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O papel da imagem na construção de Leônidas da Silva como primeiro craque negro

Diana Mendes Machado da Silva 5 de outubro de 2023

Uma questão é recorrente na História do Futebol no Brasil: mas quem, afinal, foi o primeiro craque negro de futebol? Muitos dirão que foi Arthur Friedenreich o primeiro a ganhar notoriedade em face de seu excelente desempenho nos anos 1920 em São Paulo e no selecionado nacional. Outros, avançando para os anos 1930, se lembrarão de Fausto dos Santos, de Domingos da Guia e de Leônidas da Silva. Mas mesmo se tais jogadores (e tantos outros menos lembrados) apresentaram excelente desempenho, ganharam notoriedade e ficaram para a História, apenas o último pode ser chamado de craque.  

Para compreender adequadamente essa questão, vale se deter no contexto de produção da notoriedade de Leônidas. Os anos 1930, sobretudo os anos finais, em que ele ascendeu como futebolista e também nas páginas de jornais e revistas, eram muito diferentes da década anterior quando Friedenreich havia jogado e até mesmo sido fotografado.

À época de Leônidas, fotografias passaram a ser inseridas nas páginas de notícias, criando associações e identidade com as histórias que eram ouvidas no rádio. E elas diferiam das imagens que retratavam Friedenreich ou mesmo Fausto dos Santos. Ao final da década de 1930, o instantâneo fotográfico passou a fazer parte das páginas de jornais e revistas trazendo movimento para as notícias ampliando o repertório visual de quem acompanhava o futebol. A inovação contribuiu para a construção de uma noção de proximidade do público leitor com os eventos esportivos e com seus protagonistas.  Isso ajudou a criar uma nova e interessante relação entre jogadores, clubes de futebol, seleção brasileira, jornais, revistas e, principalmente, a opinião pública.   

 Leônidas da Silva mostrou-se sempre muito disposto a vivenciar tais novidades, frequentemente dava entrevistas e posava para fotografias, diferentemente, por exemplo, de Domingos da Guia, que não gostava de holofotes. Assim, ao lado de Leônidas, muitos homens de negócios puderam criar e veicular novos produtos midiáticos.

Leônidas
Fonte: reprodução

Dentre os mais notáveis desses homens, podemos citar Mario Rodrigues Filho que, a nosso ver, só pôde escrever O negro no futebol brasileiro após muita observação do que se passou com o jogador (aliás, vale mencionar o quanto é válida a estratégia de pensar no futebol por meio da trajetória de seus personagens e de suas interações socioculturais em amplas temporalidades e espacialidades).

 Mario Filho foi o primeiro a notar que Leônidas da Silva estabelecia diálogos culturais que extrapolavam os campos de futebol. Em seu livro, o jornalista comenta:

O Café Rio Branco ficava a vinte passos da Avenida, na esquina da São José com a Rua Chile, Leônidas estava sempre lá, numa mesa junto da porta da rua, em exposição permanente […], os garotos apontando para ele, ‘olha aí o Leônidas’, todo mundo se voltando, torcendo o pescoço. Por onde ele passava, juntava gente […], as moças não davam gritinhos de sustos, não apressavam o passo, fugindo, para rir dez passos adiante. Paravam, viam o Leônidas, depois continuavam […] pareciam que tinham visto um galã de cinema. Visto só não, conhecido. Ver Leônidas era conhecê-lo. Vê-lo na luz, prosaicamente, feito um simples mortal[1].

A passagem é extremamente interessante, pois sugere mais que um mero desembaraço de Leônidas face ao reconhecimento público. Para o jornalista, o jogador definia pessoalmente as bases desse reconhecimento ao frequentar o café. Ou seja, ao que parece, não legava esse trabalho para a imprensa ou para seu clube. Leônidas dava-se a ver “numa mesa junto da porta da rua” com o intuito de ser visto. Com isso, parecia conhecer as regras para a construção de sua popularidade, pois a aparência de urbanidade, de modernidade e, sobretudo, de atualidade necessária ao reconhecimento social precisava ser negociada a partir da presença física, tal como acontecia com artistas e cantores, outros conhecidos frequentadores dos cafés do Rio de Janeiro.

E as moças sabiam disso, pois “paravam e viam Leônidas como se tivessem visto um galã de cinema. Visto só não, conhecido. Ver Leônidas era conhecê- lo”.  Tendo seu rosto estampado em fotografias de jornais e de revistas, Leônidas estava lá fisicamente para ser reconhecido e admirado. O termo “galã” não se referia apenas à sua inegável beleza física, mas ao comportamento a ser assumido diante dele.

Leônidas
Fonte: divulgação/Memorial do São Paulo Futebol Clube

Esses são apenas alguns sinais de uma importante transformação na figura do futebolista, que deixava de ser apenas vitrine de clubes de futebol para se tornar vitrine de si mesmo. Um processo que dependia, de um lado, de figuras com o talento de Leônidas e, de outro, de um público que reconhecesse ou avalizasse esse talento.

A complexidade desse fenômeno só pôde ser mensurada décadas depois, pois é apenas em uma sociedade fotográfica e fotografável e, mais atualmente, instagramável, que se pode entender a ação de Leônidas. A auto-exibição/exposição em páginas de jornais, de revistas era parte de uma ativa participação na chamada esfera pública que dependia desses suportes de informação para se constituir e para se renovar. É nesse ponto que a trajetória de Leônidas revela o processo de construção das celebridades de futebol.

Desde sua chegada ao Brasil, o futebol ofereceu experiências muito significativas para quem o vivenciava como trabalho ou lazer. E se em um primeiro momento as imagens a ele relacionadas figuraram apenas como aporte e suporte dessas experiências, logo acabaram se tornando seu próprio cerne. O caso de Leônidas é o primeiro a oferecer esse contorno, pois suas imagens não se restringiam a atuações em campo. Em inúmeras ocasiões, ele esteve presente em campanhas publicitárias, associado a produtos como carros e cigarros.  Ou seja, suas imagens integraram o mercado criado em torno de sensações, emoções e sentimentos que organizaram identidades em torno de papéis e classes sociais, algo fundamental para a construção de um modo de vida urbano.

Pode-se mencionar, ainda, os processos de subjetivação influenciados por tais imagens, especialmente para homens negros. É possível imaginar as dificuldades de construir novos papéis para um grupo social até então associado ao trabalho compulsório e a uma série de preconceitos oriundos de séculos de escravização. Na medida em que eram publicadas e legitimadas positivamente, as fotografias de Leônidas ofereciam repertório para a construção de novas imagens sociais para o negro.

Assim, a popularidade do jogador, resultado tanto do reconhecimento de seu talento quanto do desejo de milhares de pessoas de representação social em um espaço urbano em pleno desenvolvimento, é parte substancial de seu processo de celebrificação, isto é, de se tornar celebridade. É por essa razão que muito embora se possa identificar figuras negras anteriores como importantes na história do futebol, é apenas com Leônidas que o processo é desenhado com maior nitidez. Não à toa ele é o primeiro jogador negro a ser chamado de craque nos periódicos da época, evidenciando que para receber esse título era preciso mais do que ser exímio jogador. Para ser craque era preciso receber amplo apoio popular, algo traduzido em um delicado arranjo entre a oferta de imagens – o que Leônidas parecia compreender muito bem – e a compra de jornais e de revistas.

Notas

[1] O negro no futebol brasileiro, p.211-212

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SILVA, Diana Mendes Machado da. O papel da imagem na construção de Leônidas da Silva como primeiro craque negro. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 5, 2023.
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