João Saldanha: o arquiteto do tri
Craque com os microfones, Saldanha se aventurou como jogador e chegou ao mais cobiçado cargo de treinador no futebol brasileiro, deixando pronta a seleção que conquistou o mundo e trouxe o tri para casa em 1970
João Alves Jobim Saldanha, o conhecido João Saldanha, nasceu na tradicional cidade de Alegrete, no Oeste do Rio Grande do Sul, em 3 de julho de 1917. Ainda na infância mudou-se com seus pais para Curitiba, onde teve seus primeiros contatos com o esporte, elemento que ditou o ritmo da vida do homem que ficou conhecido como João Sem Medo.
Morando próximo às instalações do Atlético Paranaense, João foi se tornando íntimo do futebol quando passou a frequentar com assiduidade os treinos das categorias de base do Furacão. Depois de alguns anos no Paraná, a família Saldanha retornou ao Rio Grande do Sul para uma breve temporada antes de partir rumo ao Rio de Janeiro em 1931, ano em que João completou 14 anos.
Lá no Rio foi onde João começou a definir o seu futuro. Antes de se tornar lenda da crônica esportiva e do futebol, pôs sua paixão pelo jogo lado a lado com a ciência jurídica e entrou para a então Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Por lá, formou-se em Direito, mas não seguiu adiante com a profissão, pois falou mais alto o sentimento pelo esporte que conheceu nos campos curitibanos e, depois de estudar jornalismo, e o apreço pelos microfones que usaria para comentar o futebol brasileiro que ganhava o mundo inteiro com os feitos de Pelé e companhia.
Experiência vitoriosa no Botafogo
Contudo, antes de começar sua carreira no jornalismo, Saldanha se arriscou na beira dos campos em 1957, quando aceitou um grande desafio e assumiu o comando do Botafogo, onde orquestrou o alvinegro carioca recheado de estrelas como Nilton Santos, Garrincha e Didi, levando o Glorioso ao título estadual daquele ano, quando bateu o Fluminense na final com uma sonora goleada por 6 a 2. Antes dessa fase, João já havia defendido a camisa do Fogão como jogador. No entanto, a carreira com a bola nos pés não durou muito e foi bem menos premiada que a de treinador e de cronista.
O jornalismo prático ganhou destaque na vida do alegretense na década de 1960, quando ele se juntou à equipe da Rádio Guanabara, que outrora se tornaria no que hoje conhecemos por Bandeirantes AM. Este foi o pontapé da carreira brilhante do homem de comentários simples e enfáticos, capazes de serem entendidos por homens mais eruditos e também pelos menos letrados que habitavam localidades onde as ondas do rádio chegavam fazendo ecoar a voz carismática de João Saldanha.
O desafio da Seleção Brasileira
Os comentários lúcidos mostravam que a experiência deu a Saldanha um profundo conhecimento do futebol e aliado à vivência de dois anos como treinador do Botafogo, no fim da década de 50, acabou gerando para ele uma oportunidade de ouro. O então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), João Havelange, o convidou para dirigir a Seleção Brasileira no caminho rumo ao Mundial do México, em 1970. O aceite aconteceu e em 4 de fevereiro de 1969, João largou os microfones e foi à beira do campo para ser eternizado no papel de arquiteto do tri. O cartola justificou o convite alegando que com Saldanha no comando, havia esperança de que os jornalistas fizessem menos críticas à Seleção Brasileira.
O objetivo foi alcançado com glória máxima. Sob o comando de João, a Seleção permaneceu invicta na disputa das eliminatórias para a Copa de 1970. O país inteiro estava empolgado com aquele time que havia voltado a encantar a nação.
Diante de todo o cenário favorável, é importante observar outra perspectiva da vida de Saldanha. Além de sua paixão pelo futebol, João carregava convicções ideológicas muito fortes. Ele era membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e militante em favor da causa no Brasil.
Esse seu lado era tão famoso quanto os seus feitos de treinador ou de cronista esportivo. Tanto que causou certo espanto a sua nomeação para comandar a seleção canarinho em pleno governo militar.
Com tudo isso, sejam as suas posições político-ideológicas motivo ou não, a sua passagem pela seleção não durou muito. Depois de conquistada a vaga para o Mundial, começaram as pressões por parte do governo para que ele convocasse determinados jogadores que não eram de seu agrado. João negou-se a fazê-lo, e sua negação lhe rendeu o apelido de “João sem medo” dado pelo colega cronista e igualmente brilhante, Nelson Rodrigues.
João estava batendo de frente às ordens do Presidente Médici, que pessoalmente lhe indicou jogadores a serem selecionados para o mundial. Em um dado momento, Saldanha falou com um repórter sobre uma das indicações de Médici, que queria o atacante Dario, o Dadá Maravilha na seleção. A resposta do treinador brasileiro foi contundente e ecoa até hoje como por sua perspicaz audácia: “Ele escala o ministério, eu convoco a seleção”.
Além do apelido, a negação de João lhe custou o cargo: duas semanas após sua afrontosa resposta, foi demitido às vésperas do Mundial, sob a justificativa oficial de que os últimos resultados do selecionado brasileiro em amistosos preparatórios para a Copa do Mundo não foram suficientemente bons.
Sobre a demissão do arquiteto do tri, o jornalista Carlos Ferreira Vilarinho, em seu livro “Quem derrubou João Saldanha”, conta que após o Mundial vencido pelo Brasil sob o comando de Zagallo, o presidente da CBD, João Havelange, confidenciou que Saldanha foi demitido por imposição de Emílio Garrastazu Médici, que não podia admitir que um opositor tão notório como João Saldanha voltasse do México consagrado e venerado pelo povo brasileiro.
Após a sua saída da seleção, o João sem medo continuou sua carreira no jornalismo. Viveu intensamente aquilo que escolheu para si por mais duas décadas. Ele tornava-se cada vez mais uma autoridade no futebol, sempre aliando sua paixão às lutas ideológicas e seguindo nesse ritmo até o último dia de sua vida, em Roma, em 12 de julho de 1990, quando ele acabara cobrir a seleção que um dia comandou, na competição que jamais teve o prazer de disputar.
João foi para a Itália a contragosto de seu médico. Ele sofria com um enfisema pulmonar, e havia sido proibido de viajar para fazer a cobertura da Copa do Mundo daquele ano. Saldanha não titubeou em pegar as malas e rumar ao velho mundo. A Copa de 1990 já batia na porta e ele não quis ficar de fora, deixou aflorar mais uma vez a figura do João sem medo e enfrentou a possibilidade de perder o seu bem mais precioso, a vida, para fazer aquilo que mais amava e que já era parte de si, quase como que sua própria identidade.
Antes de ir, deu a alguns colegas cronistas que o aconselhavam a não viajar, a seguinte resposta: “Se eu tiver que morrer, vou morrer aqui, lá, em qualquer lugar. Um dia, vamos todos morrer, não é? Então, se for esta a hora, eu prefiro morrer fazendo o que eu gosto”