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A invenção do Fla-Flu: breves apontamentos

A expressão Fla-Flu foi uma criação do jornalismo esportivo, mais especificamente do jornalista Mário Filho, nos idos de 1930. A vulgarização do termo, que adaptava o oral para o escrito por meio de um trocadilho fonético, até certo ponto eufônico, favoreceu a aproximação do leitor do jornal com a fala do dia a dia dos torcedores, potenciais consumidores do periódico daquele jornalista, o Jornal dos Sports.

A formalidade do nome dos clubes, incluindo palavras em inglês, como Fluminense Football Club, cedeu lugar à oralidade e à coloquialidade crescente nos esportes. A linguagem do rádio, que se instalava no imaginário do período, também foi um fator contribuinte para a modificação do modo de escrita dos cronistas e dos repórteres da imprensa esportiva.

Tratou-se ademais de uma estratégia de popularização do clássico e, em particular, de nacionalização dos dois clubes do Rio de Janeiro naquela década. Enquanto Fluminense e Botafogo personificavam o “clássico” mais antigo, e Flamengo e Vasco traduziam o confronto entre zona sul e zona norte da cidade, o Fla-Flu cristalizou-se como o duelo mais emblemático da capital do país, na medida em que o contraste de cores vivas – vermelho e preto versus o verde-branco-grená – acentuava a disputa que, em campo, tendia a acentuar suas rivalidades.

Lembre-se que o Fluminense é tricampeão carioca pela segunda vez (1936-1937-1938) em cima do Flamengo. Este, por sua vez, vence no ano seguinte, 1939, e impede o inédito tetracampeonato, almejado pelo tricolor desde o triênio 1917-1918-1919. Na sequência, o Fluminense volta a ser bicampeão do torneio em 1940 e 1941. O que se vez depois é a conquista do primeiro tricampeonato do Flamengo: 1942, 1943 e 1944.

Nesse contexto, o discurso vai sendo conformado pela imprensa acerca da mística Fla-Flu. Já na final de 1936, disputada no estádio das Laranjeiras, Mario Filho organizou o “Duelo de Torcidas”, em que um júri dava notas e premiava as torcidas mais festivas, mais animadas e mais originais, como o fazia, desde 1932, com os desfiles carnavalescos. Quando o Maracanã foi inaugurado e os dois clubes fizeram sua primeira decisão, em 1951, um novo “Duelo de Torcidas” foi promovido para atrair mais público ao novo estádio.

O fato de ser, nas origens, uma rivalidade gestada entre times vizinhos e dissidentes – a seção de futebol do Flamengo é formada na Rua Paissandu, ao lado do campo das Laranjeiras, após uma dissidência interna na equipe do Fluminense nos anos 1910 – deu mais ingredientes ao confronto clubístico. Neste caso, a narrativa foi concebida em termos dramáticos por Nelson Rodrigues, ao referir-se ao Fla-Flu como “os irmãos Karamazov” do futebol, em alusão ao livro do romancista russo Dostoievski e a seus dois protagonistas que encarnam o amor e o ódio entre si.

30/4/2017- Rio de Janeiro- RJ, Brasil- Campeoanto Carioca: Fluminense x Flamengo, no estádio do Maracanã. Foto: Gilvan de Souza / Flamengo
A final do Campeonato Carioca de 2017 tem como duelo o Fla-Flu. Foto: Gilvan de Souza/Flamengo.

Se a transmissão radiofônica nacionalizou os clubes do Rio de Janeiro, capital da República até 1960, o cinema, em particular a produtora Canal 100, da família Niemayer, explorou em imagens tal contraste cromático das arquibancadas, nos jogos do rubro-negro contra o tricolor. Isto já na segunda metade do século XX, em meio à chamada era Maracanã, quando o Fla-Flu levava multidões de mais de 150 mil espectadores aos estádios, a exemplo das finais dos campeonatos de 1963 e 1969.

Pode-se dizer assim que a centralidade do Fla-Flu no imaginário nacional, que se projeta em termos internacionais – não será estranho se um estrangeiro mencionar o embate quando falar em Brasil e em futebol –, perdurou entre as décadas de 1930 e 1980. O balizamento acompanha a própria construção do estilo de jogo e da identidade nacional, época em que diversos jogadores dos dois times passaram pela Seleção brasileira, a exemplo de Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Batatais, Félix, entre outros.

Os anos 1980 assistiriam a finais memoráveis entre as duas equipes, com predominância para as vitórias do Fluminense, da dupla “casal 20”, Assis e Washington, em partidas emocionantes em meio à multidão de torcedores. Embora derrotado em âmbito estadual, a Era Zico marcou época e manteve a superioridade do Flamengo, ampliando a popularidade nacional do time da Gávea.

No contexto da redemocratização, as partidas finais da dupla Fla-Flu foram marcadas por politizações, com gritos nas arquibancadas e nas gerais que ecoavam a campanha nas ruas pelas Diretas Já e por Tancredo Neves. Em tom de provocação, a torcida do Flamengo desfralda a faixa “O Fla não Malufa”, em alusão a jogadores do Fluminense, que manifestaram apoio a Paulo Maluf, canditado do PDS e representante dos estertores da ditadura militar nas eleições presidenciais indiretas do ano de 1985.

A rivalidade seria ainda revivida no decênio seguinte, quando da decisão de 1995, que coincidia com as comemorações do centenário de fundação do Clube de Regatas do Flamengo (1895). O fatídico “gol de barriga” de Renato Gaúcho, nos últimos minutos da partida, deu o tom provocativo da vingança tricolor contra os rubro-negros.  Graças a estratégias urdidas, entre outros, pelo dirigente vascaíno Eurico Miranda, a rivalidade entre Flamengo e Vasco suplantou a mística Fla-Flu e vem preponderando nos últimos vinte anos. Mas decisões como a deste campeonato estadual de 2017 permitem novamente aflorar representações coletivas que ficaram ancoradas no imaginário do torcedor no decorrer do século XX.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. A invenção do Fla-Flu: breves apontamentos. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 9, 2017.
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