166.26

“Mercenário”

José Paulo Florenzano 26 de abril de 2023

“Acho que esse foi o meu último chute aqui”.[1] Um chute no ângulo direito do goleiro Andrada, sem chance de defesa, desferido no treino realizado na segunda-feira, 31 de janeiro, em São Januário. Naquele início de 1972, com efeito, Afonsinho avaliava as propostas que lhe eram apresentadas por diversos clubes. As negociações com a direção do Vasco não avançavam, bloqueadas pela grande diferença entre os valores reivindicados pelo atleta e os valores oferecidos pela agremiação.[2] Diante do impasse, Afonsinho decidiu alugar o passe para o Santos, fechando contrato por um período de um ano.

De fato, depois de uma longa batalha judicial nas esferas esportivas com o Botafogo, Afonsinho conquistou o passe em março de 1971, tornando-se livre para definir o seu destino profissional.[3] Essa nova condição, no entanto, era vista com apreensão pelos dirigentes de clubes e formadores de opinião. Achilles Chirol, por exemplo, um dos diretores do Jornal dos Sports, demonstrava certa contrariedade com a liberdade profissional adquirida por Afonsinho, criticando o que julgava ter se transformado em um “verdadeiro leilão” em torno do aluguel do passe. De acordo com Achilles Chirol, tal estratégia só se revelava uma “solução conveniente” para Afonsinho, mas, de forma alguma, beneficiava a promoção do “profissionalismo” entre os clubes. Isto, argumentava o articulista do Jornal dos Sports, por várias razões.

Em primeiro lugar,  o passe representava uma “inversão de capital” importante para o equilíbrio financeiro do clube. Ao contratar um atleta livre, o clube abdicava da possibilidade de obter lucro, negociando o passe no mercado do futebol. De fato, uma vez encerrado o contrato de trabalho, Afonsinho achava-se livre novamente para negociar com quem bem quisesse a continuidade da carreira.

Em segundo lugar, a condição jurídica do atleta livre se constituía em um fator de perturbação das interrelações no elenco, suscitando uma “sensação permanente de injustiça” face aos vencimentos mensais que o jogador dono do próprio passe desfrutava. Os demais integrantes do elenco, explicava Achilles Chirol, não levavam em conta que uma parte dos vencimentos devia-se ao salário e a outra parte ao aluguel do passe. Para todos os efeitos, Afonsinho auferia valores exorbitantes. Esta percepção, por sua vez, contribuía para difundir o “descontentamento” no grupo, prejudicando o desempenho do time em campo.

Por último, mas não menos importante, a contratação de atletas como Afonsinho golpeava um valor caro ao universo do futebol, colocando em risco os vínculos necessários enlaçando atletas, dirigentes e torcedores. O profissionalismo, frisava Achilles Chirol, não obstante toda a evolução ocorrida ao longo do tempo, não prescindia de um sentimento tão importante quanto o “amor à camisa”, como, de resto, a trajetória do assim chamado Atleta do Século ilustrava de forma emblemática:

O futebol não dispensa o amor à camisa, por mais que esse amor tenha sido implantado pela permanência forçada do jogador no clube. Um jogador precisa ter vontade de permanecer no clube – como Pelé no Santos – por gratidão, identificação ou amizade.[4]

Mesmo que a esse preço – o de sacrificar a liberdade profissional do jogador – o futebol profissional não podia se dar ao luxo de abrir mão de um sentimento tão nobre, sem o qual o espetáculo via-se não apenas desprovido de sentido, como, pior ainda, maculado por um valor negativo cuja difusão contaminava as relações sociais entre os agentes da esfera esportiva. Achilles Chirol, porém, não queria ser mal interpretado a respeito da luta travada a favor do passe livre, ponderando, contudo, as consequências imprevistas do desenlace jurídico envolvendo o antigo atleta do Botafogo:

 Não critico Afonsinho, que está certo em ganhar o quanto puder no menor tempo possível. Desagrada-me é o sistema, que cria uma ideia de esporte mercenário.[5]

Afonsinho
Fonte: reprodução do Facebook

Dessa maneira, tomado como a personificação de amor ao clube, gratidão aos dirigentes e carinho aos torcedores, Pelé afigurava-se como o contraponto a Afonsinho, ou melhor, ao que ele representava como ameaça ao sistema futebolístico no país. De fato, conjecturava Achilles Chirol, a chegada de Afonsinho a Vila Belmiro poderia desestabilizar o quadro harmonioso que a presença de Pelé contribuíra para instalar, uma vez que, ao contrário do Rei do Futebol, o Andarilho da Bola “jogará exclusivamente pelo dinheiro”, sem qualquer outro compromisso com a camisa do alvinegro praiano a não ser utilizá-la para aumentar o patrimônio pessoal.

Noutras palavras: Achilles Chirol evocava o exemplo de Pelé para desqualificar o exemplo de Afonsinho, cuja luta pelo passe livre, naquele momento, emergia como uma referência para o conjunto da categoria profissional. De fato, no Jornal dos Sports, a coluna “Jogo Perigoso” recolhia diariamente as opiniões dos jogadores cariocas sobre o exercício da profissão. Invariavelmente o nome de Afonsinho aparecia como o do atleta “mais vivo” no futebol brasileiro. Zé Mário, futuro líder sindical, à época em início de carreira no Flamengo, entrevistado a respeito do tema, dizia “acompanhar a maioria”.[6]

Compreende-se, assim, o desassossego de Achilles Chirol com a liberdade de movimento adquirida por Afonsinho. Aos olhos do articulista, ele se constituía em uma ameaça ao sistema, tanto do ponto de vista econômico (jogador mercenário), quanto da perspectiva política (jogador subversivo). As duas dimensões achavam-se interligadas no discurso de poder que atravessava o futebol brasileiro, exigindo de Achilles Chirol o sacrifício da coerência para produzir os efeitos de neutralização da luta que se expandia pelos coletivos de atletas. Nesse sentido, pouco depois de evocar o exemplo de Pelé para defender o “amor à camisa” como um valor inegociável no futebol, o jornalista empreendia uma reviravolta na argumentação, citando, desta feita, o camisa dez do Santos como a ilustração de um jogador que atuava por mera obrigação contratual, já sem qualquer investimento afetivo no exercício de uma atividade para a qual ele parecida naturalmente dotado. Segundo Achilles Chirol:

… se Pelé quisesse, conservaria todo o impacto da sua genialidade. Mas ele não quer. Vai prolongando a carreira por simples mecanismo comercial…[7]

Ou seja, se, antes, no contexto do processo aberto contra o “esporte mercenário”, Pelé havia sido convocado para testemunhar contra os que lutavam pelo passe livre, como Afonsinho; agora, no quadro da ação movida contra os que desertavam do dever de servir a pátria de chuteiras, caso precisamente de Pelé – que tinha acabado de reiterar em audiência que lhe fora concedida pelo presidente Médici que não voltava atrás em sua decisão de abandonar a camisa verde e amarela -, o jornalista não hesitava em colocá-lo no banco dos réus, acusando-o de atuar movido única e exclusivamente pelo interesses comerciais, isto é, bem entendido, como mercenário.[8]

O discurso do “amor à camisa”, portanto, produzia diversos efeitos de poder: o de estigmatizar o atleta que reivindicava direitos políticos; o de submetê-lo aos interesses econômicos da classe dirigente; o de coagi-lo a atender à convocação patriótica da Pátria de Chuteiras.


Notas

[1] Cf. “Afonsinho não renova com Vasco e prefere o Santos”, Jornal do Brasil, 1 de fevereiro de 1972.

[2] Cf. “Zizinho assume esperando Pignani e Ademir”, Jornal do Brasil, 4 de janeiro de 1972.

[3] Florenzano, José Paulo. Afonsinho & Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. São Paulo, Musa Editora, 1998.

[4] Cf. “O Problemas do futebol mercenário”, Achilles Chirol,  Jornal dos Sports, 3 de fevereiro de 1972.

[5] Cf. “O Problemas do futebol mercenário”, Achilles Chirol,  Jornal dos Sports, 3 de fevereiro de 1972.

[6] Cf. Coluna: “Jogo Perigoso”: “Zé Mário na marca do pênalti”, Jornal dos Sports, 5 de fevereiro de 1972.

[7] Cf. “O futebol forçado de Pelé”, Achilles Chirol,  Jornal dos Sports, 17 de fevereiro de 1972.

[8] No início de janeiro, Pelé reiterara ao presidente-general a sua decisão de não vestir mais a camisa verde e amarela. Cf. “Pelé diz a Médici que não volta à Seleção”, O Globo, 6 de janeiro de 1972.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. “Mercenário”. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 26, 2023.
Leia também:
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães
  • 178.23

    A dança proibida

    José Paulo Florenzano