisco dos Santos, cuja morte completou 50 anos em 20 de janeiro de 2023.

Garrincha em uma peleja com Pelé

Inicialmente, selecionamos o folheto Peleja de Garrincha com Pelé (1965), do cordelista baiano Antônio Téodoro dos Santos, o “Poeta Garimpeiro”, original do município de Senhor do Bonfim, que se radicou em São Paulo nos anos 1950 e se tornou um dos principais escritores que publicavam suas obras pela Editora Prelúdio. Autor de diversos folhetos, entre outros, Lampião, o rei do cangaço, João Soldado: o valente que meteu o diabo em um saco, Maria Bonita, a mulher cangaço, e Vida e tragédia do Presidente Getúlio Vargas, Antônio Téodoro dos Santos foi um dos cordelistas de grande sucesso, merecendo até mesmo atenção de um dos maiores estudiosos da literatura de cordel, o francês Raymond Cantel, diretor do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, detentor de uma vasta coleção particular de folhetos que, hoje, compõem o acervo de Literatura de Cordel, na Universidade de Poitiers, certamente, o maior acervo fora do Brasil.

O folheto de cordel Peleja de Garrincha com Pelé é bem longo, possui 119 estrofes em sextilhas, métrica em redondilha maior, de sete sílabas poéticas, e rima nos versos pares, como é o padrão em termos formais. Para termos uma ideia do quão longo é esse folheto, os chamados “folhetos noticiosos”, que costumam se originar de reportagens sobre eventos ou celebridades que ocupam a mídia, possuem, em geral, até 32 estrofes, correspondente a 08 páginas, enquanto o folheto Peleja de Garrincha com Pelé possui 32 páginas. Por isso, ele estaria mais próximo do gênero “romance”, conforme pensado no universo do cordel, em que se reserva um maior espaço para determinados temas.

Um primeiro aspecto a levarmos em consideração é o ano em que esse folheto foi lançado pela editora Prelúdio, de São Paulo: 1965. Podemos, portanto, considerar que ambos os protagonistas – Pelé e Garrincha – já eram nomes destacados no universo do futebol, tanto no cenário nacional como internacional. Ambos já haviam se sagrado campeões mundiais, o jovem Pelé protagonizara a conquista do Mundial de 1958, na Suécia, enquanto Garrincha fora o grande nome da conquista do bicampeonato mundial em 1962, no Chile, quando Pelé se lesionara logo na primeira partida do torneio e desfalcara a Seleção Brasileira.

Além disso, Pelé e Garrincha eram os principais jogadores de seus clubes, o Santos Futebol Clube e, respectivamente, o Botafogo de Futebol e Regatas. Se o primeiro havia se tornado bicampeão da Copa Libertadores da América e bicampeão mundial de clubes em 1962 e 1963, o segundo havia triunfado como bicampeão no torneio estadual do Rio de Janeiro em 1961 e 1962. Não é por acaso que a capa do folheto Peleja de Garrincha com Pelé exiba as caricaturas dos dois, em uniforme de seus clubes, e cada um segurando uma viola, enquanto colocam os pés sobre uma única bola (Figura 1).

Garrincha
Figura 1 – capa do folheto de cordel de Antônio Teodoro dos Santos sobre Garrincha e Pelé. Fonte: disponível em http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176

“Peleja”, por assim dizer, constitui um ciclo temático na literatura do cordel, em que pode aparecer na forma de “desafio”, “cantoria”, “disputa”, “duelo”, “encontro” ou “discussão”. E o futebol, em seu caráter agonístico, parece se ajustar bem a esse ciclo temático, basta vermos alguns títulos de folhetos: A discussão do corinthiano com o flamenguista (2002), de Silas Silva, O duelo do galo e da raposa (19–), de Jota Rodrigues, O quebra-pau entre Pelé e Maradona (2011), de Zé do Jati, e Duelo violento Vasco x Flamengo (19–), de Pedro Lara.

Em Peleja de Garrincha com Pelé, o poeta se apresenta aos craques como aquele que, em um gesto humilde, os reverencia, afirmando que seria “inábil” para a prática do futebol: “Licença reis do gramado/ Seu Garrincha e seu Pelé/ Perdão chutar de caneta/ Pois sou dormente do pé/ Mas o mundo é uma bola/ Todos sabemos que é” (SANTOS, 1965, p. 3). Trata-se, entretanto, de uma “peleja” “sem rivalidade” propriamente dita entre os craques: “Pretendo na minha trova/ Honrar a capacidade/ Dos dois craques brasileiros/ Dotados de qualidade/ Coroados, aplaudidos/ E não têm rivalidade” (SANTOS, 1965, p. 4). Trata-se, pois, de um folheto laudatório em homenagem a essas duas estrelas máximas do futebol: “Camões no alto poema/ O mundo sabe que é/ Em milagres só Jesus/ O astro de Nazaré/ Porém no chute da bola/ Só seu Garrincha e Pelé” (SANTOS, 1965, p. 4).

Garrincha, a alegria do povo, em versos da poesia popular

O segundo folheto de cordel selecionado para nosso estudo é Garrincha, a alegria do povo Ou a história do passarinho que jogava futebol (1977), do cordelista cearense Francisco Barboza Leite, original do município de Uruoca, que se transferiu para Fortaleza em meados dos anos 1930, para dar continuidade aos estudos. Multi-talentoso, Barboza Leite tornou-se folclorista, cordelista, xilógrafo, fotógrafo, pintor, jornalista, ensaísta, cenógrafo, ator e compositor. Mais tarde, migrou para o Rio de Janeiro, residindo no município de Duque de Caxias, onde realizou diversos projetos culturais. Entre seus principais folhetos figuram Estórias de retirantes, A arte do cordel, e Desfiando novelo de cordel.

O título do folheto Garrincha, a alegria do povo alude ao filme documentário homônimo, do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, lançado em 1962, quando o craque da Seleção Brasileira e do Botafogo de Futebol e Regatas estava no auge da carreira. Assim como no documentário, o folheto de Barboza Leite é uma homenagem a Garrincha, que já havia findado a carreira. Por assim dizer, o “anjo de pernas tortas”, título do famoso soneto dedicado por Vinicius de Moraes a Garrincha em 1962, teve uma carreira marcada pela curva trágica, da ascensão ao ápice, e à posterior queda. (Figura 2)

Garrincha
Figura 2 – capa do folheto de cordel de Barboza Leite sobre Garrincha. Fonte: disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176

O folheto Garrincha, a alegria do povo apresenta, justamente, essa trajetória de ascensão e queda do craque. Composto por 32 estrofes em septilhas, métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, rimas nos versos 2, 4 e 7, e rimas paralelas nos versos 5 e 6, esse folheto segue rigorosamente a estética da poesia popular. Seu subtítulo – a história do passarinho que jogava futebol – faz uma alusão à alcunha que Manoel Francisco dos Santos, amante das caçadas de passarinhos, adquiriu na infância, referência a um deles, garrincha. Logo na primeira estrofe, o poeta se apresenta como aquele que não é versado em futebol, mas que dedicará seus versos, humildemente, àquele que pertence ao panteão do futebol brasileiro: “Humilde versejador/ pouco entendo do esporte/ mesmo assim quero expor/ tendo o verso por suporte/ a vida de um jogador/ naquilo que o seu valor/ toda a verdade comporta” (LEITE, 1977). Aspectos biográficos compõem as primeiras estrofes de Garrincha, a alegria do povo, desde a origem até a atuação como operário em uma tecelagem, na região serrana do Rio de Janeiro: “Criado em Raiz da Serra/ onde a montanha se alteia/ sua meninice se encerra/ numa vida de aldeia/ ali começou a jogar/ sem nunca jamais pensar/ na fama que hoje alardeia// Vivia como operário/ de uma fábrica de tecidos/ onde o senso comunitário/ mantinha os jovens unidos/ tornou-se, então, popular/ por sua forma de jogar/ num jeito bem divertido” (LEITE, 1977).

Bezerra Leite também não deixa de destacar em seus versos uma das características de Garrincha, que o notabilizou mundialmente: a capacidade de driblar seus adversários, com movimentos inusitados de suas pernas tortas: “Tendo as pernas encurvadas/ quase a ponto de dobrar/ era uma coisa engraçada/ ver o Mané a driblar/ quando começava ir pra frente/ virava pra trás de repente/ o inimigo a enganar” (LEITE, 1977). Assim como no documentário de Joaquim Pedro de Andrade, em que cenas de campo, com Garrincha driblando seus adversários, são intercaladas com imagens das arquibancadas, em close-ups dos torcedores maravilhados com sua ginga e seus dribles, o folheto Garrincha, a alegria do povo também estabelece essa relação em versos na seguinte estrofe: “O povo na arquibancada/ faltava se despencar/ quando em linha enviesada/ querendo a bola passar/ Mané um chute fingia/ e o adversário só via/ a bola se transformar” (LEITE, 1977). Em uma das últimas estrofes, o poeta enaltece o craque: “Para terminar meu verso/ agora o papel removo/ o que houve de adverso/ transformou-se num céu novo/ a Garrincha cabe a glória/ de ter passado à história/ como a ‘Alegria do Povo’” (LEITE, 1977).

Por fim, os seguintes versos apontam para os anos de decadência da carreira de Garrincha, encerrada em 1972: “Fizera do coração/ uma festa de sorrisos/ na sua obstinação/ não acreditava em avisos/ enodoaram sua fama/ tiraram-lhe a mesa e a cama/ tomaram o seu paraíso.” (LEITE, 1977).

Garrincha, uma biografia em versos

O terceiro folheto selecionado para este estudo é Mané Garrincha (1983), do famoso cordelista paraibano Raimundo Santa Helena. Um dos nomes de destaque da literatura de cordel, criador da Feira de São Cristóvão no Rio de Janeiro, publicou mais de 300 folhetos ao longo da vida, marcada ainda na infância pelo assassinato de seu pai por Lampião e seu bando, quando estes invadiram Cajazeiras, sua cidade natal, e também pela participação na Segunda Guerra Mundial como marinheiro. Entre os diversos folhetos, figuram os seguintes títulos: Cartilha do Povo, Adeus Rio, ECordel-92 Rio-Brasil, O menino que viajou num cometa, e Lampião e o sangue de meu pai. (Figura 3)

Garrincha
Figura 3 – capa do folheto de cordel de Raimundo Santa Helena sobre Garrincha. Fonte: disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176

A capa do folheto Mané Garrincha apresenta uma xilogravura assinada pelo artista Zé Andrade, contendo o título em caixa alta e, logo abaixo, a imagem do craque trajando o uniforme do Botafogo de Futebol e Regatas, clube do Rio de Janeiro que o consagrou. Em posição de drible, Garrincha está cercado por três pernas com chuteiras nos pés, cujas travas mais parecem dentes afiados, prontos para barrar o avanço do jogador. Na margem superior, lê-se a indicação do gênero – “literatura de cordel” e o nome Raimundo Santa Helena em caixa alta. Já a contracapa do folheto exibe a biografia do cordelista e detalhes sobre sua produção poética ao longo de décadas, além de contato na Feira de São Cristóvão, no Rio.

O folheto Mané Garrincha é composto por 24 estrofes em septilhas, métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, rimas nos versos 2, 4 e 7, e rimas paralelas nos versos 5 e 6. Em termos formais, o número 7, eternizado por Garrincha, ganha destaque especial, algo evidenciado pelo subtítulo: “7 linhas, 7 sílabas, nomes e fatos reais” (SANTA HELENA, 1983, p. 1). Em seus versos, o poeta apresenta o craque desde seu nascimento em 1933 até sua morte, quase cinquenta anos mais tarde: “No ano de 33/ Em dezembro dezenove,/ Lá em Pau Grande Magé/ Todo mundo se comove:/ No chão de Raiz da Serra/ Um bebê nascendo berra/ Como trovões quando chove…” (SANTA HELENA, 1983, p. 2). O poeta também não deixa de referenciar o traço físico que levaria Vinicius de Moraes, em 1962, a compor o soneto “O anjo de pernas tortas”, dedicado ao já consagrado craque, bicampeão mundial no Chile: “Os risos do nascimento/ Se transformam em tristeza –/ Aquelas perninhas tortas/ Maculavam a beleza/ E seu pai pra consolar/ Disse vamos respeitar/ A obra da Natureza…” (SANTA HELENA, 1983, p. 2). Nas estações da vida do craque, não faltam nos versos de Raimundo Santa Helena suas magistrais conquistas: “Ano 58/ O russo vira João/ Copa do Mundo Suécia/ O Brasil é campeão/ Garrincha ponta direita/ O universo respeita/ Os dribles do meu irmão…// Ano 62/ No Chile nós somos bi/ Pelé não pode jogar/ Mas o Garrincha sorri/ Pelé não fez falta não/ Mané cumpriu a missão/ Até 70 no tri” (SANTA HELENA, 1983, p. 2).

Porém, a vida de Garrincha foi marcada não só por conquistas esportivas, mas também pelo seu jeito autêntico e despojado de ser, ao mesmo tempo, simples, e desapegado de bens materiais, comparado a um dos maiores personagens do cinema no século XX: “Talvez uns 18 filhos/ Apesar da timidez/ Garrincha era Carlitos/ E maldade nunca fez/ Compra um rádio lá fora/ Vende-o na mesma hora/ E diz: ‘Só fala inglês’…” (SANTA HELENA, 1983, p. 3). No folheto de Raimundo Santa Helena, não faltam também os percalços na vida do Mané, que culminaram com sua decadência dentro de campo e com uma vida conturbada e destrutiva fora dele: “Ex-operário sorria/ Zombando dos precipícios/ Vibrava sempre nos gols/ Procurou conter os vícios/ Na solidão sem carinho/ Tentava novo caminho/ Buscando novos indícios…” (SANTA HELENA, 1983, p. 3). E em seus versos, o poeta expressa todo o sentimento de luto: “Todas as flores murcharam/ As cidades estão mortas/ Das traves tiram as redes/ Estádios fecham as portas/ O apito se calou/ Uma camisa sobrou/ Do Mago das Pernas Tortas…” (SANTA HELENA, 1983, p. 7).

Garrincha e sua morte em versos da poesia popular I

A morte de Garrincha em 20 de janeiro de 1983 também inspirou alguns cordelistas a escreverem versos em homenagem àquele jogador que fascinava não só por seus dribles desconcertantes nos adversários, como também por toda a simplicidade com que sempre lidou com a carreira. No quarto folheto selecionado para este estudo, intitulado A morte de Mané Garrincha (1983), o cordelista pernambucano Jota Rodrigues versa sobre o jogador desde seu nascimento na região serrana do Rio de Janeiro até sua morte, em uma trajetória, ao mesmo tempo, heróica e trágica. Autor de folhetos como O drama dos favelados, Nascimento e vida do sociólogo Dr. Manuel Diegues Junio e Homenagem ao cantor Orlando Silva, Jota Rodrigues, nome artístico de José Rodrigues de Oliveira, migrou de Pernambuco para o Rio de Janeiro, onde passou a se apresentar como cantador e poeta popular na Feira de São Cristóvão, centro de cultura popular nordestina.

Composto por 31 estrofes em septilhas e métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, o folheto A morte de Mané Garrincha exibe em sua capa uma xilogravura cujo entalhe reproduz uma jogada na qual vê-se o jogador chutando a bola, enquanto o goleiro se lança, sem possibilidade de agarrá-la. Pelas iniciais “J” e “R” indicadas na capa, deduzimos que a xilogravura também é de autoria do cordelista Jota Rodrigues (Figura 4).

Garrincha
Figura 4 – capa do folheto de cordel de Jota Rodrigues sobre Garrincha. Fonte disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176

Logo na primeira estrofe, o poeta popular evidencia sua intenção de homenagear o ídolo do futebol brasileiro, falecido naquele ano:[i] “discrevo neste cordel/ com toda cimplicidade/ nascimento vida e morte/ progreço e fatalidade/ de um ídolo que a morte distrir/ o grande mané garrincha/ qui partiu pra eternidade.” (RODRIGUES, 1983, p. 1). Não faltam em seus versos o nascimento de Garrincha e o fato de ter as pernas tortas, algo que chamava à atenção desde sua infância. Mas também há uma importante referência que sempre é evocada quando se trata de Garrincha: sua simplicidade como traço que o caracterizaria por toda a vida: “a pescria nos rios/ era a sua diversão/ vendia peixe e levava/ pra sua alimentação/ e pra pegar os passarinhos/ cruzava longos caminhos/ com gaiolas e alçapão” (RODRIGUES, 1983, p. 2). Aqui identificamos aquilo que o famoso biógrafo de Garrincha, o escritor e jornalista Ruy Castro, designou de “homem-natureza” na obra Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha (1995), publicada 12 anos após a morte do craque singular.

Outras estações da vida de Mané Garrincha são tratadas nos versos do poeta, como, por exemplo, seu casamento com Dona Nair, que lhe deu 08 filhas, e sua atividade como operário de uma fábrica têxtil, a América Fabril, que possuía um clube amador, onde o futuro jogador do Botafogo de Futebol e Regatas e da Seleção Brasileira também atuaria com sucesso. As duas estrofes seguintes destacam a atuação de Mané nas Copas do Mundo da Suécia em 1958 e do Chile em 1962: “em cinquenta e oito ele foi/ o responsável direto/ pela conquista da copa/ fazendo o brazil liberto/ e o mundo exclama seu nome/ mané garrincha um renome/ de pernas tortas e chute certo,// em cessenta e dois conquistou/ o bicampionato mundial/ seu nome virou manchete/ nas teve radio e jornal/ brilhou em varias naçoa/ levando para o povão/ a sua alegria geral.” (RODRIGUES, 1983, p. 4)

Todavia, a glória se desfez após graves lesões no joelho e a franca decadência dominou sua carreira após o Mundial do Chile: “e daí por diante garrincha/ foi espulço das fileira/ e lembrando o feliz passado/ sentia as lagrimas goteira/ molhar seu rosto sofrido/ ja em alcolatra convertido/ um eroi sem gloria e sem bem.” (RODRIGUES, 1983, p. 7). A figura trágica domina as últimas estrofes do folheto: “a urna dece pra o tumulo/ e chora o mundo em disispero/ no adeus alegria do povo/ ja foisse o rei brasileiro/ o tumulo feixo a tampa/ todos num pranto distempo/ adeus ao rei verdadeiro.” (RODRIGUES, 1983, p. 8).

Garrincha e sua morte em versos da poesia popular II

Como quinto exemplo de um folheto publicado em homenagem ao “anjo de pernas tortas”, selecionamos para este estudo Faleceu Mané Garrincha, o fabricante de Joãos (1983), do cordelista, contista e ensaísta cearense Gonçalo Ferreira da Silva. Assim como na seção anterior, em que apresentamos o folheto A morte de Mané Garrincha (1983), do cordelista pernambucano Jota Rodrigues, Gonçalo Ferreira da Silva teve o mesmo gesto inspirador de homenagear aquele que figura no panteão dos grandes craques do futebol brasileiro: Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha. O poeta nasceu em Ipu, município do Estado do Ceará e destacou-se por sua técnica refinada ao compor seus versos. Entre outros, é autor dos folhetos Santos Dumont – asas para o mundo, Terra – o nosso planeta pede socorro, Discussão de Zé do Tabaco com o Doutor Saúde, e Aquimedes – o maior dos sábios da antiguidade.

O folheto Faleceu Mané Garrincha, o fabricante de Joãos é composto por 30 estrofes em sextilha, métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, e rimas nos versos pares e versos brancos nos ímpares. Sua capa exibe uma xilogravura assinada com as iniciais “M S”, na qual vê-se um jogador conduzindo a bola para driblar outro que o está marcando (Figura 5).

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Figura 5 – capa do folheto de cordel de Gonçalo Ferreira da Silva sobre Garrincha. Fonte: disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176

Logo de início, o tom de lamento predomina nos versos do poeta popular: “Choram hoje criaturas/ Dos mais diferentes níveis,/ O homem das pernas tortas/ E dos dribles impossíveis,/ Mané Garrincha foi para/ O mundo dos invisíveis.” (SILVA, 1983, p. 1)

Como o próprio título indica, não poderiam faltar versos nos quais o poeta decanta a habilidade de Garrincha como exímio driblador: “Ágil, arisco, audaz,/ Impetuoso e afoito/ Somente ao amor fraterno/ Dava carinho coito/ E trouxe a primeira copa/ Pra nós em cinquenta e oito.” (SILVA, 1983, p. 1) Herói trágico, Garrincha é apresentado como uma personagem que sofre com o declínio de sua carreira: “No entanto se Garrincha/ Não desejava morrer/ A verdade é que não tinha/ Nenhum prazer em viver/ Buscando, através do vício,/ Amenizar seu sofrer.” (SILVA, 1983, p. 1)

Já as estrofes seguintes retomam a singularidade representada por Garrincha, que costumava denominar todos os seus marcadores de “João”, algo, aliás, magnificamente eternizado também nos versos da letra da canção “Futebol” (1989), de Chico Buarque de Hollanda: “Parafusar algum João/ Na lateral/ Não/ Quando é fatal/ Para avisar a finta enfim/ Quando não é/ Sim/ No contrapé” (HOLANDA, 1989). Nos versos de Gonçalo Ferreira da Silva, há uma caracterização que ressalta a singularidade de Garrincha na execução dos dribles: “O analista vencido/ Indaga meditabundo:/ ― De que parte do Universo/ É este craque oriundo?/ Pois faz coisas com a bola/ Jamais vistas neste mundo.// O homem que apresentou/ Estilo tão singular/ Que outro atleta no mundo/ Jamais o soube imitar/ Era a genialidade/ De um jogador sem par.” (SILVA, 1983, p. 2)

Além disso, o folheto Faleceu Mané Garrincha, o fabricante de Joãos também menciona a relação que o jogador tinha com a natureza, fruto de sua simplicidade, ainda dos tempos de infância: “Tinha ele à natureza/ Um amor puro e profundo/ Garrincha – alegria do povo/ Garrincha – encanto do mundo/ Garrincha – deus dos estádios/ ‘Doutor Planeta oriundo?’.” (SILVA, 1983, p. 7) Assim, o poeta alude à “alegria do povo”, subtítulo do famoso documentário media-metragem de Joaquim Pedro de Andrade, lançado em 1962, quando o jogador ainda estava no auge da carreira, algo que já havia sido referenciado também em 1977 pelo poeta Jota Rodrigues no folheto Garrincha, a alegria do povo, anteriormente analisado.

Por fim, fica a lembrança daquele que, em sua simplicidade e, ao mesmo tempo, extrema habilidade – um “fabricante de Joãos” –, soube alegrar o povo que tanto o venerava: “Vinte de janeiro, dia/ Do mártir Sebastião/ O mundo esportivo soube/ Com muita e justa emoção/ Que Garrincha se mudou/ Pra eterna habitação.” (SILVA, 1983, p. 8)

Garrincha e um encontro inusitado no céu

Por fim, selecionamos o folheto O encontro de Garrincha com Coutinho no céu (1984), do cordelista manauara Moacir da Silva Carmim. Um dos nomes de destaque da literatura de cordel na Amazônia, ao lado de nomes como Adalto Alcântara, José Cunha Neto e Cláudio Soares, Moacir da Silva Carmim dedicou um folheto àquele que, depois de Pelé, é o jogador do futebol brasileiro que mais inspirou os poetas populares a comporem seus versos: Manoel Francisco dos Santos, mundialmente conhecido pelo apelido de “Garrincha”, o “Mané Garrincha”, craque da Seleção Brasileira e figura maior dos áureos tempos do Botafogo de Futebol e Regatas, ao lado de outros craques, como Didi, seu compadre Nilton Santos, e Zagallo.

Como o próprio título do folheto indica, O encontro de Garrincha com Coutinho no céu foi publicado após a morte do “anjo de pernas tortas” em 20 de janeiro de 1983, aos 49 anos de idade. Composto por 39 estrofes de seis versos cada, métrica de redondilha maior, com sete sílabas poéticas, e rimas nos versos pares, o folheto apresenta capa simples, que contém apenas o nome do cordelista, indicando abaixo a informação “POETA DO AMAZONAS”, além do título centralizado, da datação – “Fevereiro 1984”, do local – “Manaus – Amazonas”, e do “Preço – CR$ 100,00” (Figura 6). Já a contracapa exibe o provável patrocinador da publicação do folheto, a firma “PROTESOLDAS – Proteção Industrial/ Soldas em Geral e Máquinas”, com telefones para contato e endereço na capital amazonense. Trata-se, pois, de algo comum em folhetos de cordel, em que a contracapa serve de veículo de publicidade.

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Figura 6 – capa do folheto de cordel de Moacir da Silva Carmim sobre Garrincha. Fonte: disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176

A primeira estrofe de O encontro de Garrincha com Coutinho no céu apresenta a intenção do poeta em dedicar seus versos a esses dois nomes de destaque que ocupam lugar de honra no panteão do futebol brasileiro: “A história que vou contar/ de dois grandes campeões/ que agora estão no céu/ foi a maior emoção/ na hora que se encontraram/ dia de São Sebastião” (CARMIM, 1984, p. 1) Este último verso nos permite identificar que o encontro se deu em 20 de janeiro de 1983, data da morte de Garrincha, que, nos versos do poeta, chegava ao céu e se encontrava com Cláudio Coutinho, famoso preparador físico que integrou a comissão técnica vitoriosa da Copa de 1970, no México, foi coordenador técnico na Copa do Mundo da Alemanha Ocidental em 1974, e foi técnico da Seleção Brasileira no Mundial da Argentina, em 1978. Coutinho falecera em 27 de novembro de 1981, aos 42 anos de idade, por afogamento, quando passava férias nas Ilhas Cagarras, arquipélago próximo da costa do Rio de Janeiro. Nas estrofes seguintes, Coutinho e Garrincha são brevemente apresentados: “Cláudio Coutinho era técnico/ do Brasil era melhor/ deu títulos para o Flamengo/ comandando o futebol/ mas morreu tragicamente/ pescando com seu anzol.//Depois foi Mané Garrincha/ um ídolo de tradição/ conquistou o mundo inteiro/ do Brasil até o Japão/ mas morreu abandonado/ este grande campeão” (CARMIM, 1984, p. 1).

Portanto, ambos aparecem como figuras iluminadas e, ao mesmo tempo, trágicas, que morreram cedo – Coutinho aos 42 anos e Garrincha, aos 49 anos –, um por afogamento e outro, vitimado por cirrose hepática em decorrência do alcoolismo. As duas estrofes finais de O encontro de Garrincha com Coutinho no céu enaltecem a ambos: “Assim foi o grande encontro/ dos dois astros brasileiros/ quando no céu se encontraram/ dois amigos verdadeiros/ deram muitas glórias ao Brasil/ mas ganharam pouco dinheiro.// Morreram e foram pro céu/ Garrincha e Coutinho/ gozando da eternidade/ agora tem seu cantinho/ vou continuar aqui no norte/ fazendo os meus versinhos” (CARMIM, 1984, p. 7).

Garrincha em versos – a guisa de conclusão

O conjunto de folhetos analisados neste breve estudo demonstra que Mané Garrincha foi fonte de inspiração para que cordelistas compusessem seus versos de diversas maneiras. Dois desses folhetos se compõem como cenas ficcionais inusitadas: A peleja de Garrincha com Pelé (1965) e O encontro de Garrincha com Coutinho no céu (1984), exatamente aqueles que delimitam temporalmente o conjunto. Outros três folhetos se configuram como “noticiosos”, pois foram escritos e publicados no contexto do falecimento do “anjo de pernas tortas” em 20 de janeiro de 1983: Faleceu Mané Garrincha, o fabricante de Joãos (1983), A morte de Mané Garrincha (1983) e Mané Garrincha (1983). Já um deles possui memorialístico e caráter biográfico: Garrincha, a alegria do povo Ou a história do passarinho que jogava futebol (1977).

O que salta aos olhos na análise desse conjunto de folhetos é o modo como Garrincha é composto enquanto personagem, com traços típicos do herói trágico, cuja trajetória de vida apresenta uma curva de ascensão e queda. São vários os aspectos expressados de maneira recorrente: a origem e a infância pobre na região serrana do Rio de Janeiro, as pernas tortas, o ingresso no Botafogo de Futebol e Regatas, o elevado desempenho como exímio ponteiro direito driblador, que deixava seus marcadores aturdidos, o ingresso na Seleção Brasileira e o protagonismo na conquista do bicampeonato mundial no Chile em 1962, sua simplicidade ao lidar com a carreira, que teria representado também um entrave tanto para gerenciá-la, quanto para conduzir a própria vida fora das quatro linhas, as lesões frequentes, as relações amorosas conturbadas, e o alcoolismo, que culminaria com sua morte por cirrose hepática.

Ao pensarmos nessa composição do herói trágico em versos da poesia popular, não podemos deixar de lembrar da canção “Beto bom de bola” (1967), do cantor e compositor Sérgio Ricardo. Conforme apontamos em outro estudo, “alguns acreditam ver em Beto uma representação de Mané Garrincha, tanto pela fama do craque, como também pela menção na letra do ‘Brasil bi-campeão’.” (CORNELSEN, 2020, p. 336) Em 1967, ano em que foi realizado o Terceiro Festival da Música Popular Brasileira promovido pela TV Record, no qual Sérgio Ricardo protagonizaria a famosa cena de quebrar o violão no palco e lançá-lo à plateia que o vaiava e o impedia de cantar a canção, “Garrincha estava longe de ser aquele jogador que encantou o mundo na Copa de 1962. Sua carreira estava em franco declínio, muito comprometida pela série de lesões” (CORNELSEN, 2020, p. 336). Por assim dizer, ao ser ressignificada após a morte de Garrincha em 20 de janeiro de 1983, “a canção de Sérgio Ricardo assume, a posteriori, um tom premonitório em relação a um dos maiores craques que o futebol brasileiro conheceu” (CORNELSEN, 2020, p. 336). E os folhetos aqui analisados se constituem como autênticos documentos poéticos que registram as diversas estações da trajetória vitoriosa e, ao mesmo tempo, trágica desse “Carlitos” do futebol.

Nota

[1] Manteve-se, nas citações, a grafia do original.

Referências

CARMIM, Moacir da Silva. O encontro de Garrincha com Coutinho no céu. Manaus, AM: Ed. do Autor, 1984.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Futebol e discurso da desigualdade social em canções da Música Popular Brasileira. In: BARROS, Laan Mendes; MARQUES, José Carlos; MÉDOLA, Ana Silvia (orgs.). Produção de sentido na cultura midiatizada. Belo Horizonte: FAFICH; selo PPGCOM-UFMG, 2020, p. 331-348. Disponível em: https://seloppgcomufmg.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Producao-de-sentido-na-cultura-midiatizada-Selo-PPGCOM-UFMG.pdf. Acesso em: 08 dez. 2023.

HOLLANDA, Chico Buarque de. Futebol. In: Chico Buarque (disco). RCA Records, 1989.

LEITE, Francisco Barboza. Garrincha, a alegria do povo Ou a história do passarinho que jogava futebol. S/l.: Ed. do Autor, 1977.

RICARDO, Sérgio. Beto bom de bola. In: Quando menos se espera. Intérprete: Niterói: Niterói Discos, 2001. 1 CD, faixa 6.

RODRIGUES, Jota. A morte de Mané Garrincha. Sem local: Ed. do Autor, 1983.

SANTA HELENA, Raimundo. Mané Garrincha. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1983.

SANTOS, Antônio Téodoro dos. A peleja de Garrincha com Pelé. São Paulo: Ed. Prelúdio, 1965.

SILVA, Gonçalo Ferreira da. Faleceu Mane Garrincha, o fabricante de Joãos. Sem local: Ed. do Autor, 1983.

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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Garrincha, um craque em versos de cordel. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 15, 2023.
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