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Henry Kissinger, a ditadura na Argentina e a Copa do Mundo de 1978

Adriano de Freixo 9 de dezembro de 2023
Henry Kissinger
Copa do Mundo de 74 Holanda x Brasil 2 a 0, Henry Kissinger na arquibancada com João Havelange ao fundo. Foto: Bert Verhoeff/Anefo.

Nos vários obituários de Henry Kissinger, foi lugar-comum descrevê-lo como uma figura polêmica, controversa e polarizadora. Com a imagem indelevelmente ligada aos golpes de Estado e às ditaduras militares na América Latina, aos crimes de guerra dos EUA no Vietnã e no Camboja e aos genocídios praticados em Bangladesh e no Timor, o ex-secretário de Estado americano também foi lembrado como o ganhador de um dos mais questionados Prêmios Nobel da Paz da história (1973), que lhe foi atribuído por sua participação nas negociações do cessar-fogo no Vietnã.

Muitos também mencionaram a sua carreira acadêmica, que mesmo não tendo produzido nada realmente inovador no campo das Relações Internacionais, legou algumas obras – como “Diplomacia” (1994) – que são leituras obrigatórias para estudantes de graduação e pós-graduação, até pela impossível dissociabilidade entre o acadêmico e o homem de Estado.

Em menor quantidade, também apareceram referências às ligações de Kissinger com o futebol, paixão presente desde a infância na Alemanha e que permaneceu intensa ao longo de sua vida. Ele teve um papel importante, por exemplo, na primeira grande tentativa de popularizar o esporte nos EUA, na década de 1970, sendo o responsável por convencer Pelé, que já havia se aposentado dos gramados, a jogar no New York Cosmos a partir da temporada de 1975 e a se tornar garoto-propaganda do futebol no país. E foi como aficionado do mais popular esporte do planeta que Kissinger esteve envolvido em um dos mais obscuros episódios da história das Copas do Mundo – e do futebol em geral.

A ditadura civil-militar argentina e a Copa do Mundo de 1978

Dez anos antes do golpe militar de 1976, a Argentina foi escolhida como sede da Copa do Mundo de 1978 e os preparativos para a sua realização começaram ainda durante os governos peronistas (1973 – 1976). Porém, com a queda de Isabelita Perón e a implantação da ditadura, o novo regime viu no evento uma grande oportunidade para mostrar ao mundo a “nova Argentina” e para angariar apoio popular. Para isto, foram investidos milhões de dólares na construção e na reforma de estádios e em outras obras de infraestrutura.

No entanto, atrasos nas obras e pressões de organizações internacionais de defesa dos direitos humanos – chegou a ser articulado um fracassado boicote ao torneio – quase levaram a FIFA a transferir a Copa para um país europeu. Mas confirmada a sua realização na Argentina, a Junta Militar não mediu esforços para que ela fosse bem-sucedida e, principalmente, para que o país conquistasse o seu primeiro título mundial.

Porém, na primeira fase do torneio, a Seleção Nacional não teve um grande desempenho, perdendo um dos jogos para a Itália por 1 X 0 e terminando como a segunda colocada na sua chave. Na segunda fase, tendo caído no mesmo grupo – o B – que o Brasil, a Argentina derrotou a Polônia no primeiro jogo por 2 X 0 e empatou em 0 X 0 com a Seleção Brasileira no segundo. Com os velhos rivais sul-americanos tendo o mesmo número de pontos, com uma pequena vantagem brasileira no saldo de gols, a vaga para a final seria decidida nos últimos jogos: o Brasil contra a Polônia, a Argentina contra o Peru.

Inicialmente, estava previsto que as duas partidas aconteceriam simultaneamente, como ocorreu com os jogos decisivos do Grupo A, todos à tarde. Mas os horários do Grupo B acabaram sendo alterados, e o jogo do Brasil foi realizado à tarde enquanto que o da Argentina, só no início da noite. Assim, com Brasil X Polônia tendo ocorrido antes – vitória brasileira por três a um – os argentinos entraram em campo contra o Peru já sabendo que precisariam abrir uma vantagem de pelo menos quatro gols para garantir a classificação para a final.

A goleada argentina por seis a zero fez com essa partida se tornasse uma das mais controversas da história de todos os mundiais, com a sombra da suspeição de que esse resultado tivesse sido comprado pela ditadura – e consequentemente o título – pairando sobre ela para sempre.

Histórias como a da possível propina recebida pelo goleiro Quiroga – um argentino naturalizado – e por outros jogadores do Peru para facilitar o jogo ou a das pressões exercidas pelo próprio governo peruano, também uma junta militar, sobre a equipe em troca de uma linha de crédito de US$ 50 milhões e de 35 mil toneladas de grãos começaram a circular e ganhar força entre torcedores e jornalistas.

No entanto, naquele momento, a classificação para a final e a subsequente conquista do título inédito, após uma vitória – conquistada na prorrogação – por 3 X 1 sobre a Holanda, fizeram com que os torcedores argentinos, em êxtase, tomassem as ruas, interrompendo, inclusive, protestos como os das Mães da Praça de Maio, em vigília por seus filhos desaparecidos. Na definição do sociólogo Juan José Sebreli, em La Era Del Fútbol (2005), a Argentina viveu então uma espécie de delírio de unanimidade.

A lembrança incômoda de um jogo de futebol

Passada a euforia com o primeiro título mundial da seleção nacional e principalmente após o término – e a revelação dos crimes – da ditadura, essa conquista passou a ser vista com certa vergonha por parte dos torcedores argentinos, tornando-se um permanente elemento de incômodo. E tendo crescido com a percepção desse incômodo, ao conviver com o sentimento dúbio que o título de 1978 – e principalmente a partida contra o Peru – despertava em seu pai e nos amigos dele, o jornalista Ricardo Gotta transformou-o em um ótimo livro, publicado em 2008, chamado Fuimos campeones: la dictadura, el mundial 78 y el mistério del 6 a 0 a Peru. Um livro sobre uma única partida, investigada à exaustão.

Sem conseguir nenhuma prova concreta das pretensas negociatas e propinas, Gotta argumenta que é indiscutível que a seleção peruana foi para aquele jogo sem nenhuma motivação, simplesmente para cumprir tabela, ao mesmo tempo em que recebia pressões vindas de todos os lados, vivenciando um clima de intimidação e medo.

Gotta conclui narrando um episódio – segundo ele, negado por metade dos jogadores peruanos e contado em detalhes pela outra metade – que teria causado profundo impacto sobre Quiroga, Cubillas e cia: a ida do ditador argentino, Gen. Jorge Videla, ao vestiário peruano, pouco antes do início da partida, acompanhado de Henry Kissinger, sob o pretexto de “saudar os irmãos latino-americanos”.

Tendo ocorrido no país dos sequestros e da tortura, a visita do ditador ao lado de um dos homens mais influentes do mundo, teria repercutido tão fortemente sobre os jogadores peruanos que, nas palavras de Gotta, “vindas do inconsciente essas questões fazem com que os músculos não respondam plenamente”. Assim, em outro episódio bastante questionável de sua biografia, Henry Kissinger também teria participado de um dos eventos mais vergonhosos da história do esporte mundial, em apoio a uma das várias ditaduras que ajudou a implantar.The Conversation

Adriano de Freixo, Professor de Relações Internacionais, Universidade Federal Fluminense (UFF)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

FREIXO, Adriano de. Henry Kissinger, a ditadura na Argentina e a Copa do Mundo de 1978. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 9, 2023.
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