170.4

México: a “última fronteira”?

Fabio Perina 4 de agosto de 2023

Esse ensaio emerge diante de um escândalo recente, o qual retomarei com mais ênfase no final dele. Foi a repentina demissão do treinador argentino Diego Cocca na seleção mexicana em apenas 7 partidas. Tema fértil para começar a pensar em várias reflexões e conexões entre clubes, seleções e as dimensões dentro e fora de campo no futebol em várias partes das Américas. A melhor repercussão dessa demissão na imprensa brasileira ocorreu com o portal “Trivela” e com a devida reconstituição: embora com um retrospecto de resultados mais vitórias do que derrotas, sendo a única a goleada humilhante para os arquirrivais estadunidenses por 3 a 0 pela Nations League da Concacaf. O que bastou para explodir um ambiente insustentável de jogadores insatisfeitos com a Federación Mexicana de Fútbol (FMF) e até ameaças de abandonarem a seleção diante de péssima organização durante esse recente torneio em junho em Las Vegas-EUA. Essa nota contextualiza mais dois fatos: a lenta decadência na FMF com o dirigente Yon De Luisa nos últimos anos e agora na imediata decadência com o dirigente recém-empossado Juan Carlos Rodríguez e as demissões em massa de treinadores e dirigentes técnicos diante de fracassos nos torneios de seleções inferiores. O que me fomentou a buscar ampliar as fontes através de algumas páginas de youtubers argentinos e mexicanos buscando reflexões possíveis sobre esses processos naquele país e para o futebol no continente como um todo.

Diego Cocca México
Diego Cocca quando assumiu a seleção do México. Fonte: Twitter @AtlasFC/Divulgação

Ora, ao contrário da maioria de meus textos nos quais busco vínculos convergentes entre a conjuntura política com a conjuntura futebolística, nesse caso mexicano há no máximo uma sugestão simbólica. O contexto de 2018 por lá fez convergir a chegada de 3 protagonistas em suas respectivas funções: o treinador argentino Gerardo Martino na seleção mexicana, o dirigente De Luisa na FMF e sobretudo do presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO). Sem perder a chance de breves lampejos sobre a história e conjuntura política, ainda que apenas como “pano de fundo”, cabe destacar alguns traços gerais da histórica eleição de AMLO pela inédita vitória eleitoral de uma força política de esquerda, o “Movimiento de Renovación Nacional” (MORENA), diante de diversas derrotas frustradas por fraudes eleitorais oficialistas, sobretudo em 1988 e 2006. A singularidade do presidencialismo mexicano em relação a outros países latino-americanos é de mandato único de 6 anos sem reeleição. Em linhas gerais, AMLO expressa as contradições e oscilações do assim chamado “progressismo tardio”. Quem se elegeu com uma intensa campanha de massa pela “Quarta Transformação”, porém, naquele momento sem aliados imediatos em países de peso como Brasil e Argentina, agiu tragicamente nos primeiros anos com uma infame posição nas relações exteriores de ser mero “fiscal de fronteira” de Donald Trump aprofundando a criminalização dos migrantes mexicanos e centro-americanos. No entanto, nos últimos anos com as vitórias eleitorais de um novo ciclo progressista na América do Sul (Fernández na Argentina, Arce na Bolívia, Petro na Colômbia e Lula no Brasil), AMLO voltou a ocupar a posição que se espera em favor da integração latino-americana. Como menção final dessa dimensão política, agora faltando um ano para novas eleições presidenciais em 2024, vale mencionar que seu sucessor será o responsável por organizar a Copa do Mundo de 2026 na América do Norte.

Voltando a focar na dimensão futebolística desse ensaio, uma visão superficial seria de comemorar essa vaga automática enquanto sede, o que inclusive colocará o México em uma posição de prestígio histórico de ser o único país a ser sede mundialista por 3 vezes. Contudo, há pouco a se comemorar diante de uma piora de resultados em todos os critérios ano após ano: nas seleções inferiores junto da capacidade de revelar jovens talentos (conforme falarei a seguir) e na seleção principal que em Eliminatórias anteriores sofreram mais diante de adversários inexpressivos centro-americanos e caribenhos estando à beira da eliminação. Inevitável não tratar da perda de competitividade diante do seu “rival do norte” (Estados Unidos) nos últimos anos, seja sofrendo mais derrotas (inclusive por goleadas antes impensáveis) e perdas de títulos de Copa Oro da Concacaf e Nations League da Concacaf. Até mesmo na última Copa do Mundo de 2022 a queda de Martino foi inevitável diante do desastre (inédito em mais de 30 anos) de não conseguir avançar de uma fase de grupos para oitavas-de-final. E com um requinte de ironia adicional de perder para a futura campeã mundial Argentina, quando uma vitória mexicana a eliminaria precocemente.

Cruzando as situações entre a seleção mexicana e a liga mexicana, ironicamente o histórico ouro olímpico de 2012 em Londres não deixou um legado nos últimos anos e foi seguido pela piora de resultados nas seleções inferiores. O que remete a tentar entender o cenário da Liga MX ao tentar entender suas transferências entre jogadores. É uma liga que demonstra imenso poder financeiro no continente diante das “fichajes” externas de jovens talentos sul-americanos (inclusive de diversas seleções), porém também ao mesmo tempo um “asilo de luxo” de argentinos contestados ou envelhecidos que lá se tornam ídolos e até se nacionalizam! Enquanto nos “fichajes” internos são tão movimentados de rival a rival que esvaziam os clássicos e não se criam raízes em um só lugar. Aí parece coincidir a denúncia de várias opiniões de colunistas esportivos e youtubers, sobretudo argentinos, que nos clubes mexicanos e na seleção mexicana ninguém leva a sério a organização e até existem bons jogadores, porém não formam boas equipes se supostamente a todos somente interessa “salir de joda” (ou seja, ir a noitadas e bebedeiras)!

Exageros e licenças narrativas a parte em busca de audiência, são plausíveis essas denúncias na medida em que tratam da síntese do futebol mexicano em seus clubes e sua seleção enquanto imensa concentração nas propriedades da liga, dos clubes e do televisionamento por parte da oligarquia empresarial mexicana nas suas cúpulas impenetráveis a sócios e torcedores. Enquanto no “chão de fábrica” do dia a dia do futebol, grande parte dessa identidade nacional e clubística abortadas tem a ver com uma certa “argentinização” do futebol local quanto a jogadores, treinadores e até empresários representantes de jogadores. E aqui voltamos ao início do ensaio lembrando da demissão de Cocca. Além desse lado visível do escândalo, há outro escândalo pouco visível dele ser profundamente atrelado ao empresário argentino Cristian Bragarnik e sua ligação direta entre Xolos de Tijuana e vários clubes argentinos, dos quais extrai grandes lucros com “vendas casadas” de transferências entre seus jogadores e treinadores preferidos. Assim como o também empresário argentino Andrés Fasso e sua ligação direta entre Pachuca e Talleres. (Obs: Ambos curiosamente tendo em comum o “cassino” esportivo chileno sendo proprietários dos clubes La Calera e Everton, respectivamente).

Caminhando ao encerramento, aprofundando as analogias entre história, política e futebol fora de campo, usar esse referencial de fronteira (e em segundo lugar da migração) no ensaio não foi por acaso. Em termos históricos, no século XIX a assim chamada “marcha para o oeste” do expansionismo territorial estadunidense impôs humilhantes e irrecuperáveis derrotas aos mexicanos. Embora ao longo do século XX um dos imensos legados da Revolução Mexicana foi ter servido de asilo político a diversos militantes latino-americanos. Já agora no século XXI, pelo contrário, parece se esboçar uma análoga “marcha do futebol-negócio” mundial com tão intenso entretenimento e ostentação no Oriente Médio e nos Estados Unidos. E para esse segundo uma tendência de puxar a reboque a reprodução do papel do México e do restante da América Latina aprisionados ao sub-desenvolvimento como “a parte que lhes cabe nesse latifúndio”. Pois a Liga MX se vê acossada a copiar um modelo fechado de franquias da MLS como sua suposta “solução única” para a sobrevivência financeira em meio a um futebol global cada vez mais financeirizado. Inclusive sem rebaixamentos, um “legado” de De Luisa, que leva a dirigentes e clubes muito relaxados se a grana farta vinda da televisão é sempre certa! Muito sintomático que após as “ondas” de expansão de visibilidade da MLS através de Pelé nos anos 70 e Beckham nos anos 2000, nas últimas semanas o mundo do futebol parou com a notícia do gênio Messi fechar contrato com o clube-empresa do astro inglês citado em plena Miami (um importante polo de migração de latino-americanos).

Mais sintomático ainda que daqui até 2026 os EUA acumularão sedes (antes improváveis) de mais eventos como a Copa América de 2024 e o novo Mundial de Clubes da FIFA de 2025. Inclusive nos últimos anos foram férteis as notas jornalísticas sobre rumores de aproximações entre a Concacaf e a Conmebol (sobretudo após 2016 jocosamente conhecida como “Nueva Conmebol”). Inclusive com insólitos convites à seleção do Catar para os torneios no continente americano. Visando organizar edições ampliadas de Copa América (como já foi em 2016 e virá em 2024), apoios mútuos diante de encontros da FIFA (inclusive visando a candidatura sul-americana para 2030) e até rumores ainda mais abstratos de uma suposta nova “Libertadores” envolvendo todas as Américas! Acompanhando essa tendência atual infame (irreversível?) de monopolização de clubes, ligas e direitos de transmissão. Além do inchaço de calendários inclusive com um obstáculo objetivo de distâncias cada vez maiores e, portanto, descansos cada vez menores. Como se fosse uma importação direta do modelo de torneios europeus envolvendo todo um continente, porém desconsiderando imensas diferenças entre Europa e América. A lição profunda que fica dessas modestas reflexões é que o imperialismo segue existindo mais vivo do que nunca, sobretudo com seu “front” futebolístico cada vez mais estratégico assim como as disputas culturais e identitárias em torno dele.

Contudo, e concluindo esse texto em meados de julho, a má notícia recente é a confirmação da “unificação” da mega Libertadores de todas as Américas. Embora a boa notícia do futebol dentro de campo seja da recuperação da seleção mexicana através de recuperar o título da Copa Oro da Concacaf, em uma campanha com várias goleadas e em uma final contra um Panamá ascendente nos últimos anos. E mais curioso que seguiu a receita simples para uma equipe à beira do abismo, como estava apenas um mês atrás, que é dar uma chance a um treinador interino, no caso o jovem Jaime “Jimmy” Lozano. A esperança é que esse título sirva não apenas de alívio, mas de uma reconstrução sólida para desempenhar em 2026 um papel honroso dentro de campo e não sirva apenas como pautas humorísticas a bater recordes do veterano goleiro Guillermo Ochoa, imagens pitorescas de mariachis e trocadilhos com memes de Chaves ou Chapolin. Ao menos algo de simbólico de ter trocado uma camiseta reserva antes em cores aleatórias preta e roxa para agora uma atual de fundo branco e detalhes em vermelho com estética dos ancestrais astecas para tentar não se desgarrar completamente de sua história tão rica e de suas forças populares.

México
Fonte: reprodução
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. México: a “última fronteira”?. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 4, 2023.
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