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Limite de demissões: outro paliativo no país (ou o que restou dele) de paliativos

Luís Felipe Nogueira Silva 1 de abril de 2021

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), preocupada com o desenvolvimento sustentável e a qualidade do futebol brasileiro, conclama: a ‘fritação’ de treinadores na primeira divisão do Campeonato Brasileiro tem data para acabar. A partir da edição 2021 das Séries A e B nacionais, os clubes poderão demitir o treinador em apenas uma ocasião. E não poderão substituí-lo por alguém que já tenha constado em alguma súmula oficial do certame. Se o pedido de demissão vier do próprio treinador. Aí, o profissional que lute, assuma a bronca e o ônus de não mais poder dirigir qualquer outra equipe da liga.

Parece bizarra, no mínimo, a paradoxal ‘preocupação’ da CBF com seu produto, ao mesmo tempo em que fecha os olhos, de forma grotesca, à exposição desenfreada ao cada vez mais letal COVID-19 a que os/as profissionais da bola estão se submetendo. Sem contar, o crônico problema de calendário – inchado, irracional e ignorado – solenemente há décadas. O show tem que continuar, é o que pensa o mandachuva da instituição, com chancela da imensa maioria dos dirigentes nacionais. A vida fica para depois. 

Voltemos à nova regra: trata-se de mais uma importação. A ‘Serie A’ italiana e ‘La Liga’ espanhola utilizam o expediente há tempos. Por lá, treinadores interinos possuem um limite de tempo enquanto ‘esquentam o banco’ para o próximo profissional. Aqui, os interinos, caracterizados como aqueles que estejam, ao menos, há seis meses em um clube, poderão ocupar o lugar vago. Ainda não ficou claro, porém, se existirá uma quantidade limitada de jogos aos provisórios ou se serão alternativas legalizadas para brechas: o ‘jeitinho’ do ‘jeitinho’. 

Parte da imprensa ‘especializada’ e muitos profissionais de elite, não de hoje, evocavam medidas neste sentido em nome do fim da banalização técnico-administrativa, que reinou (reina?) entre indivíduos com poder de deliberação na gritante maioria dos clubes no Brasil. O treinador de futebol, para ser aceito ao sistema, a ele se submeteu e vestiu a carapuça de bode expiatório em nome do ‘dinamismo cultural.’

Ramón Díaz
Ramón Díaz. Foto: Reprodução Twitter

Por tudo o que ronda seu modus operandi, difícil crer que a genuína boa intenção com a qualidade do jogo e processos de gestão minimamente racionais, por parte da CBF, seja maior que a tentativa de soar artificialmente benévola junto à opinião pública. Ao longo da temporada 2020, que terminou em fevereiro de 2021, o Botafogo de Futebol e Regatas teve oito treinadores, somando os interinos. Fez a pior campanha de sua história em Campeonatos Brasileiros e joga a Série B pela terceira vez em 18 anos. Por acaso, não é.

Ao fim e ao cabo, a medida ceebefiana impõe o óbvio à fórceps. A pouca disposição em atacar graves problemas na raiz da estrutura, soa quase como natureza intrínseca da pátria-mãe gentil e inferem uma série de reparações e resoluções paliativas, que não apenas não tardam a cambalear, como não impedem os sobressaltos históricos do país. Tivemos, nos anos 2000, políticas governamentais que se atentaram à ampliação e distribuição de renda, mas que, não sustentadas por amplas reformas educacionais de base, por exemplo, deram margem para que o Brasil voltasse ao limbo acrítico, desesperador, chafurdado pelas fake news e aprisionado por uma elite vil e tacanha.

Recentemente, por pressão da Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL), os clubes brasileiros de elite se viram obrigados a investirem no futebol de mulheres e manterem equipes competitivas para continuarem aptos a disputar competições da instituição. A volta de camisas tradicionais tem alçado o campeonato nacional a outro nível: os investimentos aumentaram, há algum quê de organização e a visibilidade é crescente, com jogos televisionados em TV aberta – evidente que ainda muito longe de qualquer tipo de comparação com os homens, é verdade. Outra vez, porém, em decorrência de políticas aplicadas ‘de cima para baixo’, que priorizam o topo da pirâmide e deixam a base dela, reféns de migalhas, carentes: milhares e milhares de mulheres, nos mais distantes rincões do país, permanecem a mercê de condições – morais e estruturais – indecentes de prática. Para estas, jogar é um ato de resistência ainda maior. 

Outro bom exemplo atenuante, pero no mucho, é o VAR. A implementação do árbitro de vídeo, chancelado pela FIFA e outras tantas federações nacionais, no Campeonato Brasileiro almejava facilitar, com auxílio da tecnologia, decisões de juízes, homens e mulheres de carne e osso e, portanto, passíveis de falhas – e não tornar o jogo, que é caos em essência, idilicamente mais justo ou imune aos erros. As controvérsias, no entanto, perduraram. Tenho dúvidas se o software mais sofisticado da face da Terra daria conta de extinguir arbitragens desastrosas enquanto a profissionalização de apitadores e assistentes não for instaurada. 

Guilherme Bellintani
Fonte: Reprodução Twitter/SporTV

O limite de treinadores, como os exemplos listados, ecoa como um remédio antibiótico ingerido em doses cavalares: sua eficácia, operante a curto prazo, não ultrapassa a superficialidade com o passar do tempo. Guilherme Bellintani, presidente do Esporte Clube Bahia, é feliz ao dizer que ao realçar a pontualidade da medida, que denota uma falsa impressão de modernidade. Termos como ‘choque de gestão’ ‘mudança de cultura’, usuais em discussões sobre o tema, caminham para o terreno da retórica rasa se desprovidos de debate epistemológico consistente. Dele, condições efetivas de rompimento com o paradigma de valores tradicionais, fatalistas, inflexíveis e liberais, cultuados desde o Racionalismo Iluminista, podem insurgir e ressignificar as relações entre indivíduo-indivíduo e indivíduo-mundo.

A formação crítica e transdisciplinar, que não fique circunscrita às especificidades de campo e bola, mas que preze pelos afetos, pelo diálogo zelo ao próximo, de modo que ele(a) seja capaz de encontrar seu lugar no mundo confrontando o tradicionalismo social foi aventada por Paulo Freire, patrono da educação brasileira. Ali, estão cristalizados princípios que permitem à uma sociedade civil enfrentar suas mazelas desde o cerne e superar o ‘faz-de-conta’. Freire foi inimigo do jeitinho – e, por isso, é inimigo de tantos. 

O brasileiro, no fim das contas, é asfixiado pelo paliativo há mais de 500 anos.   


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe Nogueira

Mestrando em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas, sendo bacharel em Ciências do Esporte pela mesma universidade. Integra o Laboratório de Estudos em Pedagogia do Esporte (LEPE-UNICAMP).

Como citar

SILVA, Luís Felipe Nogueira. Limite de demissões: outro paliativo no país (ou o que restou dele) de paliativos. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 1, 2021.
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