168.2

Lico, o boto cor-de-rosa rubro-negro

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 2 de junho de 2023

O boto não dorme no fundo do rio
Seu dom é enorme
Quem quer que o viu que diga,

que informe se lhe resistiu
O boto não dorme no fundo do rio…

 (Foi boto, sinhá – Waldemar Henrique)

Quem quer que viu Lico jogar que diga, que informe se lhe resistiu!

Lico foi um exímio futebolista rubro-negro que possuía os encantos e a mítica do boto cor-de-rosa. O boto cor-de-rosa é considerado uma entidade encantada, devido à infinidade de misticismos por trás de sua cor e beleza. Quando Lico entrava em campo pelos cantos já se ouviam sussurros de medo: “cuidado com o boto!”. Mas o que havia nesses botos multicores? Que sortilégios eles guardam por debaixo de suas peles? Que poderes os habitam?

Bora mergulhar com o boto cor-de-rosa e conhecer um pouco da história de Lico?

Lico Flamengo
Foto: Reprodução/Flamengo

O boto cor-de-rosa vive no Norte do Brasil, mais especificamente nas bacias do rio Amazonas. Ele pertence à família dos cetáceos, animais mamíferos que vivem exclusivamente na água. Além de uma variedade de botos, os golfinhos e as baleias também fazem parte dessa família. Antônio Nunes, ou Lico, nasceu em Santa Catarina, no dia 9 de agosto de 1951, mais precisamente na cidade de Imbituba.  Lico é um dos grandes jogadores do Flamengo do início da década de 1980. Ele pertence à família dos campeões da Libertadores e do Mundial de Clubes de 1981. No meio campo daquele saudoso Flamengo, jogou ao lado de Zico, Adílio e Andrade. Sua camisa era a de número 11.

Em épocas do ano em que acontece a cheia do rio Amazonas é comum ver o boto cor-de-rosa nadando e bailando pelo igapó[1]. Por viver nesse habitat, ele é o único da espécie dos cetáceos que consegue tocar a ponta do focinho na cauda, afinal é preciso ser muito flexível para nadar entre as árvores durante a caça. Lico jogou com a camisa do Mengão de 1981 a 1984[2], e além dos dois títulos referenciados acima ainda conquistou o Campeonato Carioca de 1981 e o Bicampeonato Brasileiro (1982 e 1983). Em partidas pelo Flamengo era comum ver Lico flutuando pela meia do lado direito do campo. Por jogar em tal posição era ótimo em buscar jogadas de profundidade, driblando ou tabelando para fazer cruzamentos ou chutar em gol. Lico sabia cortar como ninguém os adversários e, com seus lindos passes, colocar os companheiros em ótimas condições de gol.

Segundo as lendas do povo ribeirinho que vive às margens do rio Amazonas, o boto cor-de-rosa é um animal ardiloso e cercado de mistérios, entre eles o seu poder de sedução. Nas noites de lua cheia é comum ouvir o som dos botos às margens do rio. É nesse período do mês que o boto cor-de-rosa sai do rio e se transforma em um lindo homem. Ele se apresenta bem vestido e elegante, sempre em posse de um chapéu. O adereço é utilizado para esconder o buraco respirador de boto, localizado no alto de sua cabeça. Quem viu Lico jogar menciona que era um jogador ardil, cheio de astúcias, cercado de magia – com a bola nos pés tinha poderes de sedução. Em dias de jogo do Flamengo era comum ouvir das arquibancadas o canto da torcida a ovacioná-lo. Porém, era quando a bola estava em seus pés que ele se transformava em uma lenda. Um estilo elegante de tratar a bola, um jogador que jogava de terno e chapéu.

Ao sair do rio com seu poder galanteador, o boto cor-de-rosa seduz jovens e lindas mulheres e as leva para a beira do rio a fim de ter relações sexuais com elas. A lenda diz que toda mulher que se relaciona com o boto fica grávida. Depois da cópula, o homem disfarçadamente se aproxima das águas e, deslizando para dentro, restaura sua forma original de boto. Lico partia sempre do meio do campo tentando galantear os defensores adversários na tentativa de seduzi-los com seus dribles. A intensão era sempre de adentrar o mais próximo da meta de seus adversários, a fim de copular com o gol por meio do chute ou do passe a um de seus companheiros em melhores condições. Depois que uma jogada sua terminasse por “meter a bola” na rede do oponente, Lico ia para a beira do campo e se metamorfoseava com a sua imensa torcida, ali restaurava sua forma original de torcedor do Mengão. 

Lico Flamengo
Foto: Reprodução/Sportv

Por conta de todos esses mistérios que rondam sua existência, o boto cor-de-rosa é alvo de caçadores. Muitos homens querem matá-los para preservar suas mulheres e filhas dos poderes sedutores do lendário boto. Além disso, acredita-se que comer a carne do boto dá aos apreciadores as mesmas características sedutoras e viris do dito animal aquático. Por conta de sua capacidade misteriosa de fazer com que a bola sempre flertasse com o gol, Lico passou a ser perseguido por muitos defensores. Muitos deles literalmente o caçavam em campo, tentando impedir que ele se aproximasse de sua trave. Ao mesmo tempo, os atacantes adversários o observavam a fim de tentar imitar seus malabares com a pelota.

Quando uma mulher aparece grávida, de pai desconhecido[3], dizem logo que é “filho do boto”. Nas festas ribeirinhas onde há dança, as moças eram orientadas a não dançar com homens que as convidasse sem o gesto de tirar o chapéu. É um modo de visualizar se a pessoa que quer dançar se trata mesmo de um homem ou se é o boto-transformista. Quando alguém que foi criança nos inícios dos anos 1980 se intitula “Flamenguista”, logo se diz que “é filho” daquela escrete multi-campeã da qual Lico fazia parte. Toda essa torcida tira o chapéu para Lico, a lenda que transformava jogadas em vitórias e vitórias em títulos.

O boto cor-de-rosa é considerado um golfinho de água doce. O poder de sedução do boto tem origem na mistura de dois mitos. De um lado, o mito grego trazido pelos colonizadores europeus; de outro, uma fábula dos povos originários das tribos do Norte do Brasil.

A palavra golfinho deriva do grego Delphinus, que tem relação com o deus grego Delfim. É sobre isso que trata o primeiro mito. Poseidon, o deus dos mares, se apaixonou pela sereia Amphitrite. No entanto, ela querendo preservar sua virgindade, recusou o convite e se escondeu nas profundezas do mar. Poseidon então chama Delfim, o seu empoderado golfinho, e lhe ordena que encontre seu amor. Amphitrite então é encontrada por Delfim, que com seu poder de sedução a convence a casar-se com Poseidon. Em gratidão ao golfinho, Poseidon lhe coloca no céu em forma de constelação – a constelação de Delphinus. Os europeus acreditam também na imagem fálica do “bico” do golfinho para fazer alusão ao encantamento de mulheres por eles.

O segundo mito vem dos indígenas da região Norte do Brasil e é conhecido como a lenda do Ipupiara. Um monstro que habitava as profundezas do rio, Ipupiara era uma espécie de homem-peixe que levava as mulheres para o fundo das águas e as matava afogadas enquanto as beijava. Desse mito fundador surge as versões do mito da sereia Iara e também a do boto cor-de-rosa. Tanto o nome da sereia Iara quanto o nome do boto, Uiara, são derivados da palavra Ipupiara. Por isso, em muitas cidades do Norte do Brasil o boto é conhecido pelo nome de Uiara.

Lico rubro-negro e boto cor-de-rosa são duas lendas. Lico boto, boto rubro-negro, Lico cor-de-rosa… Cor de rosa, sim, porque rosa é cor de homem, para além dos mitos do azul – esse tipo de mito quem gosta é o gado que veste amarelo. Na mítica do boto cor-de-rosa, os filhos do boto são seres superiores por trazerem dentro de si a magia dessa entidade. Na mítica rubro-negra, quem viu Lico e todo aquele time de 1981 são seres detentores de um poder maior. Quem viu aquele cardume de botos rubro-negros promovendo verdadeiras orgias em campo sabe do poder que falo. Saudade daquelas tardes, daquelas noites… Saudade de copular com aqueles botos.

Notas

[1] É um tipo de vegetação da floresta amazônica comum em áreas baixas, localizada às margens do rio. No período de cheia elas são alagadas, e por ficarem expostas a esse fenômeno têm características particulares. Igapó tem sua etimologia na língua tupi-guarani e significa “raízes d´água”.

[2] No início de 1981, Lico foi emprestado por uns meses ao Joinville de Santa Catarina.

[3] O subterfugio de dizer que é “filho do boto” é também utilizado para esconder relações anteriores ou fora do casamento. Há relatos que, de modo cruel e criminoso, muitos estupradores ameaçam suas vítimas forçando as mesmas a justificar sua gravidez via mito do boto cor-de-rosa para não serem descobertos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Lico, o boto cor-de-rosa rubro-negro. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 2, 2023.
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