169.30

Insatisfações: um desabafo sobre a violência no futebol

Felipe Torres Benevides 30 de julho de 2023
Torcidas
Fonte: reprodução

São Paulo, 10/07/23, 17h:38min.

A segunda-feira chegou e logo se foi, junto a ela mais um acontecimento marcante e banalizado pela cultura das notas de imprensa. Uma jovem de 23 anos se foi tão rapidamente quanto a fumaça da xícara de café que repousa sobre minha mesa enquanto escrevo estas poucas palavras mistas. Cada letra reflete uma mistura de lamento, de indignação, de profunda reflexão e, por que não incluir a raiva também?

No último sábado, dia em que tudo aconteceu, eu estava numa festa de aniversário e acompanhava pela TV do estabelecimento mais um jogo do meu time de coração, o Palmeiras, contra a única agremiação que tem conseguido fazer frente a ele nos últimos anos, o Flamengo. Enquanto conversava, percebi uma movimentação diferente no jogo. Os jogadores levavam a mão aos olhos, tossiam e a partida foi pausada por longos minutos em duas ocasiões. Lembro de ter pensado: “esses imbecis, de novo?”

Na transmissão, foi relatado que uma mulher havia sido atingida no pescoço por uma garrafa de vidro estilhaçada e estava sendo socorrida. Era oficial, a barbárie de sábado à noite estava instaurada. Hoje à tarde a confirmação de que esta mesma mulher havia falecido, vítima de mais um episódio de violência no futebol. Uma vítima, que não foi a primeira e não será a última a perder a vida diante da incapacidade do convívio pacífico de tantos outros.

Palmeiras Gabriela
Telão do Allianz Parque homenageia torcedora Gabriela Anelli, morta em confronto de torcedores. Foto: reprodução/Cesar Greco/Palmeiras

Este caso me trouxe algumas lembranças, umas recentes e uma bem mais antiga. Esta última remonta à minha infância e é sobre ela que começarei a falar. Há alguns bons anos, tive meu primeiro contato com a violência relacionada ao futebol, um torcedor do Corinthians foi brutalmente assassinado por torcedores palmeirenses, na ocasião, uma enxada foi utilizada como arma. Este episódio nunca saiu de minha mente, foi a primeira vez que percebi que poderíamos morrer ou matar por um jogo de bola.

Um dos pontos mais chocantes deste caso é a arma do crime. Uma enxada é grande, pesada, difícil de transportar, penso no esforço e no nível que estes criminosos1 chegaram para atingir o único objetivo pelo qual valia o ingresso: exterminar outro. Este foi meu primeiro, mas estava longe de ser o meu último caso de violência no futebol.

Tenho me dedicado a compreender o fenômeno do racismo no futebol espanhol em suas múltiplas faces, isso implica em olhar para todos os aspectos que compreendem o universo futebolístico, e neste exercício, me deparo com episódios, que extrapolam a questão do racismo, mas que permanecem vinculados à questão da violência, inclusive no Brasil.

Em um destes casos recentes, esbarrei em um caso de xenofobia. Dessa vez, não foi um torcedor ou uma torcida, foi um jornalista em rede nacional.2 Esse caso foi inédito em meus 27 anos de idade, nunca havia presenciado um programa esportivo ser o palco de uma ofensa a um treinador estrangeiro e sem nenhum tipo de resposta3 ao comportamento do agressor, nenhuma nota sequer.

Que o comportamento de Abel Ferreira em muitas ocasiões à beira do campo tem sido e deve ser reprovado, não há dúvidas. No entanto, quando instituições lançam notas acusando-o, jornalistas o agridem verbalmente com frases que vão de “colonizador” à “babaca” sob a justificativa de uma resposta ao comportamento dele, quando tantos outros das séries A, B, C e D tem o mesmo tipo de comportamento e não aparecem na pauta ou nas mesmas notas, é no mínimo suspeito. Nos últimos dois meses, torcedores de Santos4 e Corinthians tem protagonizado episódios violentos de diversos tipos. O mais recente vitimou o atleta corintiano Luan em um motel!5

Lanço esse desabafo para ter condições de afirmar o óbvio: a violência no futebol é mais comum, mais presente do que se imagina e ocorre sob diversas formas e por diferentes atores, sendo que, cada um dos que compõem o universo futebolístico carrega a culpa (não é só responsabilidade dos agentes públicos). A violência, como em outros setores da vida está sendo banalizada e fazendo mais e mais vítimas, sendo a da vez: Gabriela. Infelizmente, perguntar até quando não cabe neste contexto, é mais assertivo questionar quem é a (o) próxima (o)?

Notas

1 Taxar as torcidas organizadas de bandidos e criminosos não contribui para o enfrentamento do problema. Aliás, só mascara a situação como pode ser verificado em vários países e situações diversas. Seja no caso dos ultras na Europa, dos barra bravas da América do Sul, ou mais especificamente do caso brasileiro, das organizadas. O termo “criminosos” aqui empregado é direcionado aos executores do ato (o mesmo vale para as observações das notas 4 e 5).

2 No dia 11/06/2023, o treinador Abel Ferreira e o jogador são paulino, Jonathan Calleri, se desentenderam e o técnico palmeirense empurrou o atleta após uma falta mais dura. Após o jogo, ambas as partes se entenderam no próprio campo. Analisando a situação o jornalista (que preferimos não referir o nome), na ocasião, o profissional disse as seguintes palavras: “O Abel já demonstrou que é um profissional muito competente e uma pessoa íntegra, mas em algumas circunstâncias ele é babaca, como foi babaca quando tirou o celular das mãos de um profissional de imprensa, como foi babaca hoje com o Calleri”.

As palavras do jornalista somam-se à nota da Federação Nacional dos Atletas de Futebol (FENAPAF), tal nota foi devidamente rebatida pela Federação Paulista de Futebol (FPF), e uma série de casos em que a “mão da crítica” sobre Abel é mais pesada do que com colegas de profissão. Aliás, o comportamento destemperado, inclusive, é cultuado no folclore do futebol brasileiro e os exemplos podem ir ao infinito. Em relação aos seus colegas de profissão (treinadores), que tem comportamento similares, não há sequer paridade nos termos endereçados a eles nas análises do comportamentais ou até mesmo tempo de tela.

Destaca-se o fato do programa “Globo Esporte”, ter utilizado algumas vezes, episódios de descontrole de Abel Ferreira ocorridos em um final de semana e realizado matérias sucessivas até a quarta-feira da semana seguinte discutindo o seu comportamento. Tal postura não é adotada em relação aos demais treinadores, que são tão explosivos quanto à beira do gramado.  O que nos leva a questionar a intencionalidade por trás e se pensam nos impactos à imagem de Abel.

Com esta observação não pretendo passar pano ao treinador palmeirense. Nem desqualificar a atividade da imprensa ou de qualquer instituição. Apenas baseio-me na constatação que qualquer conduta antiprofissional ou que passe dos limites da esportividade deve ser objeto do julgamento, única e exclusivamente, dos tribunais e instituições esportivas competentes e isso se aplica a todos os treinadores, jogadores e dirigentes.

Se quisermos um futebol com menos violência, precisamos urgentemente refletir e discutir a respeito dos impactos que determinados fatos tem tomado no futebol (das declarações de treinadores, comentários dos especialistas às brigas de torcidas), assim como, pensar sobre o tratamento dado por cada um dos atores envolvidos no universo futebolístico a estes acontecimentos.

3 Na ocasião da análise do jornalista, ele não foi interrompido por seus colegas e a emissora não se pronunciou em momento algum sobre o caso. Vale destacar ainda o fato de Abel Ferreira já teve inclusive sua mãe ofendida por um profissional de televisão. Dessa forma, o que expressei na segunda observação também se aplica aqui.

4 Alguns elementos das torcidas organizadas de Santos e Corinthians realizaram recentemente protestos violentos e foram truculentos e intimidatórios com os atletas. Torcedores do Santos, inclusive, invadiram o gramado para atacar jogadores.

5 Ocorrido no dia 04/07/2023. Destaca-se que segundo reportagem do Fantástico (10/07/2023), alguns dos agressores estavam envolvidos na morte de um jovem torcedor boliviano, que foi atingido por um sinalizador há dez anos.

Referências

Fenapaf pede ao STJD punição de Abel Ferreira, do Palmeiras: “Extrapola os limites de respeito”. Disponível em: <https://www.gazetaesportiva.com/times/palmeiras/fenapaf-pede-ao-stjd-punicao-de-abel-ferreira-do-palmeiras-extrapola-os-limites-de-respeito/>. Acesso em: 10 jul. 2023.

FPF. Nota Oficial – Abel Ferreira. Disponível em: <https://futebolpaulista.com.br/Noticias/Detalhe.aspx?Noticia=23013>. Acesso em: 10 jul. 2023.

Jornalista da ESPN diz que Abel Ferreira, do Palmeiras, tem “licença para ser babaca”. Disponível em: <https://www.terra.com.br/esportes/palmeiras/jornalista-da-espn-diz-que-abel-ferreira-do-palmeiras-tem-licenca-para-ser-babaca,5110a24cf5ab036b9b59355953fc112fdqnquytm.html>. Acesso em: 10 jul. 2023.

“Luan dentro do caixão”, críticas a Duilio e “time sem vergonha”: torcedores do Corinthians protestam em frente a CT. ESPN.com. Disponível em: <https://www.espn.com.br/futebol/corinthians/artigo/_/id/12008455/torcedores-corinthians-protestam-luan-dentro-do-caixao-criticas-a-duilio-e-time-sem-vergonha>. Acesso em: 10 jul. 2023.

Neto detona protesto da torcida do Corinthians: “Passou de todos os limites”. Disponível em: <https://www.band.uol.com.br/esportes/os-donos-da-bola/noticias/neto-detona-protesto-da-torcida-do-corinthians-passou-dos-limites-16611341>. Acesso em: 10 jul. 2023.

Torcedores que agrediram jogador Luan em motel estavam envolvidos em morte em jogo na Bolívia. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/07/10/torcedores-que-agrediram-jogador-luan-em-motel-estavam-envolvidos-em-morte-em-jogo-na-bolivia.ghtml>. Acesso em: 10 jul. 2023.

Torcida do Corinthians protesta em CT contra diretoria, medalhões e Luan. Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/05/06/torcida-do-corinthians-protesta-em-ct-contra-diretoria-medalhoes-e-luan.htm>. Acesso em: 10 jul. 2023.

VÍDEO | Jornalista critica Abel Ferreira: “É um babaca” – Vídeos do Palmeiras – Nosso Palestra. Disponível em: <https://nossopalestra.com.br/palmeiras/video/video-jornalista-critica-abel-ferreira-e-um-babaca/>. Acesso em: 10 jul. 2023.

Vídeo: Cássio é agredido em invasão de torcedores do Santos ao gramado da Vila Belmiro. ge. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2022/07/13/cassio-e-agredido-em-invasao-de-torcedores-do-santos-ao-gramado-da-vila-belmiro.ghtml>. Acesso em: 10 jul. 2023.

VÍDEO: Veja o momento em que a torcida do Santos joga bombas no gramado da Vila Belmiro. Terra. Disponível em: <https://www.terra.com.br/esportes/santos/video-veja-o-momento-em-que-a-torcida-do-santos-joga-bombas-no-gramado-da-vila-belmiro,75573ad5747d5257ac1af8ce77d9f654rr1rxww0.html>. Acesso em: 10 jul. 2023.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Felipe Torres Benevides

Bacharel em Administração pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). Pesquisador do Projeto Estudos da Diáspora: racismo e antissemitismo (LABÔ e Instituto Brasil-Israel - IBI), onde desenvolve pesquisa sobre racismo no futebol espanhol.

Como citar

BENEVIDES, Felipe Torres. Insatisfações: um desabafo sobre a violência no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 30, 2023.
Leia também:
  • 179.9

    Jogo 4: Tango em redondilha menor: Rosário 0 a 1 Atlético Mineiro

    Gustavo Cerqueira Guimarães
  • 179.8

    Interconexões culturais e econômicas no mundo futebolístico

    Viviane Silva de Souza, Anderson David Gomes dos Santos
  • 179.7

    “A Taça do Mundo É Nossa!” Campo político e campo esportivo: década de 1950 (1ª parte)

    Denaldo Alchorne de Souza