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Mas, afinal, quem são os verdadeiros donos da bola?

Diana Mendes Machado da Silva 15 de março de 2010

Aqueles que gostam de futebol sabem que conhecer histórias, casos ou anedotas envolvendo o esporte é requisito básico para integrar o que podemos chamar de cultura futebolística. Com conteúdo que varia do humor à tragédia, em tom geralmente emocionado, essas narrativas respondem, paralelamente aos espetáculos nos gramados, pela paixão pelo esporte, como afirma José Miguel Wisnik.

Em Veneno Remédio. O futebol e o Brasil, o autor atribui a popularidade do esporte justamente a essa incrível característica, rara em outras modalidades, de inspirar a produção e a difusão de narrativas. Podemos dizer que grande parte destas narrativas concentra-se nas histórias, feitos e conquistas de jogadores e clubes. Seus narradores as contam e recontam, tornando-as presentes e atuais (mesmo hoje, por exemplo, é possível encontrar jovens capazes de narrar o famoso gol de Pelé, em 1959, na Rua Javari).

Entre as inúmeras funções que as narrativas assumem entre os adoradores do esporte, destacaremos a que se refere ao fortalecimento de vínculos identitários. Esta dimensão nos interessa por inserir-se no campo minado – da diferenciação – entre a memória (as memórias, as narrativas, as histórias) e a História (que poderíamos definir, sumariamente, nas palavras de um grande historiador, como “ciência dos homens, no tempo”). Vejamos um pouco mais de perto essa problemática. A pergunta: “quem introduziu o futebol em São Paulo?” produz, ainda hoje, uma série de impasses toda vez que é formulada.

Embora distante temporalmente das disputas mais acirradas, as respostas a ela, carregadas afetiva e ideologicamente, ainda são inúmeras. Embora essa pluralidade seja absolutamente importante e legítima, resguardando o papel ativo dos grupos vinculados ao esporte, é preciso cautela quando se trata de narrar como um historiador. A ele, como profissional ligado a um campo de saber, sob certas regras, princípios e objetivos, cabe redobrar a atenção diante dessas parcialidades para que possa, na realização de seu ofício, problematizá-las, em lugar de reproduzi-las, trazendo, de fato, nova inteligibilidade aos acontecimentos.

No que se refere à introdução do futebol em São Paulo, gostaríamos de tecer alguns comentários sobre as abordagens do tema na História, considerando as práticas que formalizaram o núcleo oficial do esporte. Desde muito cedo, o futebol esteve envolvido na disputa entre as elites e as classes populares pela sua “verdadeira origem”. Representantes de cá e de lá, ciosos de sua importância na construção e manutenção de identidades nele sediadas, protagonizaram controvérsias sobre quem, de fato, o teria introduzido. Esta questão inscreve-se numa zona cinzenta, de difícil solução. Outra perspectiva nos parece mais apropriada à tarefa do historiador. Acreditamos que o estudo do quadro de fundo dessas disputas, do contexto, seja mais interessante e frutífero. Vejamos alguns aspectos do contexto de introdução do futebol em São Paulo.

Durante os primeiros anos do século XX, o futebol esteve entre as práticas favoritas das elites de São Paulo e Rio de Janeiro. Inspirados pela moda européia de culto ao corpo, rapazes e moças se aproximaram de diversas maneiras da prática desse esporte. Mário Filho, em seu brilhante O negro no futebol brasileiro, descreveu com primazia como o futebol foi vivenciado pela alta sociedade carioca:

“O futebol prolongava aquele momento delicioso de depois da missa. As moças, mais bonitas ainda (…) Na arquibancada, sentadas, abrindo e fechando os leques (…) como que ficavam em exposição(…) Os jogadores, quando entravam em campo, corriam logo para o lugar mais cheio de chapéus, chapéus enormes, pesados, mas que pareciam leves, muitas flores, frutas, plumas (…) E tudo estava muito certo, muito direito. Os filhos no campo, as filhas nas arquibancadas. Pais e filhos, filhas, a família toda (…) O que havia ali, no campo, na arquibancada, havia nos bailes do Clube das Laranjeiras (…)”

O futebol promovia o encontro entre esses jovens, criando novos espaços e situações para que pudessem se exibir diante do sexo oposto. Naquele momento, a elegância e o corpo esculpido cuidadosamente pela prática de esportes eram elementos bastante valorizados pois sinalizavam sintonia com a Europa, o que lhes conferia distinção. Na afirmação de vários autores, essa dinâmica revela a maneira como o futebol foi apropriado pelas elites do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Durante o fim do século XIX e o começo do XX, essas cidades sofreram um rápido processo de urbanização, o que provocou grande insegurança, principalmente nas classes sociais mais abastadas. O regime republicano, em vigor há pouco mais de vinte anos, ainda figurava como promessa de igualdade e alterava, ainda que timidamente, relações sociais até então baseadas em diferenças hierárquicas praticamente intransponíveis. Em São Paulo, essa mudança foi profundamente percebida pela elite cafeeira. Vivendo até então a vida semi-rural da casa grande, organizada pelo regime escravocrata, em que os lugares sociais eram absolutamente reconhecidos e reconhecíveis, ela passou, abruptamente, à vida cuja centralidade estava na cidade. Uma espécie de isonomia foi criada neste novo espaço (pelo menos aparentemente) com o surgimento do transeunte. Ele é a figura por excelência da cidade moderna, pois representa, antes de tudo, aquele que passa. E a cidade se organizava de modo a tornar a todos meros transeuntes. A condição social de qualquer citadino foi diluída na fluidez do espaço e na velocidade com que as coisas se transformavam na cidade. Situação que incomodou a elite. Como se diferenciar em espaço tão indiferenciado? Monica Schupun, em Beleza em jogo, levanta alguns aspectos para compreender essa situação:

“No que toca à organização dos espaços, o crescimento de São Paulo aparece marcado, desde o início, por sua extrema rapidez e pela total falta de planificação urbana. O que não impede as elites – que deixam suas fazendas e se instalam em São Paulo precisamente neste momento de transformações – de praticar a política bem definida de ocupação da cidade, criando não somente locais reservados – como os bairros residenciais e os lugares dedicados ao exercício da sociabilidade (clubes ou salões de baile) -, mas também de circuitos diferenciados de ocupação e de freqüentação dos espaços públicos. (…) Trata-se de provê-la de todos os equipamentos, de lazer ou outros, que permitam aos membros do grupo dominante reconhecerem- se e orgulharem-se de sua obra”.

Podemos dizer, deste modo, que o clube de futebol, o time, o uniforme, a bola, a coroa de louros, foram elementos capazes de agregar e diferenciar esses indivíduos, algo precioso em situação de instabilidade. Em outras palavras, uma rejeição aos valores citadinos e republicanos caracterizou o processo de apropriação do futebol pelas elites em São Paulo.

É preciso destacar, por último, que, substituir o termo introdução por apropriação, como nos sugere Arlei Damo, permite ao historiador captar e problematizar o campo das disputas simbólicas em torno das primeiras práticas relativas ao futebol. Meras opções conceituais como estas ampliam as possibilidades de tratamento do tema e separam o campo das narrativas (das histórias) do campo da História. Embora não exista neutralidade no trabalho do historiador, a produção do conhecimento histórico depende, em larga medida, do quanto ele problematiza, ou evita suas paixões. Caberia ainda investigar o processo de apropriação e acomodação do futebol no começo do século XX por outros grupos sociais, mas esse é assunto para outro artigo.
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[1] Nas palavras de Hilário Franco Júnior, “o esporte torna-se um dos códigos mais expressivos para estabelecer os signos de distinção social. Surgiu como ritual elitista, revestido de valores aristocráticos do ócio, do adestramento militar, do sportmanship”.

Bibliografia

DAMO, Arlei S. Do dom à profissão. 2005. 435f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2005.

FRANCO JR., Hilário. A dança dos deuses. Futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: Cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20São Paulo: Senac/Boitempo, 1999.

WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio. O futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

 

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Como citar

SILVA, Diana Mendes Machado da. Mas, afinal, quem são os verdadeiros donos da bola?. Ludopédio, São Paulo, v. 09, n. 4, 2010.
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