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João Rubinato, o dono da mais corintiana das malocas

Entre agosto e setembro de 1910, separados por menos de um mês, nasceram aquelas que seriam duas das maiores expressões populares da cidade de São Paulo. São 110 anos de Corinthians e Adoniran Barbosa, o Clube e o Poeta do Povo.

Adoniran Barbosa. Foto: Reprodução/Pandora Filmes.

“O poeta do povo continua vivo, imortal. O poeta do povo está sorrindo como nunca com você, Corinthians. Sorrindo feliz, cheio de vida. Vida no peito e na alma de todos os corintianos que, como ele, sabem que você, Corinthians, está sempre um eterno e fantástico poema do povo.

Poetas e poemas do povo não morrem nunca, jamais!

Poetas do povo como você, Adoniran, e poemas do povo como você, Corinthians, parecem estar sempre renascendo minuto por minuto, verso por verso, poetas e poemas do povo parecem ter o dom da imortalidade da vida.

Corinthians Campeão de 1982, o grande poeta do povo e de todos os corintianos está nesse momento agradecendo a você, Corinthians.”

Com essas palavras, Osmar Santos homenageou o Corinthians campeão paulista de 1982 e o corintiano Adoniran Barbosa, que havia morrido apenas 19 dias antes de ver seu time do coração vencer o São Paulo na decisão com o “gol Rita Lee”. Com seu talento, o Pai da Matéria descreveu com perfeição a relação entre Corinthians e Adoniran, ou João Rubinato.

“Si o senhor não está lembrado, dá licença de conta…”

João Rubinato era o nome de batismo de Adoniran Barbosa, filho de imigrantes nascido em 6 de agosto de 1910, em Campinas. Menos de um mês depois, em 1º de setembro, operários do Bom Retiro fundaram o Sport Club Corinthians Paulista. A trajetória dos dois rebentos de 1910 se cruzaria inevitavelmente.

São Paulo é uma metrópole diversa, plural e com muitos rostos. No entanto, poucas personalidades definem tão bem a capital paulista quanto Adoniran Barbosa. Quando o assunto é futebol, apesar de Palmeiras, São Paulo, Santos, Portuguesa e tantos clubes terem torcidas muito bem representadas na cidade, o Corinthians tem a maior parcela de torcedores ou, como preferem alguns, eles têm um bando de loucos.

O berço de ascendência italiana poderia ter definido a paixão futebolística de João. A partir de 1914, com a fundação do Palestra Itália — futuro Palmeiras — , todo e qualquer imigrante italiano torceria para o clube da colônia.

Não o jovem João Rubinato, que se mudou com a família para a capital ainda na adolescência e iniciou seu processo de formação prática como especialista na metrópole. Já adulto, João seria o criador de Adoniran Barbosa, um tipo único do cotidiano paulistano, um cronista da São Paulo popular e periférica.

Misturando o sotaque caipira do interior do estado com os trejeitos dos imigrantes italianos, Adoniran era a caricatura da Zona Leste de São Paulo. A região foi muito retratada na obra do compositor, foram cenários de músicas Vila Ré, Mooca, Brás, Penha e outros bairros.

Ninguém versou tão bem sobre o cotidiano da periferia como Adoniran. Composições como “Saudosa Maloca” e “Despejo na Favela” falam sobre os impactos do crescimento urbano desordenado que empurrava os mais pobres para a periferia sob condições péssimas de moradia e com o risco constante de desapropriações.

“Coríntia — Meu amor é o Timão”

O olhar de Adoniran Barbosa captou a realidade da população esquecida e como o Poeta do Povo, transformou essa vivência em samba com cadência na Terra da Garoa. Adoniran não era óbvio. Menos óbvio ainda era o Corinthians, time fundado por proletários com nome inspirado em clube inglês e que ganhou o povão.

Adoniran Barbosa poderia até ser um “personagem” criado pelo genial João Rubinato, mas isso não significa que fosse um papel encenado. A vida real de Adoniran era vista em diversos aspectos de sua obra. Além disso, a paixão pelo “Coríntia” era inegável e o arrastava para os jogos do Timão.

Segundo relatos da época, o artista era presença cativa nas partidas do Alvinegro, conhecia as escalações e a história do clube. Eram outros tempos, o torcedor não tinha a camisa do time, mas Adoniran teve até carteirinha de sócio do Corinthians.

Carteirinha de Adoniran Barbosa como associado do Corinthians. Foto: Reprodução.

A paixão ficou registrada em textos e uma música composta por Adoniran Barbosa. Num desses textos, a declaração de amor ao clube foi escrita no linguajar que consagrou o artista, o dialeto do trabalhador de sua época:

“Sô corintiano, meu amigo, desde 1910. Quando tinha déis ano, comecei a gostá do Corintiá … Mais agora, é o seguinte: Corintiá tá como em 54, muito amor, muito sangue, muita valentia pela camisa. Continui assim, Corintiá, e ninguém segura nóis. Viva o Corintiá campeão. E, óia, amigo, vô assiná em cruiz porque num sei escrevê, tá bão? E viva Lauro D’Ávila, autor do lindo hino do Corintiá.”.

“Coríntia a cada minuto, dentro do meu coração”

Na música que dedicou ao clube, Adoniran fala sobre as várias localidades onde os corintianos viviam, como um bom disseminador do sentimento de ser Corinthians, ele cativa a torcida pelo Alvinegro. A letra consagra o cotidiano da periferia:

Belém, Vila Maria e Mooca
E São Paulo em extensão
Mogi, Guarulhos e Itaquera
Tudo vibra Coringão
É o Coríntia de nós todos
É Paulista, é campeão.

Não à toa, Adoniran Barbosa pode ser considerado o grande corintiano do século XX, um dos maiores craques da história alvinegra, responsável pela grandeza do clube fora de campo.

Em reconhecimento, a torcida do Corinthians apelidou o estádio do Pacaembu de “Saudosa Maloca”, em referência a uma das mais famosas canções do autor de “Trem das Onze”, “Tiro ao Álvaro”, “Iracema”, “Samba do Arnesto” e tantas outras crônicas paulistanas musicadas.

Quase 40 anos depois da morte do Poeta do Povo, nem a São Paulo que tão bem descreveu e nem o Corinthians que tanto amou existem mais, pois mudaram muito. O Time do Povo tem deixado de receber esse povo pelo processo de arenização dos estádios brasileiros.

No dia do aniversário do clube, o anúncio do naming rights é um claro sinal que o Corinthians está se adequando rapidamente aos novos padrões mercadológicos e faz isso também para não ficar atrasado. Talvez se estivesse por aqui, Adoniran encerrasse essa conversa com um conselho ao povo corintiano em forma de alento nos versos de “Saudosa Maloca”:

Os homes está ‘cá razão’
Nós arranja outro lugar
Só se conformemos quando o Joca falou
“Deus dá o frio conforme o cobertor”.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. João Rubinato, o dono da mais corintiana das malocas. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 7, 2020.
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