166.4

Léo Moura e a queda de Ícaro

Fabio Zoboli 4 de abril de 2023

“O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu”

(Tendo a Lua – Paralamas do Sucesso)

Léo Moura é o sétimo jogador que mais vestiu a camisa do Flamengo, 519 vezes. Durante 10 anos, sua plumagem negra de urubu o fez alçar voos junto com a nação, até o fatídico dia de sua queda. Leonardo da Silva Moura caiu e suas asas derreteram como as de Ícaro, o astuto jovem grego que tinha o sonho de voar.

Léo Moura, nascido em 23 de outubro de 1978, iniciou sua carreira nas categorias de base do Botafogo, no final da década de 1990, e posteriormente subiu para o profissional no mesmo time. A título de curiosidade alegórica, Léo Moura iniciou e finalizou sua carreira em um “Botafogo”. Sua última partida como profissional foi vestindo as cores do Fogão da Paraíba – o Xerifão do Nordeste. Pelo Fla, se despediu em um jogo contra o Botafogo, além, é claro, de ter ganho o tri estadual em cima do time da “estrela solitária” (2007, 2008 e 2009). “Choro” só de lembrar!

Fora o intervalo de 10 anos que Léo Moura jogou pelo Flamengo, de 2005 a 2015, a sua carreira foi um verdadeiro Varekai. O termo deriva da linguagem Romani[1] e significa “onde quer que seja”. Léo Moura, antes de jogar no rubro negro carioca passou por Botafogo, Linhares, Germinal Beer (Bégica), ADO Den Haag (Holanda), Vasco, Palmeiras, São Paulo e Fluminense. Quando saiu do Flamengo jogou por Strikers (EUA), Goa (Índia), Metropolitano, Santa Cruz, Grêmio e Botafogo da Paraíba. Léo foi um verdadeiro nômade, um cigano da bola, jogou “onde quer que seja”.

Porém, no Flamengo Léo Moura mostrou que conseguia ser o oposto de ambulante, mostrou que sabia fixar residência. Lógico que por nunca ter ficado mais de duas temporadas em um clube e por ter jogado nos três rivais do Rio, Léo chegou à Gávea cercado de desconfianças. Mas no Flamengo, Léo Moura “criou asas e voou”. Foi no urubu carioca que Léo se tornou ídolo, ganhando duas Copas do Brasil (2006[2] e 2013) e o Campeonato Brasileiro de 2009. Além dos três títulos nacionais, Léo Moura conquistou cinco vezes o campeonato carioca (2007, 2008, 2009, 2011 e 2014). Pelo Flamengo também foi eleito por quatro anos consecutivos o melhor lateral direito do campeonato brasileiro (2006, 2007, 2008 e 2009). Depois do lendário Leandro, Léo Moura é, com toda a certeza, o melhor lateral direito da história do Flamengo.

A última partida oficial pelo Flamengo, aconteceu no dia 1º de março de 2015, contra o rival Botafogo em jogo válido pelo campeonato carioca. Neste dia, o Flamengo foi derrotado pelo placar mínimo (1×0). No entanto, três dias depois, em jogo festivo contra o Nacional do Uruguai, a torcida se despede de seu grande lateral. Na vitória por 2×0, Léo Moura vestiu pela última vez o manto sagrado. Neste dia, Zico foi ao Maracanã e entregou ao craque da camisa de número 2 uma placa em gratidão à bravura com que sempre honrou as cores do clube. Uma bravura digna de seu estilo Moicano[3] de cortar os cabelos. Um dado interessante sobre a presença de Zico no último jogo de Léo pelo Fla é que em 1989, Léo Moura foi uma das crianças que entrou junto com a escrete rubro-negra no jogo de despedida de Zico.

Leo Moura
Fonte: Wikipédia

O termo Varekai é trazido à crônica não somente para fazer alusão ao nomadismo cigano de Léo Moura, mas também porque é o nome de um dos espetáculos apresentados pelo Cirque du Soleil [4], que encena a queda de Ícaro. O espetáculo começa com uma mulher suspensa por alguns cabos lá no alto, sobrevoando o picadeiro. O voo começa a perder altura e ela, de modo agonizante, vem cambaleando com suas asas até atingir o solo. Uma queda lenta, a estética dos movimentos da bailarina transporta à plateia a angústia de um corpo que não consegue se manter no ar. O Cirque du Soleil consegue, de modo muito sensível e acrobático, reproduzir um dos mais lindos artefatos culturais de arte que retrata a tragédia de Ícaro.

Ícaro é filho de Dédalo, um astuto engenheiro grego. Dédalo trabalhou para vários reis, no entanto é destaque na mitologia sua parceria com o rei de Creta, o poderoso Minos. É de Dédalo a obra do labirinto, em que o Minotauro ficou preso por anos até ter sido morto por Teseu. Porém, por uma desavença com o rei, que agora não vem ao caso, Dédalo foi preso junto à ilha de Creta com seu filho Ícaro. Ambos foram impedidos de sair do reino. Um dia, olhando para o céu, Ícaro disse ao pai que o único jeito de vencer as muralhas de Creta era sair dali voando como um pássaro.

Dédalo teve uma ideia. Com sua capacidade de engenheiro, começou a construir asas artificiais utilizando penas de pássaros de diversos tamanhos grudadas com cera de abelha a uma estrutura feita de arame. Com a habilidade de suas mãos e com o auxílio de suas ferramentas, Dédalo moldou 2 pares de asas idênticas a de um grande pássaro. Quando as asas ficaram prontas para saírem em revoada da ilha e então escapar do castigo de Minos, Dédalo chamou seu filho e o alertou: “não voe muito perto do mar para que a umidade do mesmo e os respingos das ondas não deixem úmidas e pesadas suas asas, você também está proibido de voar muito perto do sol para que o calor deste não derreta a cera das asas”. Ícaro então começou a pegar altura, tomado pelo fascínio de voar, e encantado pela aura dourada da luz se aproximou em demasia do Sol e teve as asas derretidas.  Minutos depois, Dédalo viu cair no mar Egeu o seu filho amado, que fatidicamente se afogou.

Em 2017, Leonardo Moura chegou ao Grêmio de Porto Alegre e neste mesmo ano conquistou a Copa Libertadores da América. O desejo de voar até o mais alto topo das Américas e sentir o dourado da taça era um sonho que Léo perseguiu por anos seguidos com a camisa do Flamengo, porém nunca logrou tal feito. Na comemoração do triunfo, junto a equipe do Grêmio, Léo Moura em parceria do arqueiro Paulo Victor (também ex-Flamengo), zombou da torcida do Flamengo dizendo: “Nós cheiramos[5] títulos”. A nação sentiu o golpe do tão amado ídolo, porém, o destino de Léo Moura estava traçado tal como o de Ícaro.

Aproximadamente dois anos depois, nas semifinais da Copa Libertadores da América de 2019, o Flamengo empatou com o Grêmio no Rio Grande do Sul por 1×1. No jogo de volta, Léo Moura assistiu do banco de reservas o Flamengo enfiar 5×0 no Grêmio. Adivinha quem era o goleiro tricolor? Não vou dizer, adivinhe você! Com 6×1 no placar agregado, o Flamengo avançou para a final e conquistou o épico troféu de campeão das Américas contra o River Plate em partida disputada em Lima, no Peru. Léo não foi jogar a final no Peru porque morreu na véspera (nas semi). Suas asas derreteram diante de um Maracanã enérgico e pulsante.

Uma das funções da narrativa mítica é tensionar uma moral. Por meio de uma estória se interpela algum tipo de valor individual ou coletivo. Quando o tema é moderação, o mito de Ícaro nos convida a uma revoada sobre a questão. A moderação ligada à tragédia de Ícaro é contada para ensinar a importância de se manter humilde diante da conquista de um êxito.

Léo Moura
Léo Moura do Flamengo disputa a bola com Dátollo do Atlético-MG durante partida pelo campeonato Brasileiro da série A 2014, 20 de Agosto de 2014. Foto: Bruno Domingos/Mowa Press.

Para além da paixão e da ironia destilada na crônica, a verdade é que Léo Moura, por sua bela história no futebol, mereceu a conquista da Libertadores da América. Certamente ele, assim como nós flamenguistas, preferíamos que fosse com o uniforme do Mengão. Mas o futebol é também arquitetado por labirintos e às vezes ficamos “encurralados” pelas cores de nossas camisas e não conseguimos externalizar a alegria de um ídolo nosso vencer o campeonato com outro clube.

Léo, você foi muito mais bonito voando alto com a plumagem negra de nosso urubu rei. Muito mais do que naquela fatídica noite em que o vimos acuado no poleiro, feito um filhote de codorna, no banco de reservas do Grêmio. A sua sorte é que naquele dia, tiramos o pé (não só as penas), porque cabia muito mais que “cincum”. No céu que voa urubu, Ícaro nem se mete a alçar voo.

Notas

[1] O romani é o idioma dos Rom e dos Sintos, povos nômades também conhecidos pela designação de ciganos. 

[2] A Copa do Brasil, conquistada contra o Vasco da Gama em 2006, foi o primeiro título da carreira de Léo Moura enquanto jogador profissional.

[3] Os Moicanos eram um povo indígena dos EUA que, a exemplo de muitas comunidades indígenas brasileiras e ameríndias, foram dizimadas pela colonização europeia. O cabelo moicano era utilizado como símbolo de bravura na luta contra os brancos invasores.

[4] Cirque du Soleil (Circo do Sol) é uma companhia de entretenimento fundada no ano de 1984, na cidade de Montreal (Canadá).

[5] A expressão “cheiro” ou “cheirinho” de título ficou conhecida pela torcida do Flamengo em 2016, quando Diego Ribas falou, diante de uma crescente da equipe no campeonato brasileiro, que eles estavam sentindo o cheiro de título. Título este que acabou não vindo. Depois do feito, quando a equipe rubro-negra perde algum  título, os rivais sempre extrapolam felizes: “ficaram no cheirinho”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Como citar

ZOBOLI, Fabio. Léo Moura e a queda de Ícaro. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 4, 2023.
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