172.6

Intolerância

Marcelo Weishaupt Proni 6 de outubro de 2023

No jogo Santos 4×1 Vasco, realizado recentemente (em 01/10/2023), houve um lance que gerou muita polêmica entre comentaristas esportivos.

Soteldo muitas vezes age de modo irresponsável, é verdade, mas havia um atenuante nesse episódio que deve ser levado em consideração: ele quis fazer “uma graça” para uma torcida que vinha sofrendo muito nos últimos meses. Faltou respeito com o adversário, mas não foi uma provocação ofensiva, nem houve intenção de humilhar um companheiro de profissão.

Muitos comentaristas estão comparando o gesto debochado de Soteldo com as jogadas irreverentes de Garrincha. Naquela época, o futebol brasileiro era mais alegre. As torcidas podiam fazer provocações dentro do estádio, e isso não era justificativa para começar uma briga. Dizem que, atualmente, o futebol é mais profissional, que os jogadores possuem um código de ética próprio e não podem aceitar atitudes desse tipo. E que os clássicos devem ser disputados com torcida única para evitar confrontos. Não concordo. 

Soteldo foi inconsequente, foi o pivô de uma confusão que prejudicou seu time. Ele mesmo não poderá jogar o próximo confronto, clássico contra o Palmeiras. Alguns árbitros disseram que houve “conduta antiesportiva”. Pessoalmente, não vejo graça quando um jogador sobe em cima da bola, ou ameaça um passe e chuta o ar. Mas, nesse contexto, dizer que a brincadeira foi uma conduta antiesportiva é, certamente, um exagero.

Na verdade, a confusão só foi armada por causa da reação dos jogadores adversários. A intolerância diante de uma brincadeira sem graça é o que preocupa. É verdade que os jogadores do time que estava perdendo o jogo ficaram nervosos, mas estamos falando de uma atividade profissional muito bem remunerada e com muita visibilidade na mídia. É obrigação desses profissionais saber vencer e saber perder, sem ficar indignados com uma atitude debochada.

O problema maior, na minha opinião, é a falta de punição exemplar para Sebastián Ferreira, o jogador que partiu para a agressão física, jogando Soteldo para fora do campo e mostrando claro descontrole diante de um gesto desconcertante, desnecessário, mas inofensivo.

E a interpretação do árbitro de vídeo reforça meu argumento, pois ele não interpretou a ação faltosa de Ferreira como agressão, ainda que desproporcional e intencional. Ou seja, é como se o VAR, ao atenuar a infração, considerasse que o jogador tivesse o direito de reagir daquela forma porque se sentiu ofendido. Provavelmente, é uma herança de um tempo em que muita gente podia até matar “em defesa da honra”, de uma época em que a “cordialidade” incivilizada era vista como um traço constitutivo de uma sociedade machista.

Pode parecer estranho, para muitos de nós, constatar que predomina uma mentalidade de “tolerância zero” em relação a uma brincadeira (que agradou alguns e desagradou outros) e, ao mesmo tempo, de “tolerância velada” com as reações violentas que interromperam o espetáculo (e mudaram completamente o enredo do espetáculo).

É uma discussão polêmica, reconheço. Há diferentes posicionamentos e bons argumentos para sustentar as diferentes opiniões. Mas é importante dizer que cada uma dessas interpretações revela diferentes maneiras de convivência cotidiana, diferentes modos de combater a intolerância e a injustiça, diferentes formas de defender as instituições e a ordem legal.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcelo W. Proni

Docente do Instituto de Economia da UNICAMP.

Como citar

PRONI, Marcelo Weishaupt. Intolerância. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 6, 2023.
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