179.2

Entre SAFs, desejos e realidades no futebol: olhando para os casos da Europa para pensar os anseios de torcedores brasileiros

Desde a promulgação da Lei 14.193, de 2021, o movimento em vários clubes brasileiros em direção às Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) tem gerado uma série de debates na mídia e entre torcedores. Vistas como um salva vidas para muitos clubes brasileiros, as expectativas dos torcedores têm se mostrado em alguma medida exagerada em relação aos investimentos que esta modalidade de gestão do futebol apresentou até o momento.

Se por um lado os torcedores não demonstraram mudança de vínculo emocional com seus clubes em função das SAFs,1 o desejo por formação de grandes times também não se concretizou. Talvez os desempenhos de alguns clubes tenham melhorado em relação ao seu histórico recente, times que entram na disputa por vagas em competições continentais, que deixam de sofrer tanto com o risco de rebaixamento e em alguns casos que beiram a conquista de títulos anteriormente bem distante do possível para alguns clubes.

É importante termos em mente, que apesar de suntuosos aportes financeiros, alguns mais de imagem como o avião da presidente do Palmeiras que serve ao clube, o número de clubes que já se tornaram SAF talvez seja menor do que se imagina. Na série A do Brasileirão de 2024 sete dos 20 participantes já estão no modelo, a saber: Atlético-MG, Bahia, Botafogo, Cruzeiro, Cuiabá, Fortaleza e Vasco. Alguns clubes estiveram entre a cruz e a espada e precisaram se apressar para não incorrerem em situações talvez piores.

O modelo de SAF para estes clubes tem admirável diversidade o que coloca quem ainda não entrou no barco diante de uma faca de dois gumes. Por um lado, a possibilidade ampla de negociar visto que não há um modelo consolidado, por outro a incerteza de que modelo baterá a sua porta e é potencialmente o melhor.

O Atlético Mineiro tem recebido atenção nos debates em função dos compradores da SAF serem sabidamente torcedores do clube, o que para muitos o coloca numa posição mais favorável. O Bahia que fechou com o grupo City tem o temor, ainda que tenha clausulas em contrato para tentar proteger, de se tornar apenas um ponto de suporte das matrizes de destaque não alcançando os resultados sonhados pelos torcedores. O Botafogo em situação semelhante à do Bahia está num grupo de clubes de um mesmo dono, contudo, sem a mesma repercussão mundial. O Cruzeiro que foi comprado por um ídolo, ou que foi alçado a figura de ídolo sofre com o tamanho do buraco em que o clube social havia se afundado. Cuiabá já era clube empresa desde a sua fundação e entre os sete possui menos tradição no contexto nacional. Fortaleza já vinha de uma organização financeira e gerencial de mais tempo. E o Vasco assinou com um grupo que tem dado mais notícias a imprensa do que propriamente avanços ao clube.

Ronaldo Cruzeiro
Foto: Gustavo Aleixo/Cruzeiro/Divulgação

Em comum para aquilo que interessa para as reflexões deste texto, a alcunha com a qual se designa aqueles que compram as SAFs, investidores. Ao pé da letra, investidor é aquele que pega seus recursos aplica-os em alguma coisa a fim de que esta se valorize e lhe traga ganhos significativos em relação ao investimento inicial. Então seja lá qual for o modelo de gestão, ela não é mais sem fins lucrativos. O torcedor que sonhava com Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar nos campos jogando por seus clubes talvez tenham que lidar com um choque de realidade. Diferentemente do Real Madri, por exemplo, que tem no artigo 2 do seu estatuto sua finalidade definida como “O Real Madrid Futebol Clube é uma entidade esportiva que tem por objetivo e finalidade dedicar seu património a conseguir, principalmente, a promoção do futebol, nas suas diferentes categorias” e para isso seu artigo 7 anuncia que “A entidade não tem fins lucrativos, uma vez que todos os seus ativos e possíveis benefícios são direcionados, única e exclusivamente, para a realização do objetivo indicado”. Ou seja, o dinheiro que entra, tem como propósito o próprio futebol. O caminhão de dinheiro por direitos de imagem, ingressos, turnês pelo mundo, licenciamento e tudo mais vai para formar e contratar grandes jogadores.

E no Brasil? Bom muitos torcedores, para não falar a maioria uma vez que não tenho dados para isso, sonhavam com a SAF sem considerar suas dívidas astronômicas, a necessidade de uma organização gerencial e que a SAF visa lucro. Assim, pequenas loucuras como selefla, selegalo e outras “seles” que vimos ao longo dos anos não passam perto do plano de ação das SAFs.

O que se vê nos clubes empresa na Europa que não tem a visibilidade que os grandes tem é o cuidado para manter um equilíbrio entre compra e venda de jogadores. Folhas salariais infladas não podem fazer parte do cotidiano destes clubes se não há como mantê-las. Em contrapartida os clubes que tem servido a outros propósitos econômicos que não se encerram no futebol tem cada vez maiores dívidas. O tal fair-play econômico não funciona tão bem quanto parece. Em trabalho de Poli, Ravenel e Besson, publicado em 2022,2 podemos ver que ao observarmos apenas as transferências as quatro das cinco maiores ligas europeias tem um déficit na relação investimento e ganhos com o trânsito de atletas. Entre 2013 e 2022 a liga inglesa chega a um número negativo de quase nove bilhões e meio de euros entre as compras e vendas, quase um bilhão por ano em média. Manchester United e Manchester City encabeçam a lista de prejuízo com o fluxo de atletas. Em dezembro do ano passado o United foi comprado por um dito torcedor do clube que já anunciou fará uma reformulação de elenco. O City de propriedade de um Sheik dos Emirados Árabes tem para além do futebol, ou por meio do futebol uma função, então as perdas nas janelas não são um problema, em especial com os resultados esportivos recentes.

Manchester City
Escudo do Manchester City dentro do Etihad Stadium. Foto: [email protected]/Depositphoto

Mas e o que isso tem a ver com as SAFs no Brasil e as expectativas dos torcedores? Se a expectativa dos torcedores é que uma SAF funcionará se o dono não for “mão de vaca”, talvez seja preciso realinhar a percepção de mão de vaca. Em que medida a performance esportiva de um Bahia pode trazer a mesma repercussão a países do mundo árabe como é o caso do Manchester City? Quantos bilionários brasileiros estão interessados em brincar de manager com seus clubes do coração? Que interesses políticos podem mover o desejo de ser dono de um clube?

Estratégias como assinar pré-contratos com jogadores de maior visibilidade em fim de contrato na Europa e lançar mão de salários mais pomposos pode servir para se aproximar dos sonhados jogadores nas mentes dos torcedores. Passados quase três anos da lei das SAFs mais incertezas rodeiam os torcedores e o futebol brasileiro do que perspectivas reais de por onde caminharão os clubes que optarem por esse modelo de gestão. Uma reflexão é que ainda que alguns novos donos cheguem e se anunciem como tendo se apaixonado pelo clube, aquilo ali é um negócio. E a ideia de negócio entra em rota de colisão com a perspectiva da paixão, aqueles torcedores que ao longo dos anos vem tirando parcelas significativas de seus orçamentos familiares para acompanhar seus clubes não esperam nada menos do que a mesma dedicação ao se buscarem se tornar competitivos, ou não, se tornarem vitoriosos.

Entre o desejo do torcedor e a meta de uma SAF, há um oceano que ainda não temos certeza de como é navegado e se um dia será.

Notas

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Luiz Gustavo Nicácio

Professor de Educação Física, formado pela UFMG, mestre em Lazer pela mesma universidade. Integrante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Como citar

NICáCIO, Luiz Gustavo. Entre SAFs, desejos e realidades no futebol: olhando para os casos da Europa para pensar os anseios de torcedores brasileiros. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 2, 2024.
Leia também:
  • 178.11

    “A parte que te cabe nesse latifúndio”: breves notas sobre o debate recente do clube-empresa no Brasil

    Fabio Perina
  • 154.28

    Cultura, Identidade e Futebolização na Europa Ocidental: França, norte da Itália e Suíça

    Rodrigo Koch
  • 144.35

    A Superliga Europeia como um fato político novo para a extrema direita no velho continente

    Makchwell Coimbra Narcizo